17 maio 2010

Conversas sobre Literatura


A USP já não é mais a mesma. Mas ainda há vida inteligente lá. E há também humor. Às vezes sarcástico, irônico, corrosivo, desesperançado, porém, com uma didática lucidez. Meu amigo Oliveira Barbosa e eu percorremos as catacumbas do prédio da Letras para entrevistar o professor de literatura brasileira, autodenominado ‘espanador de múmias’, JOÃO ADOLFO HANSEN. Suas aulas estão sempre abarrotadas de alunos e curiosos, que em silêncio quase reverencial, quase susto, permanecem por hora e meia sentados ouvindo, ouvindo e ouvindo. É um dos professores mais interessantes que já tive a boa sorte de acompanhar.

EC – Como o Sr. vê hoje a falência das Humanidades, das Ciências Humanas no mundo globalizado?

HANSEN - Acho que ela é uma decorrência lógica do estágio atual do capitalismo, que evidentemente transforma toda a cultura num valor de troca e mercadoria. Na medida em que estas Letras ainda pretendiam ter uma função crítica, e na medida que você não tem condições práticas e materiais pra que essa crítica se realize, as Letras foram totalmente desvalorizadas. Elas só podem interessar, talvez, como divertimento, passatempo. Eu acho que é lógico, é um desenvolvimento lógico do capital. Agora, não sei se a gente fica numa posição de lamentar o leite derramado que se perdeu... Isso acho que não vale a pena, mas também parece que hoje nós não temos muita clareza sobre o que está ocorrendo no campo mesmo da cultura e das Letras. Parece que hoje o que vale... É quase um vale tudo, né? Não sei se eu te respondi?

EC – Mas como se posicionar nesse meio, como professor de Literatura, como estudante de Literatura, como alguém que de algum modo se envolve com a Literatura...?

HANSEN – Evidentemente eu não posso dizer o que os outros devem fazer, eu posso dizer o que eles podem fazer e a partir de minha experiência que é muito precária e muito particular. Eu, pessoalmente, acredito que a gente deve resistir contra a barbárie que esta aí. Então nesse sentido as Letras ainda tem uma função de conhecimento, de crítica, e eu espero sempre que até de democratização das relações. A gente devia pensar num mundo mais democrático. Eu penso nisso, que a função de um professor é criticar opinião. É criticar aquilo que passa por natureza e é só ideologia, entende? Nesse sentido as Letras, elas são ocasião pra discutir temas da cultura, na medida em que a Literatura põe em cena todas as questões que importam. A gente vê isso na grande poesia, quando você ta lendo um Drummond, quando você lê um Murilo Mendes, ou um grande artista como o Graciliano Ramos, um Guimarães Rosa, um Machado de Assis, ta tudo ali... Pra quem quiser ver. Tem essa questão, é pra quem quiser ver. Eu acredito que você faz aquilo que você pode. Às vezes me sinto como professor, como se eu fosse um arqueólogo que trabalha num museu, guardando múmias. Na medida em que a experiência do texto literário, atualmente, não encontra a ressonância nas práticas efetivas da nossa sociedade. Mas assim mesmo acredito que é possível ainda ler, discutir, fazer, na medida em que há pessoas, que tem interesse. Não sei se eu te respondi de novo...



EC – Sim... Temos uma idéia romântica que a Literatura pode fazer alguma coisa pra mudar, de alguma forma interferir...

HANSEN – Não, ela não pode. Como eu ia dizer hoje mesmo em classe, falando do João Cabral, o poeta não pode nada, o escritor não pode nada. Ele não é padre, não é militar, não é político, e ele não é banqueiro. Quer dizer, ele não tem acesso, realmente, ao poder efetivo... Mas, no texto literário, quando o texto literário vale a pena, as normas sociais, os esquemas de ação verbal estão sempre sendo polemizados, criticados, contraditados. Acho que a Literatura tem alguma eficácia na medida em que ela evidencia sempre o arbitrário da cultura, o arbitrário do simbólico, o arbitrário da convenção social no uso dos signos. Nesse sentido o poeta pode ser eficaz. Talvez pra alguns... Não diria que ele vai transformar a sociedade. Ele vai transformar, talvez, modos de ler, modos de entender, o que já é alguma coisa, né? Você acha que responde, também...?



EC – É uma resposta... Mas, retomando uma pergunta que eu havia lhe feito em aula: o que é fazer literatura relevante hoje, e quem a estaria fazendo?

HANSEN – Eu nem lembro como eu lhe respondi...



EC – Porque, uma coisa que sentimos falta aqui na USP são dos autores contemporâneos... Estudam-se os autores mortos...

HANSEN – … é sempre difícil fazer a história do presente... Quer dizer, a história sempre está interessada no presente, eu acho. Você fala do passado interessado no presente, mas fazer a história dos próprios objetos e das práticas do presente, a gente não tem distanciamento. E às vezes, não temos uma documentação suficiente, a coisa não ficou sedimentada pra produzir, por exemplo, um consenso crítico, ainda que fosse polêmico, mas que fosse crítico. E na medida que você tem uma grande dispersão das práticas literárias hoje, a gente às vezes, não saberia por onde começar, o que escolher, etc. Além disso, tem um outro dado que é institucional, é que a Universidade ao mesmo tempo em que faz pesquisa, ela também tem este sentido de quase garantir uma memória daquilo que há. Geralmente, a Universidade tem esta tendência, às vezes muito forte demais, de dar conta só daquilo que ta morto, daquilo que passou. Você tem também aí, no nosso caso específico, uma questão institucional de não ter espaço acadêmico para fazer isso. O número de cursos, por exemplo, na minha área de Literatura Brasileira, não é suficiente pra dar conta do próprio passado. Nós somos obrigados muita vez, a fazer uma seleção que exclui, inclusive, épocas inteiras e autores inteiros. Do ponto de vista de uma história literária, embora sejam autores que não são grandes, mas tem interesse como coisa cultural. Então você tem várias questões aí. Também falta iniciativa, provavelmente de professores, falta iniciativa e organização dos alunos, mas eu acho que seria perfeitamente viável discutir o que se está fazendo hoje em poesia, ou como prosa, como experiências, inclusive, que estão abandonando estas classificações e vão indo, por exemplo, pro hipertexto, pra computador. Seria interessante fazer, quer dizer, de vez em quando aparecem coisas... A gente sabe que há todo um movimento nas periferias de jovens que escreve músicas, escrevem poesia falando de sua própria experiência. Mas a gente sabe muito pouco disso, porque talvez faltasse iniciativa... Mas acho viável, factível, ler ou discutir o que se faz hoje. Há um suplemento literário de Curitiba, chamado Rascunho...

EC – Conhecemos...

HANSEN – Com vários críticos jovens, que estão tentando fazer isso, discutir a produção contemporânea...



EC – É!

HANSEN – Eu conheci ali uns rapazes... O Rodrigo, o Bressane, e que são moços inteligentíssimos, brilhantes e que tão fazendo coisas muito legais... A gente precisaria de mais iniciativas..., Inclusive discutir se é na Universidade mesmo que isso deve ser feito, ou se às vezes a inteligência não está fora da Universidade... (Risos)



EC – Já que você tocou no Rascunho, que tem o Nelson de Oliveira lá escrevendo também; tem (tinha) um poeta "atual" com vários livros editados, o Carpinejar, inclusive uma antologia pela Companhia das Letras... Como você vê, se é que você acompanha, essa nova geração?

