O rio
continua fluindo.
O pássaro-preto
bicando a porta.
O relógio
tiquetaqueando.
E as
perguntas, ainda sem respostas.
O rio
continua fluindo.
O pássaro-preto
bicando a porta.
O relógio
tiquetaqueando.
E as
perguntas, ainda sem respostas.
é preciso ser verdadeiro
para entrar em contato
com a verdade.
não nos é permitido
tomar o céu
de assalto.
tudo o
que ainda
não tem
cerca
nem
muros
o que
nos cerca
até um
monturo
tem vida
mesmo
que
moribunda.
muito
dos mundos
por nós
criados
já foram
há muito
devorados.
resta-nos
a tarefa
imensurável
não de explicá-los,
mas de reconfigurá-los.
Amar é como ouvir
música.
Intuir a frequência
de ondas
fundamentais.
Existenciar
o que ainda não é
no ser
amado.
Um gesto move o universo
inteiro.
Elimina o tempo. Reinventa
o espaço.
Hong Yan e seu nome
perderam-se nas dobras
da história.
Mas seu gesto continua
em minha gesta.
Seu mestre morto
na batalha
não podia ser profanado.
Hong Yan rasga
o próprio ventre
e nele assenta o fígado
do mestre.
A desonra assim foi evitada.
A morada do espírito manteve-se
intacta.
As gestas se desdobram.
No séc. 13, o buda Nichiren Daishonin louva seu
discípulo Shijo Kingo dizendo: “O senhor acompanhou Nichiren, jurando dar sua
vida como um devoto do Sutra do Lótus. Essa sua atitude é cem, mil, dez mil
vezes superior a de Hong Yan, que abriu o próprio ventre para inserir o fígado
de seu senhor falecido, o duque de Yi [a fim de salvá-lo da desonra e
humilhação]”.
Ouvir o repuxo das baleias.
Enfileirar todas as conchas
retiradas das areias que pisei.
Nomear cada uma
com os medos que superei.
Jogá-las de volta ao mar
como contas de um rosário.
O mar - lugar de onde nunca
deveriam ter saído.
Expelir a água salgada
pelos poros.
Rabiscar na areia um novo
escapulário: sou feliz
e não me arrependo de nada.
O seio da face
é a maça do rosto.
O que é do gosto
regala a vida.
Mais vale a lida
que o fácil gozo.
Em todo ovo
labuta o novo.
Aqui jaz meu poema
fazendo-se de morto
na página que há pouco
já foi alva
feito um teorema
que não se pode refutar.
Até que você o leia
insufle a vida
que lhe falta
e o transforme
em delicado mecanismo
que venha habilmente atingir
o desejado alvo.
Touché?
Meu filho de onze anos
adora manipular ampulhetas.
Observa atentamente o relógio
de areia
como quem assiste à dissolução
de um império.
Ele é o senhor do tempo
e nem imagina o quanto
me faz barganhar
com Tânatos.
O olhar de Jimmu
delineia
um panorama.
Libélulas ligadas
pela cauda.
Ah, Akitsushima, Akitsushima...
Os jardins do Imperador
são meus
sonhos anotados em uma lauda.
Acima de tudo
- impassível –
o Monte Fuji.
Jimmu foi o primeiro Imperador do Japão. A casa imperial do Japão baseia-se nos descendentes diretos de Jimmu.
Akitsushima é um dos nomes antigos
do Japão e significa “Ilha das libélulas”.
Seus olhos
– na fluídica noite
da ausência –
me assombram.
Peixes centelham
em ardentia
de cardumes.
Células flageladas
– calcinadas –
com o desprezo.
[Foto by Felipe Cretella]
A função da arte
é resgatar com o siso
de suas formas
as pistas
de um anjo.
A legião de daimones
dentro de mim
abre um sorriso
de arcanjos
decaídos.
Preenchendo com o ser
o vazio do eu.
Com palavras,
o vazio da página.
Com o silêncio,
o falatório do mundo.
[Imagem: Lao Tsé Riding an Ox, de Chen
Hongshou]
não sei se me interessei pelo
jovem Marx
por ele se interessar pelos explorados
se me interessei pelos
explorados por me interessar
pelo jovem Marx
quando penso agora no jovem Marx
penso nos explorados e quando
penso nos explorados
penso no jovem Marx como me
parece
que vou me ocupar com os
excluídos
por um bom tempo parece-me que
não
vou deixar de me interessar
também pelo velho Marx
por um bom tempo
nunca saberei se me interesso pelos
deixados à margem
ou se me interesso por um jovem
já velho Marx que se interessava
pelos deixados à margem já que não
me lembro
se percebi primeiro os explorados
se percebi primeiro o
velho-jovem Marx
ou se eu próprio me vi no espelho
se eu próprio fui sempre um
excluído
se eu próprio sou e estou à margem.
[Imagem: Tela-mural Manifestación (1934), do
pintor argentino Antonio Berni]
há
tantas plantas
que não
geram flores
e são
belas
como
elas só.
tantas
palavras
se erguem suspensas
sentinelas
do ato
que as comprove.
tantos
seres
colocados
à margem
tornando-se improváveis
rizomas de lótus.
sem
linguagem nada se mostra
ao ser.
ao
calar-se, Wittgenstein falou
com a
eloquência rara
dos
tagarelas
e das
paisagens sem vento.
o
silêncio só é possível
na
morte.
mesmo
assim ele ulula
cão sem
dono
entregue
à própria sorte.