18 maio 2020

ARCANOS





















escavar a memória cósmica
dos homens
e fazer a arqueologia
de uma possível eternidade.

recuperar aquela mística cintilação
que se apagou
e desbaratar a teia que enreda
todos os segredos.

despertar a alma que viaja
cega e inconsciente
e torná-la plena anfitriã
deste momento.






16 maio 2020

SAGRADO


















   labareda e sua língua
   de ímpetos.
   claridade que nos toca
   compassiva.
   aquele ardor de tempos
   remotos.
   o rumor de épocas
   futuras.
   a luminescência de seres
   irmanados.
   o amor, o amor, o amor.




15 maio 2020

DHARANI















palavras são instiladas com a energia
da vida.
jvale mahajvale
uma lei maravilhosa permeia o cosmos
e rege tudo o que pulsa.
uke muke ate atavati
som e sentidos se apossam da conversação
do mundo em eterna hesitação.
nrite nritavati
a vontade de potência se manifesta
na palavra emancipada.
itini vitini chitini
um bom poema é uma catedral de dharanis.
nritini nrityavati
um waka ideograma todo o Japão.
novas palavras criam novas realidades.
a palavralada como flecha lançada
não retorna mais.
myoho renge kyo
o cerne do ser é atingido
no alvo.




dharani, do sânscrito, frase ou fórmula mística que tem o poder de proteger e beneficiar quem a recita. “Dharani” é interpretado nas escrituras budistas chinesas como “sustentar”, “manter” ou “reter”. Dizem que a pessoa que mantém e recita um dharani é considerada hábil em se lembrar de todos os ensinamentos do Buda e em rechaçar influências maléficas. Nome do capítulo 26 do Sutra do Lótus.




14 maio 2020

O PUM DOS PALHAÇOS












os caras vão morrer
nas ruas
igual baratas.
as caras, sentadas
no sofá da sala.

é só mirar sem dó
na cabecinha.
eliminar as mamadeiras
de piroca.

(deixar entre parênteses
os generais)

colocar um pastor
em todas as paróquias.
destruir de vez
o marxismo cultural.

convidar a Porcina
pra dar um tapa na biboca.
e instituir a goiaba
como fruta nacional.




13 maio 2020

O MENDIGO













o mendigo morreu.
calado.
calejado da luta pela vida.
herói anônimo de tantos
milagres econômicos.

não teve homenagens póstumas.
nem epitáfios espirituosos.

foi enterrado
sem pompas em cova rasa
o indigente.

apenas
um sabiá trinava
ao ouvido do morto
um canto melancólico
e pungente.





[do livro Sambaqui, Crisálida Editora, 2011]


12 maio 2020

OROBORO






























apesar de já conhecer
o final da jornada
volto-me sobre mim mesmo
como quem não quer nada
e perfaço quase distraído
todos os momentos
da viagem.





11 maio 2020

SANTOS






















navios continuam a entrar e a sair de seu porto.
na cidade, alguns prédios se portam como bêbados
a pisar em areia movediça.
os fantasmas do centro exalam um aroma denso de café.
a música de Gilberto Mendes ecoa
no megafone do tempo.
a livraria Realejo continua lotada aos sábados
e a poesia de Marcelo Ariel eternizou
a memória fumegante de Vila Socó.
o técnico do time da cidade fala hoje
um português castiço
e o mar continua a envolver a tudo por igual.
o quebrar das ondas à noite
ainda nos revela o estrondo original 
do Big Bang.
quantos já prestaram atenção ao rumor 
que reverbera a caixa acústica da alma?
aquela longínqua esperança que sobrevém
de um horizonte em total escuridão.
o desaguar da pororoca branca na areia.
o grito de gol 
em uma nostálgica e iluminada Vila Belmiro.



09 maio 2020




































chove no coração destroçado
da floresta.
mas ela ainda está lá,
com seus pássaros e animais
quase intactos.
por aqui, nada mais resta.
só cactos atravessados
em nossa goela
e a aspereza intratável
de seus gestos.


[Uma das propostas de capa do brilhante fotógrafo Ninil para meu próximo livro. Confira seu trabalho aqui]





08 maio 2020

QUARENTENA EM DUAS ESTROFES




por Leopoldo Ponce e Edson Cruz

A voz do Serafim fala conosco nestes dias
Pesa sobre tudo, como um lenço retumbante
Planícies se abrem nas têmporas
O tempo não existe, só a experiência
E a imanência constante do fim de algo que não se identifica
Que era até então chamado realidade.