HANSEN – Eu não acompanho muito não. Eu tenho lido coisas esparsas, dadas à própria natureza do meu trabalho. Como eu tô fazendo trabalhos ligados lá ao passado, sécs XVI, XVII e XVIII, geralmente, estes objetos ocupam todo o tempo e meu campo... Eu tenho tentado ler algumas coisas, e tenho tentado ler sem pré-juízo. Porque acontece muito também que esta produção nova, às vezes ela é lida por meio de critérios com que a gente lia os textos modernistas, modernos, de grande invenção. E às vezes, como esta literatura nova não tem estes critérios, muita vez a crítica é negativa, e aplica a ela critérios de exclusão ou de desqualificação, dizendo que não tem, por exemplo, a qualidade de X, Y ou Z. Agora, o problema que a gente tem é de discutir esta literatura segundo os próprios condicionamentos materiais, sociais dela, segundo as próprias regras que ela propõe para ela mesma ser lida hoje. E nesse sentido a gente não tem muito distanciamento e, às vezes, temos muito a interferência das categorias críticas anteriores, que dão conta de um João Cabral, ou dão conta de um Marques Rebelo, de um Cyro dos Anjos, até mais longe, de uma Clarice Lispector, mas que não dão conta, por exemplo, de um conto do Bressane, percebe? Neste sentido, acho que você tem aí uma questão teórica, uma questão crítica, que é também uma questão artística e uma questão política. Quem fala? De onde fala? Como fala? Quais são os condicionamentos, o que está em jogo? Agora, como é um campo disperso, a própria dispersão produz uma dificuldade quase que apriorística. O que é que eu vou ler e como é que eu vou juntar... Você fala ‘Geração 90’, será que é mesmo uma geração 90? Será que justamente eles não estão estourando a própria idéia de classificação por década, ou de classificação por estilo. Porque parece que é uma variedade muito grande de experiências... Você tem desde a experiência que vai recuperar a poesia concreta, à experiência de gente que está revendo Ezra Pound, os provençais, tá no computador fazendo holograma, gente que está fazendo uma prosa realista, naturalista, bruta, falando da favela; ou gente que está fazendo experiências metafísicas, percebe? Então é difícil... pra mim é difícil.



EC – Talvez esta seja a característica do que nós chamamos pós-moderno...?

HANSEN – Eu acho que sim. É uma espécie de característica desse liquidificador que é o mundo contemporâneo. Fundamentalmente, acho que é uma des-hierarquização do valor, a gente não tem mais categorias nítidas e precisas pra dizer isso presta, isso não presta. Porque o próprio conceito de arte e o próprio conceito de literatura faz tempo que foi pro espaço. A gente não sabe muito bem. Temos uma concepção tradicional, que vem lá dos gregos, que opõe, o texto é literário quando ele é de ficção. E a gente opõe a idéia de que existem discursos que falam do real que não são fictícios. É possível ler um texto literário como se ele fosse um texto pragmático, um texto que se refere diretamente à realidade, não como ficção. É possível ler uma instrução de uso de aspirador de pó como se fosse fictício. Os alemães lá de Constanza, principalmente, o Stiller, eles propuseram que a questão da discussão da literatura hoje implicaria termos que discutir o que é o ato de fingir? Não a idéia da ficção já dada como uma evidência, ficção oposta ao real, mas a idéia de que um texto é literário quando ele pode ser lido como um texto que representa um ato de fingir. E como os atos de fingimento variam historicamente, e segundo eles, são muito particulares, teríamos que definir também em que situação algo pode ser lido como literatura. Você pensar que hoje os meio de comunicação produzem a realidade o tempo todo. Você imagina, por exemplo, quando o avião se choca lá nas torres em nova-iorque, é um acontecimento real, mas a reprodução daquela imagem na televisão americana incansavelmente, passaram durante dois ou três dias, a cada segundo passavam, chega um momento que aquilo torna-se ficção, mas que produz um efeito de realidade e que você não sabe mais qual é o evento real. Se é o primeiro momento que bateu o avião, ou ele continua batendo sempre, percebe? O que produz, evidentemente, do ponto de vista norte-americano, é para produzir uma paranóia que garante o controle do Bush e aí a política guerreira dele. A coisa também é política. Você teria que ter critérios aí muito teóricos pra gente discutir. O que é o estado da realidade contemporânea? A gente não sabe muito bem o que é...



EC – Mas, o poeta pra fazer um trabalho relevante hoje, ele contestaria o que está aí, ou ele faz uma viagem interna...?

HANSEN – Não sei. Não sei o que ele teria que fazer... Quer dizer, ele tem todo um peso de uma gigantesca tradição atrás dele...



EC – ... Que ele tem que dialogar...?

HANSEN – Aqui no Brasil, por exemplo, um poeta ele tem que pensar que já houve João Cabral, Drummond, Bandeira, Murilo Mendes, Mario de Andrade, Oswald de Andrade, posso estar esquecendo alguém importante... Tem que pensar também que houve uma gigantesca redução da poesia, uma síntese, feita pelo Concretismo. Ele também não pode ser um poeta inculto, tem que saber o que a crítica literária propôs, discutiu. Tem que ser muito informado historicamente, ele não pode ser ingênuo. Essa é a primeira coisa, agora, o que ele vai fazer, isso a gente tem que discutir a partir efetivamente do poema concreto que ele irá realizar... Do poema concreto não...(Risos)...Do poema particular, porque muitos ainda estão fazendo poesia concreta. Tenho a impressão que você teria que discutir de novo os condicionamentos da prática. E que são sociais. O que condiciona a prática desse poeta? O que ele põe em cena quando ele escreve? Que material social ele transforma? E que sentido ele dá a forma que ele produz? Aí você já tem alguns elementos pra se começar a discutir. Agora, evidentemente, a gente também faz parte desta tradição e quando você lê um poeta hoje, você tem na cabeça um Drummond, Mallarmé, uma tradição longuíssima, você tem Virgílio e Homero na cabeça. Então quando você vai ler, você fala: o que esse cara ta propondo? A gente tem muito uma idéia modernista, moderna, de que a poesia deveria ser o novo, a cada momento o novo. Num mundo administrado como o nosso e que vive um presente contínuo da troca, a gente deveria perguntar se existe condição de aparecer o novo. Ou se a própria idéia de novo não é a reposição contínua da própria estrutura de troca mercantil que a gente vive. Se o novo já não ta controlado previamente pela estrutura do capital. Agora você vai perceber que muitos artistas vão ficar uma espécie de técnicos numa pequena técnica. Por exemplo, nas artes plásticas, que acabou a pintura, e só tem essas bobagens destas instalações – você entra numa sala escura com uma televisão ligada, tem um fio de vara de pescar que te bate no rosto e um ruído – e isto é arte, quer dizer, uma indefinição total e que chateou... (silêncio)... Muitos artistas cansados disso estão voltando a uma pequena técnica, estão fazendo de novo, xilogravura, estão retomando pincel, estão propondo a serigrafia, tão fazendo...



EC -...Sonetos.

HANSEN – É, sonetos... Até sonetos...



EC – o Glauco Mattoso...

HANSEN – O Glauco faz, né? Mas o Glauco é satírico, paródico, e o Glauco tem um humor magnífico, né? Então ele faz com um sentido muito divertido, a geléia de barroco, aquelas coisas dele... O Glauco é divertido e é bom o que ele faz, eu acho muito bom... Ele é muito agudo e irreverente. Acho que o poeta precisa ser irreverente hoje, senão ele fica esmagado com o peso da tradição, o nome do pai...



EC – E o Manoel de Barros, o que acha?

HANSEN – Eu acho singular, interessante, uma coisa assim que vem, pequena, uma espécie de...



EC – Ínfimo...

HANSEN -... De experiência do ínfimo, de experiência do micro e que faz valer uma experiência de vida muito intensa dele, com a planta, o bicho, a terra. Ele é uma voz autônoma, quer dizer, é um poeta culto, mas você não precisa dizer: ah, isso me lembra Drummond. Não, você pode dizer: isso me lembra Manoel de Barros.



EC – É. Ele tem uma voz própria.

HANSEN – Ele tem uma voz própria.



EC – E isso é raro. Talvez seja esse o desafio...

HANSEN – Isso é muito raro. Talvez, como dizia o Mário de Andrade, o poeta brasileiro publica muito cedo, né? Devia ser... Não deve ser proibido adolescente fazer poesia, de modo algum, deve até ser incentivado, mas ele devia ser proibido de publicar. Ele devia fazer o teste do Horácio, quer dizer, guardar na gaveta nove anos, e daí quando reler, se não causar vergonha, presta. (risos) Entende? É que eles são muito açodados, muito afoitos. É que também tem uma ideologia aqui...



EC – Também porque é rápida... Edite...

HANSEN – Sim. E tem esta ideologia também da comunicação a toda força, e até de um certo narcisismo, do prestígio: eu quero ser reconhecido como poeta, né? O que é uma bobagem. O Guimarães Rosa que dizia, quando o Guteloris perguntou pra ele: o que você acha de ser o gênio da Literatura Brasileira. Ele falou, gênio? Não. Trabalho. Trabalho. Trabalho. Trabalho. E mais Trabalho. Ele repete cinco vezes. E Rosa fala isso com autoridade, né? Percebe? Eu penso assim. Tô brincando um pouco é evidente, mas eu penso assim...



EC – E a poesia serve pra quê?

HANSEN – Pra nada! (risos) Poesia é totalmente inútil. Mas, justamente num mundo utilitarista como o nosso, burguês, essa inutilidade dela é que vale. Ela tem a virtude do inútil, percebe? Isso que é legal.



EC – Um inutensílio...

HANSEN – É. Ela é um inutensílio, neste sentido. Não serve pra nada, mas é justamente esse nada que é fundamental. Porque ele pode ser contraposto ao mundo regido pelo dinheiro, como o nosso, em que tudo, mas tudo mesmo, é pensado como valor de troca. A poesia é uma das últimas coisas em que o valor de troca não apita. Embora a gente saiba, também, que ela é um presunto. Como dizia o João Cabral, ela é fezes, ela é um resto. Mas acho que não serve pra nada...



EC – Em suas aulas, pelo seu jeito de expor seus pensamentos, sua ironia... Fico pensando que para quem tem 18, 19 anos parece que você puxa o tapete e não apresenta nada no fim do túnel...

HANSEN – Sim. Ótimo, né? É isso, eu não sou padre. Você concorda? Eu acho imoral também, você fornecer pras pessoas receitas de vida. Eu não posso dizer pras pessoas, vocês devem fazer isso. Os intelectuais brasileiros tentaram por muito tempo, esta idéia de que eles iam organizar a massa, fornecer consciência pra massa. Isso eu acho que não é possível. Já basta isso, puxar o tapete. Se a gente, efetivamente, puxa. Porque a gente também não passa de um professor, que fala umas coisas, que às vezes são ouvidas, às vezes não...



EC – Às vezes são gravadas...

HANSEN – Mas eu não tenho nenhuma pretensão de melhorar ninguém. Também não de piorar, mas não tenho pretensão, não. Acredito que as boas intenções são punidas; necessariamente punidas. Eu acredito muito fortemente nisso. É uma ocasião de um jogo, mas de um jogo sério e você tem que ser honesto com os alunos, você tem que expor aquilo que há sobre aquela questão que está debatendo, ao mesmo tempo não fazer a brincadeira de ser um avestruz. Porque acreditar que este é o melhor dos mundos possíveis... Ele não é.



EC – Mas você tem esperança?

HANSEN – Não sei. Eu não sei... Já estou velho... Sim, mas você sempre tem alguma esperança. Basta pensar que eu continuo vivo, eu não me matei. Eu sempre espero, o melhor. Mas aqueles objetos de esperança que eu tinha, de quando era moço, eles se tornaram historicamente inviáveis. Não existem mais... Eu não sei. Sim... A gente tem que ter esperança tem que afirmar a esperança mesmo quando não há razão nenhuma pra ter. Agora, o mundo de hoje é muito ruim, como sempre foi, mas ele é... Basta você abrir um jornal, ligar a televisão, estar vivendo pra perceber que ele é terrível... É terrível. E que tudo que há parece que desmente qualquer hipótese de esperança, mas apesar de tudo há movimento. Eu acredito que as coisas mudem. E a gente tem que mudar, e tem que viver prum mundo onde as coisas mudem. Isso já oferece... Um princípio. Talvez eu não tenha nenhum fundamento pra justificar isso que estou dizendo. Bom... Acho que é isso.



EC – Se você tivesse que indicar cinco obras, ou autores, pra quem estiver começando na Literatura, quais vocês indicaria?

HANSEN – Eu proporia que lesse a Bíblia. Eu proporia que lesse Homero. Na medida em que essas duas grandes tradições, como Auerbach mostrava, elas dão origem a toda a Literatura do ocidente. O poeta Auden também falava isso. Dizia que, se um dia ele desse um curso, ele faria os alunos durante dois anos ler a Bíblia e Homero. Porque na hipótese dele, tudo que vem depois retoma estes dois grandes textos. Feito isso, você teria que discutir se você vai ler a Literatura de sua língua, ou se você vai ler Literatura que fosse, assim, universal. Eu leria Shakespeare, que tem uma visão muito nítida do homem. Uma visão desencantada, crítica, dura. Eu leria também Kafka. Eu acho que Kafka vê o mundo moderno, o mundo contemporâneo. Leria também um autor nosso. Ficaria em dúvida entre o Machado de Assis e o Guimarães Rosas. Estou pensando em prosadores. Evidentemente na poesia, é difícil, porque você tem poetas assim, monstruosos. Um Drummond é toda uma Literatura. Eliot é um grande poeta também. Os italianos: Salvatore Quasímodo, Montale, Ungaretti. Você teria que eleger uma tradição poética. Tem várias tradições, né? Talvez, a gente fosse buscar aquele texto que nos fala mais diretamente a experiência de vida porque sintetiza todo o mundo dele, o tempo dele. Você vê, eu podia ter falado do Cervantes, do ‘Quixote’, mas eu pensava na idéia de uma formação do leitor: A Bíblia, o Homero, Shakespeare, como uma síntese de tudo que é antigo e depois eu pulava pro Kafka e leria algum grande poeta moderno. E aí eu tenho dúvida entre o Drummond, Eliot...



EC – Baudelaire?

HANSEN – Não, eu não diria Baudelaire. Eu leria Baudelaire, como um poeta que é um sismógrafo, uma espécie de indicador da modernidade chegando. É um grande poeta, mas eu acho que não leria Baudelaire, eu proporia poetas ainda mais amplos, eu proporia Drummond, por exemplo. Se eu tivesse que levar pruma ilha, eu levaria os dois, mas se tivesse que escolher seria difícil, mas eu levaria Drummond. São só opiniões...



EC – Hoje praticamente você tem quase tudo disponível na internet...

HANSEN – Tem tudo... Agora, quem lê? Esta que é a questão. (Risos) Quem é o superolho..., Porque precisa ter o olho de um Deus pra poder ler toda essa informação. A gente talvez devesse ser mais lento... A gente ta numa sociedade da velocidade, a gente devia... Ralentando, desacelerar um pouco.



OB – Então a crítica literária está fadada ao fracasso?

HANSEN – Em que sentido?



OB – Por não conseguir...

HANSEN – Sim. A crítica não existe mais... Como instituição. Você tem o resenhador, o marqueteiro tipo Folha de São Paulo... Você não acha? Você não tem mais a instituição crítica... No Brasil. Um Wilson Martins, um Álvaro Lins, Antonio Candido, que escreviam profissionalmente no jornal. Ou trabalhava na Universidade... Não tem isso mais.



EC – Interessante falar isso passando por estes corredores cheios de história... (Caminhávamos pelos corredores onde ficam as salas dos professores. Antigamente chamavam-se gabinetes e ainda se pode ver o nome de alguns espécimes já extintos, e outros em vias de pregados nas portas: Alfredo Bosi; Massaud Moises; Davi Arrigucci Júnior; Ina Camargo Costa; Ligia Chiappini Moraes Leite; Regina Lucia Pontieri; Ariovaldo Jose Vidal; Marcus Vinicius Mazzari; Antonio Dimas; Jose Antonio Pasta; Alcides Villaça; Luiz Roncari; José Miguel Wisnik; Augusto Massi; João Adolfo Hansen; Roberto Zular, Jorge M. B. de Almeida).

HANSEN – Pois é!

João Adolfo Hansen (Cosmópolis, 1942) é professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo-USP. Pesquisador na área de literatura, crítico literário, ensaísta e historiador, Hansen é o nome mais importante dentre os estudiosos de Letras Coloniais e certamente um dos mais importantes críticos literários do Brasil ainda em atividade na universidade (2009). Recebeu o Prêmio Jabuti, na categoria Estudos Literários, pelo livro A Sátira e o Engenho. Gregório de Matos e a Bahia do Século XVII.