De nada nos adiantou a visão privilegiada do possível
O instante pesaroso do que era o real nos consome
Como se fôssemos meras ondas e/ou partículas
Devoradas pelos buracos negros espalhados
Por uma pele cósmica, eterna e insone.



[imagem: obra “Meteoro”, de Leopoldo Ponce]


Leopoldo Ponce, nasceu em 1976 em Quito, Equador. Vive em São Paulo desde 1991. Desde 1998 desenvolve práticas e investigações artísticas que partem de um interesse nas mútuas influências entre ser humano e habitat, numa tentativa de articular narrativas e rastrear indícios de uma mneme mítica, no acúmulo de derrelitos da vida cotidiana. Outras obras, aqui: http://retornodeutopia.tumblr.com 







07 maio 2020

PERIFERIA


libélulas de fogo.
helicópteros e seu metralhar
de hélices.
o descaso de novo
a espalhar o vírus renitente
da morte.

05 maio 2020

CRIPTOGRAFIAS



não há nada que se faça
letra muda.
alfabeto que não possa
ser desnudo.
caractere que em cifra
se transmude.
inscrição seja no Sutra
ou no Talmude.

marcas d´água
que se mostram indeléveis.
garatujas
desenhadas sobre peles.
rasuras
em um livro tuaregue.
união
em uma língua extraterrestre.




23 janeiro 2020

Literatura, leitura e cultura em tempos digitais (para professores)


Agradeço a oportunidade de expor e dialogar com vocês sobre assuntos que me interessam muito e que envolvem o meu dia a dia nos últimos anos.

Pra começar, tenho que deixar claro que não falo como um especialista, nem como autoridade sobre o assunto. Sou movido pela minha curiosidade de poeta e de leitor que me fez correr e comprar o meu primeiro computador logo que me foi possível financeiramente, em 1999.

Sempre fui aberto a novidades. E assim foi com o computador pessoal. De lá para cá, por uma série de contingências e oportunidades práticas me inseri de cabeça no olho do furacão.

Em pouco tempo, estava editando sites relevantes de Literatura. O site CAPITU e, posteriormente, meu próprio site, o CRONÓPIOS, de onde saí em 2009 e que acabou se tornando referência de literatura contemporânea na internet.

Este 2012, montei outro site dedicado a circulação e divulgação da literatura contemporânea, o site MUSA RARA.

Com alguns livros publicados, tenho trafegado com prazer e curiosidade nestes dois mundos: o impresso e o digital. Mas, apesar disso, como boa parte dos presentes aqui hoje, posso dizer que sou um emigrante em um ambiente onde os mais jovens são nativos. E isso, no final das contas, faz muita diferença.

Apesar dessa aparente dicotomia, a meu ver, a primeira coisa que devemos firmar em nosso modo de enxergar o que está acontecendo é que estes mundos não estão mais separados. Vivemos, quer queiramos ou não. Quer saibamos ou não. Quer aceitemos ou não, em uma CIBERCULTURA e urge que a reconheçamos e a entendamos nem que seja um pouco. Ou que façamos o salto histórico que alguns já vem fazendo pelo mundo.

Precisamos fazer um BURACO NO MURO de nossos preconceitos e paradigmas, saltar séculos sem medo. Convido-os a assistir comigo a experiência reveladora feita pelo pesquisador indiano Sugata Mitra.



Que fantástica experiência essa, não? Ao conhecer o trabalho deste pesquisador sério, fiquei mais otimista ainda com as possibilidades da cibercultura.

Para compreendermos a cultura digital de nossa época é sempre bom relacioná-la com as anteriores. As denominadas de cultura oral, cultura escrita, cultura impressa, cultura de massas, cultura das mídias e, por fim, a cultura digital. Ao lado desta continuidade sequencial de períodos, vistos do ponto de vista histórico, há uma coexistência geradora de hibridismos e convivências culturais, no dizer da professora Lucia Santaella.

Nas sociedades orais, as mensagens discursivas são sempre recebidas no mesmo contexto em que são produzidas.

Após o surgimento da escrita, os textos se separam do contexto vivo em que foram produzidos. É possível ler uma mensagem escrita cinco séculos antes ou redigida a cinco mil quilômetros de distância – o que muitas vezes gera problemas de recepção e de interpretação.