05 maio 2010

Quartas de Literatura


Você já conhece a Biblioteca de São Paulo? Aquela q foi construída no espaço da extinta prisão do Carandiru?
Por incrível que pareça, hoje eu estarei lá, e não como presidiário ou elemento de alta periculosidade, para conversar sobre literatura.

Quartas de literatura [http://www.bibliotecadesaopaulo.org.br/]
Toda primeira quarta-feira do mês, um autor fala sobre sua obra e seu processo de criação literária num bate-papo com o público da
Biblioteca de São Paulo.
Com
Edson Cruz.
Quarta-feira, 5, 19h.


28 abril 2010

Um ET em Brasília



[Da janela do diretor da Biblioteca Nacional de Brasília, Antonio Miranda]




[Antonio Miranda, Abreu Paxe, Frederico Barbosa e Paulo César de Carvalho]

15 abril 2010

UIVO

a vida é breve e urge ser plena

mesmo que o sopro leve

o ânimo desta pena

e a dor urre sob o acúmulo de neve

VIVO


02 abril 2010

DiOli à queima-roupa



1) O que é poesia para você?

poemas
são como vaga-lumes
são sensações dispersas
- brilham -
ora grandes
ora pequenas

vaga-lumes e pirilampos
são formas de poemas
:
quando cintilam
já se foram
pelos ares
pelos campos

2) O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?

Ler: Ler: Ler.

3) Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que estas escolhas?

FERNANDO PESSOA – Pela vastidão e diversidade poética e principalmente por ensinar que a poesia simplesmente acontece “como dar-me o sol de fora”.
NICOLAS BEHR – Além de ser um expoente da famosa “geração mimeógrafo”, que abriu outros caminhos para a poesia além das estradas privativas da “camöenidade acadêmico-literária”, ler Nicolas Behr é conhecer as partes íntimas de Brasília sem ter que ir até lá.
DIETER ROOS – Filósofo, pintor e poeta universal/primitivista/africano nascido alemão, que escreve poesia para ser “pintada em paredes de cavernas urbanas” e que me ensinou que a poesia está em todas as coisas e que um homem pode ser grande sem perder a humildade.


David Willian de Oliveira, diOli, nasceu em Divinópolis-MG. É co-editor dos folhetos BARKAÇA de poesias e artes visuais (http://www.barkaca.blogspot.com/). Tem poemas, videopoemas e performances divulgados/publicados na internet e em jornais de literatura de Minas Gerais. E-mail: dioli@rocketmail.com

01 abril 2010

Dia (da implosão) da mentira

O poeta Affonso Romano de Sant’Anna pede-me que divulgue o poema abaixo. Circula na web uma versão atribuída a ele e que está a ser usada como campanha contra o Lula.

O poema correto foi escrito em 1984, durante a ditadura, e reagia ao episódio macabro do ‘Rio Centro’. Confira.


A Implosão da Mentira

Affonso Romano de Sant'Anna


Fragmento 1

Mentiram-me. Mentiram-me ontem

e hoje mentem novamente. Mentem

de corpo e alma, completamente.

E mentem de maneira tão pungente

que acho que mentem sinceramente.

Mentem, sobretudo, impune/mente.

Não mentem tristes. Alegremente

mentem. Mentem tão nacional/mente

que acham que mentindo história afora

vão enganar a morte eterna/mente.

Mentem. Mentem e calam. Mas suas frases

falam. E desfilam de tal modo nuas

que mesmo um cego pode ver

a verdade em trapos pelas ruas.

Sei que a verdade é difícil

e para alguns é cara e escura.

Mas não se chega à verdade

pela mentira, nem à democracia

pela ditadura.


Fragmento 2

Evidente/mente a crer

nos que me mentem

uma flor nasceu em Hiroshima

e em Auschwitz havia um circo

permanente.

Mentem. Mentem caricatural-

mente.

Mentem como a careca

mente ao pente,

mentem como a dentadura

mente ao dente,

mentem como a carroça

à besta em frente,

mentem como a doença

ao doente,

mentem clara/mente

como o espelho transparente.

Mentem deslavadamente,

como nenhuma lavadeira mente

ao ver a nódoa sobre o linho. Mentem

com a cara limpa e nas mãos

o sangue quente. Mentem

ardente/mente como um doente

em seus instantes de febre. Mentem

fabulosa/mente como o caçador que quer passar

gato por lebre. E nessa trilha de mentiras

a caça é que caça o caçador

com a armadilha.

E assim cada qual

mente industrial? mente,

mente partidária? mente,

mente incivil? mente,

mente tropical? mente,

mente incontinente? mente,

mente hereditária? mente,

mente, mente, mente.

E de tanto mentir tão brava/mente

constroem um país

de mentira

-diária/mente.


Fragmento 3

Mentem no passado. E no presente

passam a mentira a limpo. E no futuro

mentem novamente.

Mentem fazendo o sol girar

em torno à terra medieval/mente.

Por isto, desta vez, não é Galileu

quem mente.

mas o tribunal que o julga

herege/mente.

Mentem como se Colombo partin-

do do Ocidente para o Oriente

pudesse descobrir de mentira

um continente.

Mentem desde Cabral, em calmaria,

viajando pelo avesso, iludindo a corrente

em curso, transformando a história do país

num acidente de percurso.


Fragmento 4

Tanta mentira assim industriada

me faz partir para o deserto

penitente/mente, ou me exilar

com Mozart musical/mente em harpas

e oboés, como um solista vegetal

que absorve a vida indiferente.

Penso nos animais que nunca mentem.

mesmo se têm um caçador à sua frente.

Penso nos pássaros

cuja verdade do canto nos toca

matinalmente.

Penso nas flores

cuja verdade das cores escorre no mel

silvestremente.

Penso no sol que morre diariamente

jorrando luz, embora

tenha a noite pela frente.


Fragmento 5

Página branca onde escrevo. Único espaço

de verdade que me resta. Onde transcrevo

o arroubo, a esperança, e onde tarde

ou cedo deposito meu espanto e medo.

Para tanta mentira só mesmo um poema

explosivo-conotativo

onde o advérbio e o adjetivo não mentem

ao substantivo

e a rima rebenta a frase

numa explosão da verdade.

E a mentira repulsiva

se não explode pra fora

pra dentro explode

implosiva.


(Poema publicado no JB em 1984, quando do episódio do Rio Centro e em diversas antologias do autor. Está em “ Poesia Reunida” L&PM, 1999, v.2)

30 março 2010

Flashs do lançamento em Brasília

[Felipe Fortuna, Nicolas Behr, Francisco Alvim, Ronaldo Costa Fernandes, Antonio Miranda, Edson Cruz, Antonio Cicero, Domício Proença Filho, Frederico Barbosa e Abreu Paxe (Angola)]

Na sexta-feira, dia 26/03, cheguei em cima da pinta em Brasília para participar do lançamento do livro “O que é poesia?”, na Livraria Dom Quixote do Centro Cultural Banco do Brasil. Por feliz coincidência, ao lado do auditório aonde iriam acontecer as mesas da Conferência Internacional sobre o Futuro da Língua Portuguesa.

O debate foi extenso e não queria acabar. Os caminhos da poesia contemporânea brasileira. Até o poeta angolano Abreu Paxe discursou sobre a nossa poesia e não escondeu sua visão de que o concretismo é um marco para a poesia mundial.

Instigados pela fala do poeta Felipe Fortuna, o debate culminou na controversa questão da letra de música e suas especificidades em relação à poesia.

O poeta Antonio Cicero realçou o fato de que não se aprende a ler poesia nas escolas, o que, concordamos todos, é crucial para o presente estado de coisas. Ao que tudo indica, lê-se pouco poesia e vende-se menos ainda.

Vários poetas vieram prestigiar o debate. Por exemplo, Luis Turiba e Régis Bonvicino estavam atentos na plateia.

Uma noite e tanto.

[Nicolas Behr, Karla Melo e Edson Cruz]



[Luis Turiba, Francisco Alvim, Karla Melo, Clara Alvim e Frederico Barbosa]

29 março 2010

A língua portuguesa é o nosso butim

Ainda estou sob o efeito encantatório dos diálogos, falas e encontros da Conferência Internacional sobre o Futuro da Língua Portuguesa no Sistema Mundial, que aconteceu em Brasília neste último fim de semana.

Algumas frases ainda reverberam em minha mente:

“Com as novas mudanças no mercado editorial, o leitor passou a ser o centro e não mais o autor.”
“O autor se transformou em uma marca nos tempos atuais.”
“Em Portugal há 10 milhões de habitantes e para o mercado internacional ele não constitui uma massa crítica capaz de se afirmar no panorama mundial.” (Maria do Rosário Pedreira)
“Qual o lugar da literatura no mundo de mercado?” (Pergunta da platéia)
“A língua portuguesa é um castelhano sem ossos.” (Cervantes)
“Ninguém canta em esperanto.” (Mário Lúcio)
“A língua portuguesa é um troféu de guerra.” (Luandino Vieira)
“A libertação pela conquista da palavra.”
“As línguas são tecidos por onde passam as diferenças.”

Todas, frases contundentes, citadas pelos palestrantes. Autoria dos próprios ou apropriações.
Mas, cá entre nós, o ponto alto do encontro foi a fala que reproduzo abaixo do poeta, compositor e músico de Cabo Verde, Mário Lúcio. Confiram.





Eu nasci do encontro entre duas línguas, como, alías, acontece com toda a gente cuja cultura tem a tradição do beijo na boca; e cresci entre duas línguas também, o crioulo e o português. O crioulo é a minha língua materna e paterna e o português é a minha língua fraterna e eterna. É em português que eu aprendi a escrever, essa forma de eternizar o efêmero na palavra, embora tenha sido em crioulo que aprendi a falar, essa outra forma de o eterno ser efêmero na palavra. Quando penso, canto e choro, faço-os em crioulo. Quando o que eu canto, penso e choro é escrito, escrevo-o em português, à excepção da música. Desse modo, é indissociável a minha língua materna da fraterna. Não consigo conceber nada, nem conceber-me, sem a língua crioula, e não consigo conceber a língua crioula sem o português. Essa vivência faz com que eu não partilhe a existência de uma língua portuguesa tal como ela é tratada hoje no espaço lusófono, isto é, como uma antiga propriedade que nós cultivamos como meros arrendatários. Devo dizer que essa não é uma posição oficial de nenhum país em particular, mas é uma característica do pensamento institucional. Particularmente, acho feliz a idéia de incluir o processo criativo na discussão sobre o futuro da língua portuguesa, porque é no campo criativo que nós compreendemos que somos nós que fazemos a língua e não o contrário. Embora, do modo como a língua é encarada hoje, parece que é ela que faz os povos e os países, e não o inverso. O exemplo está dado aqui nesta Conferência Mundial. Duvido que as nossas divagações, as dos músicos, poetas, escritores, tradutores, jornalistas, editores, cineastas, tenham alguma repercussão nas resoluções oficiais.

O meu processo criativo, falando como ilhéu e crioulo, é um caso particular no universo da língua portuguesa. Assim como todos os outros casos são particulares, seja em Angola, no Brasil, na Guiné, em Moçambique, em São Tomé ou em Timor. Só há um denominador comum entre nós e que, curiosamente, não é a língua portuguesa em si, mas o que cada um de nós faz dela. Falo da língua viva. A minha experiência faz-me aqui falar não do processo criativo na sua relação com a língua, isto é, não tomar a língua unicamente na sua dimensão estética ou semiótica, quando ela conflui com a criação, mas também, e principalmente, a língua portuguesa na sua terceira dimensão, que é o da sua crioulização. Esse fenômeno não é reconhecido, sabemo-lo. O que não sabemos, ou não queremos saber, é que o quid da questão reside exactamente aqui.

A língua portuguesa é uma língua crioula. E essa realidade é tão evidente como dizer que a lusofonia ultrapassa a língua. E que a língua portuguesa hoje ultrapassa o politicamente e o gramaticalmente correctos. A Lusofonia soa bem, porque engloba um universo de cerca de cento e dez línguas, que vai do tétum ao Kimbundo, do angolar ao português. Há estudos actuais que mostram a fragilidade da sigla CPLP, porquanto nos países de língua portuguesa, o português é, muitas vezes, a segunda ou a terceira língua, falada apenas por uma minoria. Mas os mesmos estudos também rejeitam a idéia da CPLP poder ser uma Comunidade de Povos, pois, dizem, seria ainda pior incluir os bantus, os congos e os outros, como povos de língua portuguesa. Ora, nessa lógica, dizer povo espanhol, francês, alemão ou suíço é igualmente uma violência. Eu acho que no centro da CPLP deviam estar os povos e não os países. E que, nesse aspecto, o Senegal, pelo Casamance, o Benin, pelo Porto Novo, o Marrocos, por Arzila, o Curaçao pelo papiamento, a Guiné Equatorial, pelo ano Bom, etc., devem fazer parte da Lusofonia, ainda que não da CPLP, enquanto comunidade de países. E eis porque tenho proposto a criação de uma Fundação para a Lusofonia, uma organização global para a comunhão de povos com heranças portuguesas, e que se ocuparia exclusivamente dos aspectos culturais da Lusofonia, trabalhando em complementaridade da CPLP e em comunhão com ela.

Quanto à língua portuguesa, ela continua a ser ensinada, corrigida e tratada com os mesmos métodos, formas e estratégias de quando eu estudava pela gramática de José Maria Relvas. A minha constatação é que a Língua Portuguesa já não é a língua clássica que se impôs, e que ainda se quer defender, (e talvez por isso seja tão difícil defendê-la tal e qual, porque aquela língua já não existe). A língua portuguesa é hoje uma língua barroca, depois de séculos de crioulização, que vai desde o encontro do Padre António Vieira com os índios, de Guimarães Rosa com o Sertão, Mia Couto com as quarenta e uma línguas moçambicanas, Luandino Vieira, António Jacinto e Pepetela com os tambores e as machambas, a Arménio Vieira no seu convívio com o triste poeta Fernando, e o zarolho Luis Vaz. A língua portuguesa é hoje tudo isso, mais as letras das mornas de Cabo Verde, as canções de Adoniran Barbosa, o bilingüismo e a diglossia expressa e intencionada dos escritores da minha geração em Portugal, Brasil, Angola, Santomé, Guiné, Moçambique, Timor, e por aí fora.

A língua portuguesa é hoje uma língua crioula, como o é o espanhol de Julio Cortazar e Carpentier, como o inglês de James Joyce, como o pidgin da Jamaica, como o francês de Ousmane Sembén e de Edouard Glissant. A diferença é que nós da fala portuguesa ainda não aceitamos isso, enquanto que os outros já tratam do tema há várias décadas. De tal modo que a Bélgica e a Suíça abandonaram a idéia de um Acordo Ortográfico alemão, o Chile, depois de 140 anos, já não acha prioritária essa questão, e a língua francesa, do Canadá a Madagascar, viu o último acordo ortográfico em 1830. Outras preocupações afectam a língua no mundo em que vivemos. E a nossa línguíssima portuguesa também devia estar na vanguarda. E quando digo que o português é uma língua crioula, não é uma língua crioula pelo que é intrínseco ao crioulo, porque não há nada intrínseco ao crioulo, mas como língua em permanente mutação, fenómeno que permeia os encontros de culturas, porque é isso a crioulização. A meu ver, a língua portuguesa deve ser tratada como uma das línguas da Lusofonia, a única na qual quase todos nos entendemos. E foi nessa qualidade, como uma das raras línguas comuns a todos nós, que ela se tornou, com o uso, numa língua crioula. Portanto, agora não venhamos domesticar essa bravura. Convém dizer que se o português é falado em cinco países africanos, destes, três se entendem numa mesma língua, o crioulo, designadamente, Cabo Verde, Santomé e Guiné Bissau. E é dentro desse espaço que a língua portuguesa deve ser trabalhada, difundida, partilhada, corrigida, mordida e saboreada como a língua na língua. Pois, é nesse espaço, que já é dela, que ela tem futuro e que, entretanto, corre perigo.