Para vencer essas dificuldades, algumas mensagens foram concebidas para preservar o mesmo sentido, qualquer que seja o contexto de recepção: são as mensagens ‘’universais’’ (ciência, religiões do livro, direitos do homem etc.).

A cibercultura leva a co-presença das mensagens de volta a seu contexto como ocorria nas sociedades orais, mas em outra escala, em uma órbita completamente diferente.

A questão sobre a expansão das novas tecnologias e sua influência na cultura deu as caras no século passado, mas suas exigências se fizeram incontornáveis de alguns anos para cá. O computador e o campo de significações da Internet são todos colocados no mesmo saco, melhor dizendo, na mesma rede. A parte mais popular desse processo é a World Wide Web, o conhecido WWW, que a rigor é apenas a interface gráfica da Internet. É através dela que nos conectamos com os sites, sítios, blogues e demais páginas com o intuito de divulgar, de criar ou apenas de nos relacionarmos.

Aqui abro um parênteses para explicitar este conceito que poderia ser a síntese de nosso diálogo de hoje: CIBERCULTURA.

Para Pierre Lévy, Cibercultura é um neologismo que especifica o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de attitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço.

Ciberespaço, que ele também chama de rede, é o novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores. O termo especifica não apenas a infraestrutura material da comunicação digital, mas tbém o universo oceânico de informações que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo.

Voltando a questão da interface nessa confluência de informações em rede, lembremos, Segundo Pierre Lévy, que a noção de interface não deve ser limitada às técnicas de comunicação contemporâneas. Ele lembra que o próprio advento da impressão gerou uma interface padronizada e original com seus cabeçalhos, páginas de títulos, numeração regular e referências cruzadas.
Em última instância eu penso que a própria palavra é uma interface com o plano das ideias, das informações e dos sentimentos e, para discordar de Saussure, não totalmente arbitrária, enquanto signo, como nos mostrou as experiências do psicólogo Wolfgang Köhler registradas em seu livro Psicologia da Forma.

O que dizer, então, da literatura com sua galáxia de sentidos que, no dizer do escritor cearense Carlos Emílio C. Lima, cria “cinemas mentais” em fluxo não linear e em várias dimensões?

Com o advento da linguagem digital, inesperadamente, a escrita impressa e a linguagem habitual do livro, a literária, feita de letras, sintaxe, sintagmas, morfologia e conotações ganhou em importância. Jovens educados e criados em um ambiente predominantemente visual, saturados de imagens e ícones da cultura contemporânea, começaram a se voltar para a linguagem escrita estimulados pelo correio eletrônico, MSNs e outros diálogos entre suas comunidades sociais. Os que chegaram à fase do consumo de informações na última década, por bem ou por mal, estão utilizando da expressão literária, rudimentar ainda (calcada ainda mais em sua função fática do que poética), mas sujeita ao aprimoramento natural determinado pela própria necessidade de se exprimir.

Chegamos, então, a uma palavrinha que está na moda no meio virtual e que se configura como característica essencial dessa nova era, ou da cibercultura: o hipertexto. Blocos de informações conectados por meio de elos ou links, capazes de permitir aos navegadores que se movam livremente aí dentro e que nos colocam diante de uma nova máquina de ler, que faz de cada leitor-navegante um editor em potencial redirecionando os paradigmas que balizavam as antigas formas de produção e recepção de discursos.

O texto, nessa baliza, passa a ser efetivamente uma galáxia de significantes, não uma estrutura de significados. Segundo George Landow, em seu livro Hipertext 2.0, os textos não têm mais início, são irreversíveis e possibilitam acesso por diversas entradas das quais nenhuma poderia ser autoritariamente declarada única, como queria Roland Barthes em suas análises da escritura.
E a pergunta que interessa a nós todos e que não quer calar:

Como formar leitores em uma sociedade que sofreu a mudança drástica da cultura impressa para a digital e do paradigma da leitura para o de navegação. Como a escola pode formar leitores nessa contemporaneidade, quando impera uma cultura na qual os professors aderem como emigrantes, enquanto os alunos são os nativos?