Não existe melhor modo de divulgar uma língua que através da música. Pelo menos, mais da metade das pessoas que tenho encontrado pelo mundo dizem que se interessaram pelo português depois de terem escutado Chico Buarque, Tom Jobim, João Gilberto, Amália Rodrigues, Gilberto Gil, Caetano, Bethânia. Mas, há um fenômeno novo: Hoje, muita gente chega ao português por causa da Cesária Évora. Entretanto, assistimos impávidos a um domínio anglo-saxónico, por um lado, e a uma conquista crescente e planificada da francofonia, por outro, sem que nós tenhamos feito alguma coisa para que a lusofonia tenha um mercado global na área da música e das artes. Eu acho que o Esperanto é desinteressante justamente porque ninguém canta em Esperanto. O mesmo já não acontece com o latim, que, embora se diga que é uma língua morta, tem dado e continua a dar palavras a divinos cânticos.

É de toda a conveniência, portanto, que a Lusofonia seja global e não redutora. E global, talvez não no sentido territorial, mas na diversidade.

É urgente a criação de uma Agência da Lusofonia para a Cultura, para a promoção e exportação de bens culturais, e para o intercâmbio. Exemplos: as feiras do livro, e os centros culturais. Propostas: Consolidação do Instituto Camões e demais fundações, da Fundação Palmares, etc. Mas, será que alguém está interessado em dar independência à CPLP? A língua está sendo politizada. Eu não devia dizer isso. Mas, digo. E se não é verdade, então que a palavra seja dada aos eternos e aos efêmeros. Precisamos de uma política para a língua, e não de uma língua para a política.

O Acordo Ortográfico é um grande passo para a CPLP, mas um passo atrás para a língua. Já está aprovado e não há volta atrás, portanto, não vamos chorar sobre o grafema derramado, mas convém ficarmos cientes de que estamos a usar um velho método de estandardização, que deveria ser abandonado em nome da diversidade. Quando todo o mundo esperava uma simplificação profunda e moderna, que facilite o acesso à língua, e facilite o processo criativo e facilite a vida às crianças que queiram escrever em português, o Acordo Ortográfico tratou a forma e deixou o fundo como estava. Resolve a questão do hífen, dos ditongos e da diérese, enquanto xícara, chácara, esboço, fosso, mães e pães, cidadãos, êxodo, êxito, cães e espiões nos confundem. Pois, não sabemos se vão com s, x, ç, ch, ou z. Portugal debateu-se sozinho durante séculos com essa questão. Hoje, a língua encontra-se ainda encravada entre a solução etimológica e a fonológica, o que é uma eterna desvantagem para quem não tem a língua portuguesa como língua materna, e que só percebe que o h é mudo aos seis anos de idade. Se já é acordo comum que isto deve continuar como está, uma língua híbrida é uma opção que eu aplaudo. Mas, então, é necessário o tratamento da língua a outro nível, e que, definitivamente, o facto de o português ser uma língua crioula seja aceite.

Usar métodos vetustos pode ser contraproducente. Quem escreve não escreve mal o português, nunca. E quem escreve mal, não há Acordo Ortográfico que o salve. O que acontece agora é que quem já escrevia razoavelmente bem, agora corre o risco de escrever mal, e quem já escrevia mal ficou pior. O que quero dizer é que temos a oportunidade de fazer algo histórico para a língua, e devemos fazê-lo. Para isso, é necessário que as recomendações surjam de dos utilizadores para os técnicos e destes para os políticos, e não dos políticos para os técnicos,e deste para os utilizadores. Eis porque proponho com urgência, e para o bem do futuro da língua portuguesa que se crie A Academia da Letras da Lusofonia, e que recolha subsídios de Goa até o Canadá. Se alguém está interessado verdadeiramente no futuro da língua portuguesa, que dê um sinal, que atire a primeira sílaba. E essa instituição é que cuidará dos destinos da língua de forma independente e por mérito.

Todas as línguas já foram línguas crioulas. O português, por fim, chegou à sagração desse processo. Nesse caso, o Acordo Ortográfico é uma boa testemunha. Pois, se se procurou acordos, é porque havia desacordos. Como e quando é que esses desacordos nasceram? Eis uma outra visão das coisas. Será que os desacordos não poderiam ser intregados como parte da língua, como alternativa, como o outro modo de?... como subsídios, como possibilidades. Eliminar o erro pela aceitação do erro. A língua dever ser libertada das estruturas administrativas e devolvida à boca e à pena, e ao seu lugar de conforto e de cultivo.

É preciso libertar a língua de um antigo conceito de língua de que somos os últimos a padecer.
A experiência de cada um pode ser a riqueza de todos. A minha é a de uma pessoa cuja língua materna não é a língua escrita de sua eleição. É dos poucos casos na História em que a língua que não é materna é anterior à língua materna. O português no Arquipélago de Cabo Verde é anterior ao crioulo. Por isso, o português aparece no nosso processo criativo muitas vezes apenas para nos dar o título. Contudo, de repente, estamos a pensar em crioulo e a escrever em português. Ou, de repente, estamos a pensar em português e a escrever em português. E não se trata nunca de uma tradução, nem de uma transcrição. É algo como uma sombra entre duas árvores. Só sabemos que se não pensarmos em crioulo o nosso português não terá força, nem genuinidade. E quando escrevemos em português, no caso em que escrevemos em português, o nosso pensamento em crioulo ganha a força da surpresa e da estética, e a repercussão que a língua portuguesa tem. É exactamente isso que faz a minha literatura em português ser diferente de qualquer outra escrita em português. A língua portuguesa já nasce em mim como figura de estilo. E, para muitos dos escritores africanos, escrever em português é literatura em si, desde que ela seja tratada como língua crioula, como língua nova esculpida por muitas línguas. Nada disso é explicável, na verdade. Só escrevendo, só lendo.

Resumo: Fiz três propostas, e, se há alguém aqui que tem acesso aonde as propostas costumam ser ouvidas que as levem, por favor: A Criação da Fundação para a Lusofonia, a Criação da Academia de Letras da Lusofonia; A Criação de uma Agência para a difusão das Artes.

Obrigado
Mário Lúcio Sousa

http://www.mariolucio.com/
www.myspace.com/marioluciosousa

23 março 2010

O futuro da língua e a Internet


[Meu filho, Tom Mitsuo, consulta seus emails]

Não há dúvidas de que vivenciamos um momento único. Para o bem e para o mal. Novas necessidades, novas atitudes e novos fazeres geram novos conceitos, novas palavras, novas relações com a língua falada e escrita e, no limite, devem mudar nossa maneira de encarar o mundo e a vida.

O filósofo Pierre Lévy cunhou a palavra-conceito cibercultura que já contaminou nossa maneira de pensar, falar, criar e de nos relacionar. No centro deste conceito está, a meu ver, a não linearidade proposta pelos hipertextos, a comunicação flexível e de mão dupla onde não há mais uma hierarquização visível do produtor de sentidos e nem um topos delimitado.

Transitamos da galáxia de Gutemberg para a galáxia da Internet, com todos os seus agregados e desdobramentos possíveis. E a lingua já está em contaminação. O futuro da língua portuguesa depende, então, de uma presença mais concreta e consciente neste universo da tecnologia da informação.

Até o chamado “letramento”, considerado como um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, está se readequando e, não há dúvidas, com consequências para a sociedade e para a língua que irmana tal sociedade.

Não há como fechar os olhos ou simplesmente dizer que se escreve mal e rapidamente na Internet. Que o inglês está contaminando a escrita utilizada na web. Que se come a grafia das palavras entre os mais jovens, etc. A preguiça e o conservadorismo têm que ser deixados de lado.

Nunca se escreveu e se leu tanto quanto nestas últimas décadas. Tantos emails trocados. Tantos blogues criados e abandonados e mais tantos sendo criados neste exato instante. Internet mais acessível. Computadores sendo vendidos a prazo pelas Casas Bahia. E, me parece, que nunca se produziu tantos textos literários, ou pretensamente literários. Ou, pelo menos, nunca se tornou tão visível a produção dos mesmos.

Não é necessário ser um especialista em linguística, nem concordar com as ideias do linguista americano Steven Fischer, para perceber que a língua é viva e dinâmica e se transforma com ou sem o nosso olhar diacrônico.