E como fazer desse leitor, que passou a ser chamado de leitor imersivo, típico da cibercultura, um leitor que não é mais um solitário que segue as sequências de linhas, páginas e capítulos até o limite do livro, imaginando ou refletindo, um leitor zapper que ziguezagueia como um pássaro, torná-lo um leitor intérprete e produtor de sentidos?

E como potencializar as possibilidades de interatividade e multilinearidade da internet em favor da apreensão de saberes mais complexos em sociedade de lan house, onde reina o sensorial, o efêmero e a superficialidade dos chats e jogos virtuais?

Em primeiro lugar, penso, que deixando de pensar que tudo é efêmero e superficial na linguagem digital, na internet e na cultura digital. Precisamos suspender o preconceito e imergir no universo dos adolescentes para aprender com eles, compartilhando as várias visões de leituras que já adquirimos.
A postura de aprendiz e a convicção de que nenhuma forma de leitura é superior à outra, pode ser uma boa estratégia para nosotros de outra geração. É justamente na tangência entre as culturas – digital e impressa – que reside a riqueza do momento contemporâneo e é nessa troca que se abrem novas possibilidades de ensino e diálogo.

Não se trata mais de ensinar a ler na concepção clássica, mas de ‘ler’ além da linguagem verbal, a visual, a auditiva, olfativa, gustativa, bem como os gestos, as cores, a moda, o comportamento.
Sabemos que, no sistema eletrônico, imagem, palavra e som são articulados e provocam uma percepção sensorial sinestésica, imediata e móvel. Essa forma de interação distancia-se daquela contemplativa, reflexiva para tornar-se dinâmica, com possibilidades de metamorfoses, desvios, labirintos sem volta, em que a leitura não tem mais um início, meio e fim.

Preparar-se e preparar o outro para viver em tempos de cibercultura é estar aberto para aprender sempre. Para lidar com o conhecimento como algo sempre inacabado e passível de ser compartilhado sem hierarquias. Já não sou mais o sabedor. O conhecimento está dado. As pessoas chegam a ele sozinhas e muitas vezes mais rápido se eu não atrapalhar.

Talvez o que possamos fazer é problematizar um aspecto ou outro. Já que o leitor imersivo atua como editor ao escolher o que quer ler, talvez seja mais importante agora ensinar a ter critérios de escolha de fontes de leitura no mundo virtual.

Por exemplo, nas novas formas de leitura interativa, os blogues são essenciais. Podemos indicar os blogues de escritores, que se preocupam em não usar indiscriminadamente o internetês, e até propõem interatividade na construção de suas narrativas. A popularização dos escritores nos blogs, com sua presença e diálogo que as próprias editoras já recomendam, com conferências virtuais, etc, pode ser capaz de alterar o padrão de consumo intelectual e interferir nas escolhas de livros dos leitores em formação.

Calcula-se que em um ano ou dois a venda de PCs seja superada pela de tablets, formato no qual a interação é explorada ainda mais. Os jornais e revistas impressas praticamente irão desaparecer e migrarão para os tablets que já permitem visualização confortável e bonita e com muito mais atrativos.

Do ponto de vista da língua, observamos que, com a internet, ao contrário do que muitos apregoavam, ocorreu um crescimento da diversidade, com regionalismos, nacionalismos e expressões de minorias. Escreve-se cada vez mais e não é o inglês que domina como poderíamos supor observando um “universo”, que até 2006, era dominado por sistemas operacionais da Microsoft.
No entanto, a língua é um organismo vivo, mutante e, claro, já sofre as contaminações dos novos suportes. Apesar disso, não acredito no que diz o linguista norte-americano Steven Fisher quando afirma que o português brasileiro vai ser extinto em mais ou menos 300 anos. O argumento dele tem uma lógica linguística, a partir do conhecimento que temos da dinâmica de outras línguas e outras análises diacrônicas. Para ele, o português brasileiro não resistirá a influência econômica e cultural do espanhol (afinal, o espanhol já é a segunda língua mais falada no Ocidente) e se transformará em uma espécie de portunhol.

Por outro lado, já flertamos com a Web 3.0, visto que a anterior — a Web 2.0 — banalizou-se como sinônimo de sites e ferramentas interativas que revelaram um leitor ativo na produção e gerenciamento de conteúdos. O resto é nuvem. Ou melhor, está na Nuvem. Ou pior, estamos nas nuvens.

Falamos agora em webliteratura. A literatura em si já não basta. Estamos, os escritores, imersos e fascinados pelas novas mídias e suas facilidades de distribuição e possibilidades ficcionais. E não há como fugir disso. Mesmo que intuídos em pixels e bits, os deuses continuam “hóspedes fugidios da literatura”. Deixam agora seus rastros em rizomas de links e hipertextos que trafegam em diálogo intersemiótico nos chamados i-pads, e-readers, E-books e outros écrans mais ordinários.

Muitos dos que se levantam contra a tecnologia, nos alertando de seus perigos, fazem-no de uma forma muito parecida com a que fez Nietzsche ao declarar sua guerra particular ao cristianismo, ou a Deus, e que acabou revelando muito de sua incapacidade de viver sem eles.

O mito de Narciso usado pelo vovô Marshal Macluhan, quando nos falava sobre os meios como extensão do homem, aponta para o entorpecimento e fascínio que nos atingem quando nos deparamos com extensões em qualquer material que não seja nós próprios. E não por acaso a palavra Narciso originou-se da grega narcosis que gerou a palavra narcótico.

É neste estado paradoxal de dopping cibernético que nos pegamos a pensar e a questionar sobre o que está acontecendo em nossos dias. Não é fácil ter clareza e projetar alguma coisa. Mal estamos dando conta do presente. O que revela que estamos, realmente, despreparados para o futuro, qualquer que seja ele. Paradigmas. Velhas chaves para novas fechaduras.

No diálogo publicado recentemente entre Umberto Eco e Jean-Claude Carrière, “Não contem com o fim do livro”, discute-se com propriedade a efemeridade dos suportes duráveis que pode ser justificada pelo fato de a cada instante surgirem novos suportes e aparelhos que exigem um novo tipo de conhecimento para que possamos utilizá-los. É verdade, nós da geração analógica formada com os livros, e entre os livros, não temos fôlego para tanto. Mas, como podemos observar, a nova geração tira isso de letra.

Os dois belos representantes de nossa cultura impressa, colecionadores de pergaminhos e incunábulos, apontam para uma “ansiedade de produção” e para uma proliferação de romances contemporâneos de autores tão efêmeros quanto a tecnologia que deve atender às necessidades de consumo.

Jean-Claude afirma que “às vezes é útil relativizar nossas pretensas proezas técnicas” ao lembrar que os livros de Victor Hugo chegavam mais rapidamente a outros países do que os best-sellers nos dias de hoje. Por outro lado, podemos concluir também que este fato só revela a incompetência das editoras atuais em se abrirem às possibilidades que as novas mídias nos oferecem.

Mas até elas, as editoras lobodinossáuricas, estão se mexendo. No início do ano retrasado, a gigante editorial americana Simon&Schuster ditou novas regras para seus escritores. E quais eram elas? Abrir um blogue. Criar uma página no Facebook. Gerar conteúdo em redes sociais literárias. Interagir. Contaminar-se. Sair dos escritórios empoeirados ou da pretensa redoma criativa. Abrir-se para as novas exigências e imperativos de uma época de cibercultura.

E no sétimo dia, Deus observando novamente sua criação rejubilar-se-á. No oitavo, o Google, possivelmente, chegará e se apoderará de tudo.



(Confira, também, a imperdível palestra de Sugata Mitra no Brasil: http://www.youtube.com/watch?v=BBzDOS5UrG0).


(Palestra feita para alguns professores da Coordenadoria Educacional da BSGI

13 novembro 2015

Literatura e Formação do Brasil



O Sesc Pinheiros organiza esta série de diálogos sobre a formação do Brasil, da identidade brasileira e da cultura do ponto de vista da Literatura e dos escritores. Me pediram pra mediar o diálogo destas duas figuras tão diferentes e tão sedutoras (cada um a seu modo). Cristovão Tezza é uma simpatia, bem-humorado e muito bem informado. O Marcelo Rubens Paiva, que eu não conhecia pessoalmente, foi uma bela surpresa. Irônico, questionador e educado. O papo poderia seguir tranquilamente em uma mesa de bar, ou na sala de casa.

O Sesc, na figura do brother André Dias - idealizador e instigador do belo projeto -, me pediu também que eu introduzisse o tema com um texto. Compartilho, então, com quem se interessar o texto que li na abertura:

"Dizem que a Literatura no Brasil nasceu a partir dos primeiros escritos de viajantes e missionários europeus que documentavam as informações sobre a terra recém-colonizada. Podemos dizer que o próprio Brasil e os brasileiros foram forjados por esses escritos testemunhais. Sempre pelo olhar do colonizador.