Segundo Fischer, em mais ou menos 300 anos, nosso querido português brasileiro se transformará em uma espécie de portunhol. Talvez o “portunhol selvagem” já apregoado e bem utilizado pelo nosso “poeta de fronteiras”, Douglas Diegues.

Mas o futuro é incerto. Certo, apenas, é o presente. E o que fazemos dele. Há pouco tempo, ninguém apostaria na influência mundial da Internet. E mesmo atualmente, com a mundialização, ou globalização, quem preveria a emergência de regionalismos e nacionalismos incentivados pela própria Internet?

Temos - nós escritores, editores, professores e amantes da língua – que correr. No mês passado, a gigante editorial americana Simon & Schuster ditou novas regras para seus escritores. E quais são elas? Abrir um blogue. Criar uma página no Facebook. Gerar conteúdo em redes sociais literárias. Enfim, interagir. Sair dos escritórios empoeirados ou da redoma criativa.

A língua exige o mesmo de nós. Que interfiramos no processo. Que escrevamos bem em nossos emails. Que atualizemos constantemente nossos sites e blogues e chats e hot-sites e demais sítios que pudermos. Que escrevamos muitos caracteres, sim. Nada de se curvar à rapidez, às poucas palavras, ao pensamento de que o outro não lerá um texto mais denso. Usemos o Skype. Criemos Podcasts. Deixemos nossa voz reverberar no ciberespaço. Cravemos nossa bandeira lusófona lá.

E no sétimo dia, Deus observando sua criação regozijou-se. No oitavo, o Google chegou e apoderou-se de tudo.


[Texto base de minha participação na Conferência Internacional sobre o Futuro da Língua Portuguesa no Sistema Mundial, dias 27 e 28/03, em Brasília]

10 março 2010

caravana solitária


duas flores desiguais: o amor e o desamor. entre a pétala e a sépala floresce um cosmos. do nascimento à morte o mistério jaz. de um limite ao outro o extremo se perfaz. há gente que mata como quem vive. há outros que imitam um serial killer.

de tudo sobra quase nada. gota de orvalho na manhã do Saara.

os cães já não me seguem. os lugares todos me desertam. vivo pisando no chão dos nefelibatas. toda a vida é um acontecimento sinistro. o segredo da noite recolhe meus cacos. uma flor oferece seu pistilo. eu sigo acariciando meu destino.

06 março 2010

Florilégio

duas flores desiguais:
o amor e o desamor.

entre a pétala
— palavras que machucam,
ações que destroem —
e a sépala floresce
um cosmos.

flor, diz-se que é o órgão
de reprodução sexuada
das plantas superiores.

dor, pressente-se a função
mais desenvolvida
dos seres inferiores.

flores podem ser solitárias
feito poetas em florilégios
ou pertencer a grupos
a gerações não florescentes.

distingue-se uma tulipa
de um homem desacostumado
a humanidades
observando se seu pólen
é levado pelos insetos
ou produzido por eles.

uma flor oferece seu pistilo
um homem destila seus estigmas.

a maioria das flores produz
néctar do qual insetos se alimentam
a maioria dos homens reduz
a fel as esperanças dos seres que imantam.

02 março 2010

Os caminhos da poesia: como chegar efetivamente ao leitor?


[Karla Melo (Calibán), Antonio Cicero, Márcio-André (Confraria), André Vallias e Patrícia (Calibán)]

A questão acima foi o mote para o diálogo em torno do lançamento na Livraria Travessa. O texto enviado pelo Affonso Romano de Sant’Anna, e lido por mim, foi uma instigante isca mordida por quase todos os presentes, o que tornou o ausente Affonso mais onipresente do que ele poderia imaginar. Ele foi, inclusive, chamado “jocosamente” de Santo Romano pelo brilhante e hilário Tavinho Paes – que, depois de responder a cada item levantado por Affonso, me pediu uma cópia do texto.

Aos poucos irei me lembrando dos comentários feitos por cada um dos poetas convidados. No momento, basta dizer que o único que trouxe um texto pronto e, portanto, não entrou no mérito das questões levantadas pelo Affonso foi o mais que lúcido poeta André Vallias.

André leu o texto abaixo e terminou recitando sua resposta/poema presente no livro, que por sinal é um show de síntese, informação e erudição. Vale conferir.


***

"É um prazer poder estar aqui, entre poetas ilustres, numa tradicional livraria carioca, para o lançamento de um livro que nasceu de uma bem-sucedida ação na Internet. Agradeço a Edson Cruz, idealizador da ação e do livro, às editoras Confraria do Vento e Calibán pelo convite.

Devo confessar, todavia, que recebi com ceticismo a idéia do Edson de passar para as páginas de papel a iniciativa que se realizava com tanto sucesso em seu blog Sambaquis.

Quando ele, entusiasmado com a variedade e qualidade das respostas que estava recebendo para o questionário que enviara aos poetas, perguntou-me sobre o que achava do projeto de se fazer um livro com o conteúdo, desaconselhei categoricamente e sugeri que fizesse um site, com uma estrutura de banco-de-dados mais eficiente do que a de um blog comum, que facilitasse ao internauta a visualização dos poetas, que não o limitasse em quantidade de páginas, etc.

Vícios do meu ofício de desenhar sites. Idiossincrasias de um poeta cuja primeira publicação não se deu através de um livro, mas por meio de uma exposição, não muito longe daqui, por sinal, na Galeria Macunaíma/FUNARTE, que pela primeira vez abria espaço para a chamada “poesia visual”.

Constato agora que estava errado. Dificilmente Edson alcançaria repercussão igual àquela que está atingindo com o lançamento deste livro, se tivesse dado ouvidos a este desastrado conselheiro digital. Um claro e irrefutável atestado de que o livro, apesar de morto, continua muito vivo!

Mas me pediram para falar sobre “Os caminhos da poesia: como chegar efetivamente ao leitor?”

Não posso ver ou ouvir a palavra “caminho” sem que não me venha à lembrança os versos do admirável poeta espanhol Antonio Machado. Alguns de seus “Proverbios y Cantares”, do livro “Campos de Castilla”, reunindo poemas escritos entre 1907 e 1917, contêm algumas das mais belas e concisas reflexões poéticas sobre o tema. Tomo a liberdade de ler dois dos 53 que compõe este primeiro ciclo de provérbios e cantares: o de número 29, o mais conhecido deles, e o de número 44:

XXIX

Caminante, son tus huellas
el camino, y nada más;
caminante, no hay camino:
se hace camino al andar.
Al andar se hace camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante, no hay camino,
sino estelas en la mar. .

XLIV

Todo pasa y todo queda;
pero lo nuestro es pasar,
pasar haciendo caminos,
caminos sobre la mar.

Incrível a simplicidade, a força, a profundidade desses poemas. E, no entanto, por mais admiráveis que os ache, assusta-me a inexorabilidade de suas imagens.

Quando reuni, em 1997, uma primeira coletânea de poemas na Internet – ou melhor dizendo, quando criei, há 13 anos, um poema-site que coligia de forma não-linear adaptações para web de poemas compostos desde 1988 no computador, e alguns concebidos originalmente para os recursos interativos e multimídia então disponíveis na Internet, dei-lhe o título “A leer – Antilogia Laboríntica”.

A obra foi inaugurada numa exposição de “Arte e Tecnologia” em São Paulo. Entre os textos que distribuí pelas telas de navegação, para orientar/instigar o percurso por demais enigmático para os padrões usuais, o seguinte, que remete à inusitada homografia entre as palavras de dois idiomas – “leer” (infinitivo do verbo “ler” em espanhol) e o adjetivo alemão “leer” (= vazio) – e termina com uma citação de Otavio Paz, extraída de seu ensaio “El Mono Gramático”:

para se ler ou talvez
leer (de laere, lari)
no alemão = vazio:
etimologicamente, aquilo
que de um campo ceifado
pode ser ainda recolhido
(aufgelesen): de lesen
= catar, separar,
ler... ou talvez
“caminar: leer un trozo
de terreno, descifrar
un pedazo de mundo.
la lectura considerada
como un camino hacia...”

Numa outra tela, os versos do poeta judeu-romeno de língua alemã Paul Celan:

lies nicht mehr – schau! não leias mais – vê!
schau nicht mehr – geh! não vejas mais – vá!

Mais adiante, uma referência à homofonia entre a expressão “a leer” (para se ler) com o verbo francês “aller” (= ir). (Mais adiante ou anteriormente, pois como a navegação do site ocorre de modo “não-linear”, não há como determinar de antemão o que vem antes ou depois). O termo “não-linear”, aliás, talvez indusa a um equívoco: de que se trate de algo que prescinda ou renuncie ao “linear”, quando o que se dá é, mais precisamente, uma pluralidade de trajetos.

Talvez devessemos falar de pluri- ou multi-linearidade.

Há uma palavra que define melhor o campo de múltiplos trajetos, de pluri-linearidade de uma obra dita “não-linear”: “circuito” que vem do latim “circuire”, andar em círculos, uma palavra que foi apropriada pela engenharia elétrica e de computação, embora a usemos sem desconforto na expressão “circuito cultural”.

É curioso como a civilização ocidental cultivou um preconceito em relação à circularidade: fala-se em “círculo vicioso” sem jamais se mencionar a perversidade de uma única reta; perdidos numa floresta, que sensação mais dramática do que constatarmos que estamos andando em círculos?; sem falar no implacável “circulando, circulando” que uma autoridade policial costuma dirigir aos desocupados, com aquela fatalista certeza de que todos voltarão para importunar a ordem pública…

Suspeito que isso decorra da extrema aceleração do processo de leitura propiciada pela disseminação do alfabeto fonético – essa impressionante criação de mercadores fenícios de 3 mil anos atrás –, alavancada pelo aprimoramento da tecnologia da impressão – os tipos móveis de Gutenberg, há 570 anos –, etc. etc.

Nos tornamos leitores compulsivos e silenciosos, obcecados por chegar ao fim da frase, ao fim do parágrafo, ao fim da página, ao fim do capítulo, ao fim do livro.

Acredito que a poesia, aquém e além de qualquer procedimento tecnológico, aquém e além de qualquer literatura – porque os circunda e permeia – seja uma eterna resistente ao inexorável “sempre em frente” da linha reta…

Nessa altura, vocês já devem ter percebido que dei voltas e mais voltas sem chegar ao tema deste debate. Assim é:

“Caminante, no hay camino:
se hace camino al andar.”

Passo agora à leitura de minha contribuição ao livro, ou melhor, à resposta que dei à primeira pergunta de Edson Cruz: aquela que deu título ao livro cujo lançamento motivou este prazeiroso encontro."

01 março 2010

Rio sob chuva


[Victor Paes, Tavinho Paes, Antonio Cicero, André Vallias, Márcio-André, Luis Serguilha, Karla Melo e Edson Cruz]

Na tarde de quinta, dia 25, fui para o aeroporto de Congonhas com antecedência mineira tomar o voo que me levaria ao Rio de Janeiro. Às 17h30, aconteceria o lançamento, na Livraria Travessa da rua Ouvidor, do livro “O que é poesia?”.

Confesso que não estava muito animado, pois, ainda em São Paulo soube que o aeroporto Santos Dumont estava fechado e alguns voos haviam sido redirecionados para o Galeão. Se isso acontecesse, não conseguiria chegar a tempo do evento. Além do mais, o horário me soava meio esquisito (impensável para um lançamento aqui em São Paulo) e, para complicar, havia a chuva (dizem que os cariocas não saem de casa quando está chovendo).

Por sorte, o aeroporto foi liberado e, quase no horário previsto, o avião taxiou sobre a cidade dita maravilhosa sob nuvens impedindo-me de apreciar o que dizem ser uma das mais belas paisagens aéreas do mundo. Paisagem que preciso contemplar antes de 2012, pois a julgar pelo filme catástrofe que está rolando por aí, ou pelas previsões do calendário da vez, o Maia, ou pelas observações de James Lovelock em seu novo livro, parece que não vai durar muito.

A trinca de confrades do vento, Márcio-André, Victor Paes e Ronaldo Ferrito estavam umidamente me aguardando. Já foram reforçando meu temor e predisposição sobre os cariocas. Chuva não combina com carioca nas ruas.

A divulgação do evento foi mais do que “profissa” e generosa. Deu no jornal, no rádio. Saiu resenha. Um belo contraste com o desprezo gelado da mídia paulistana para o lançamento feito na Casa das Rosas. Afinal, tanto como em São Paulo, no Rio conseguiríamos reunir uma turma de poetas bacanas de várias gerações e tendências: Affonso Romano de Sant’Anna, Antonio Cícero, André Vallias, Márcio-André, Victor Paes, Tavinho Paes e o português Luis Serguilha.

O poeta Affonso Romano não pode comparecer pois teve compromissos em Nova York. Escapou da chuva, mas topou com muita neve. Mandou um pequeno texto provocador que li na abertura do evento e que norteou muitas das questões e comentários na Livraria da Travessa. Confiram.


O QUE (NÃO) É POESIA
Affonso Romano de Sant’Anna

O poeta Edson Cruz organizou o livro de depoimentos: O QUE É POESIA. É um livro generoso. Ouviu 46 poetas brasileiros e alguns estrangeiros. O volume foi lançado primeiro na Casa das Rosas (SP) com direito a debates, poemas, música. Foi lançado esta semana na Livraria Travessa (Rio). Eu deveria estar lá, mas tive que ir a NY. Pensei em pedir que lessem apenas um poema meu que trata do tema. Depois pensei: poderia fazer um curto depoimento sobre certas questões que marcam a poesia brasileira hoje. Afinal, há mais de 50 anos que estou na estrada e vi coisas de que nem Deus mais dúvida.

Naquele livro, minha definição de poesia é, talvez, a menor de todas: " Poesia é o espanto transverberado". Na Casa das Rosas sugeri que se fizesse outro volume igual/contrário/complementar: O QUE (NÃO) É POESIA. Aprende-se também virando as questões pelo avesso.

Então, acrescento agora algumas questões que me parecem atuais. Cada uma delas merecia o capítulo de um livro e horas de discussão.

1. Quanto mais a poesia se distanciou do público mais começou a conversar (solipsisticamente) consigo mesma. E o contrário é verdadeiro: mais os poetas se fecharam em seus solilóquios de "autistas", mais se afastaram do público.

2. As vanguardas, em geral, praticaram a "estratégia da exclusão": ou seja, a história da poesia contém eu e três amigos, o resto é lixo. A "estratégia de exclusão" é uma política de poder e com ela a poesia brasileira se empobreceu. É posição dos que acham que eliminando o outro vai sobrar espaço para si. É tão danosa quanto uma estratégia de inclusão indiscriminada.

3. A aproximação entre música popular e poesia erudita é um fenômeno que mereceu teses e livros (meu inclusive). Mas nem toda letra de música é poesia. E acresce que se praticou uma poesia contaminada pela "letra de música" que, sem música, é precária.

4. Considerando uma certa produção em voga observa-se que se perdeu um "métier" do tratamento do verso enquanto unidade rítmica e formal. A indiferenciação entre prosa e poesia é um equívoco.

5. O poema curto, engraçado, tipo jogo de palavras, pode ser uma praga. Mário de Andrade lamentava "o poema piada feito para dar risada". Não é que não se pode/deve fazer poema com humor, mas transformar isto de novo em "moda" é um renovado equívoco.

6. No Brasil criou-se a falácia que o poeta tem que saber várias línguas e ser tradutor de outros poetas. Alguns poetas imigraram para a poesia alheia abandonando a sua possível poesia.

7. Poesia brasileira não é só Drummond e Cabral, que, aliás, se hostilizavam. Cabral dizia que Drummond "desbocou" depois de "Brejo das Almas". O que é uma tolice.

8. Há que reativar a obra de poetas esquecidos, detonados na guerra entre os grupos e gerações. É necessário reinventar a crítica de poesia no Brasil e prestar mais atenção em poetas fora do eixo Rio/São Paulo.

9. Enfim, somos meia dúzia de gatos pingados. Por que ficar se estraçalhando em praça pública? Avareza (formal) não conduz necessariamente à poesia. Às vezes, ela surge do seu oposto, da generosidade.