Embora esses primeiros escritos não possam ser considerados como Literatura de fato, por estarem demasiadamente presos à crônica histórica, são compreendidos como o ponto de partida para a formação de nossa identidade literária e cultural.

Sabemos, também, que há várias visões e narrativas sobre o que seria e o que poderia vir a ser o Brasil, o brasileiro e a sua cultura em formação.

Para um escritor, tudo não passa de narrativas.

Será interessante ouvir o que escritores pensam sobre essas narrativas; narrativas que não foram forjadas só pelos historiadores, mas também pelos próprios escritores no afã de entender o que seria este país que abraça povo tão exuberante e contraditório.

Alguns de nossos escritores se rebelaram contra o argumento de que nós seríamos a projeção de uma utopia europeia; aquela Visão do Paraíso descrita por Sérgio Buarque de Hollanda. Outros construíram seu olhar narrativo buscando formatar esta utopia projetada pelos europeus. Outros ainda diziam: “Não há o que desculpar. Todas as colonizações são más, mas esta resultou em algo extraordinário que chamamos Brasil.”

O filósofo Paul Ricoeur compara o homem contemporâneo e o historiador com o sonhador e o narrador do sonho.

O contemporâneo é o sonhador; seu vivido é como o sonho. Ele vive e convive com a noite, entre eventos desconexos e desarticulados. Vive o mistério de um espetáculo desconhecido que é a sua própria vida e ele a sua própria expressão.

O historiador é o sonhador no dia seguinte: um narrador do seu sonho. Acordado, ele tentará se lembrar do que sonhou e fará uma narrativa do sonho. A narrativa não é o sonho ou a sua vivência exatamente, mas sim, um esforço de organização e atribuição de sentido.

Os escritores, eu acrescentaria para complicar, são uma soma de tudo isso: além de sonharem e serem exímios em narrativas sonhadas ou vividas, narram o que ninguém ousou sonhar ou viver. Inventam e, às vezes, suas invenções são mais reais do que o rei.

Eles seguem observando, idealizando e gerando novas e extraordinárias narrativas. Não necessariamente nesta ordem:

José de Alencar e sua lenda fundadora da nacionalidade: a imagem majestosa do ameríndio Peri.

Euclides da Cunha e sua construção da figura do sertanejo (aquele que é, antes de tudo, um forte).

Gilberto Freire e sua visualização de um novo mundo nos trópicos: segundo ele, a mais bem-sucedida experiência da colonização portuguesa.

Mário de Andrade, suas pesquisas etnográficas e sua identificação do brasileiro essencial: Macunaíma, o sonso sabido, o herói irresponsável, o consequente-inconsequente, aquele sedutor que não sustenta nenhum projeto.

Sergio Buarque de Hollanda e sua busca pela alma da terra brasileira nas raízes da lusitanidade; as relações patrimoniais escoradas no favor e revelando o verdadeiro caráter do “homem cordial” brasileiro. E concluindo que o futuro só poderá ser construído com o rompimento com parte do passado aprisionador.

Caio Prado interpretando de forma materialista os ciclos econômicos do Brasil.

Antonio Candido que, enquanto a elite se empenhava em formar uma nação, se empenha com a sua Formação da Literatura Brasileira, sua identificação de momentos decisivos.

Alfredo Bosi e sua dialética da colonização. Percebendo e iluminando-nos a respeito das relações entre as palavras ‘colônia’, ‘culto’ e ‘cultura’ (colo-cultus-cultura), ou seja, que na raiz do nome ‘colônia’ e do verbo ‘colonizar’ está o verbo latino ‘colo’, de cujas formas participais derivam os termos ‘culto’ e ‘cultura’.

Roberto Schwarz e a identificação de nossas ideias fora do lugar, onde tenta elucidar como se deu a leitura de uma sociedade na qual as ideias liberais foram solapadas pela realidade de um país escravocrata e socialmente atrasado, em que o favor era a moeda corrente.


E, por falar em país escravocrata, não podemos esquecer do escritor modelo e copiado, idealizador da Academia Brasileira de Letras, seu primeiro presidente, o negro enrustido Machado de Assis. Pai, em alguma medida, de todos nós.”