16 julho 2020

MELANCHOLIA




















A criação de Homero.
A eloquência ágrafa
de Sócrates.
Os desenhos de Leonardo.

As suítes sublimes de Bach.
Os píncaros de Beethoven
e seus quartetos de corda.
O spleen e seus poetas visionários.

A viagem babélica de Joyce.
Os múltiplos sentires de Pessoa.
O Grande Sertão de Guimarães.
As obras-primas de Tarkovski.

Podem significar pouco.

Uma criança esquálida tomba
neste instante
feito árvore na floresta.

Não existe mais.
Nunca existiu.

Nenhuma arte a tocou.
Nem o corvo do Alan Poe.

Só ela que me toca
faz toc-toc
mostra os dentes
neste poema quase
transcendente.



[Gravura Melancolia I by Albrecht Dürer, 1514]








15 julho 2020

GONFOTÉRIOS NA PAULISTA
















quando os helicópteros tomarem os céus
de assalto e não houver espaço para mais arranha-céus
arranharem a nervura dos pés de Júpiter

sairei pela Paulista nu e mijarei na vitrine de todas
as lojas de roupas masculinas.

quando Hollywood invadir a tela
de meu micro e não houver mais tempo para que o ouvido
escute o soar das libélulas em cópula

me tornarei um vírus paraguaio e sedento a infectar
jovens virgens e sardentas.

quando tudo que criamos der em nada
e meus sonhos mais malucos couberem num grão
de chip Made in India

vestirei minha máscara de gonfotério e sairei
por aí a procurar alfaces cultivados em bacias d’água.

tudo isso farei ao som de um mantra tão exótico
que a solidão dos seres vibrará em uníssono supersônico
e arrasará o que ainda restar de escombros e sonidos.







14 julho 2020

KOAN

























A palavra escrita é o túmulo
da palavra
(f)alada.

A palavra dita é uma súmula
da palavra
pe(n)sada.





[Black Koan, 1990 – by Liliane Lijn]












13 julho 2020

ZOOM

















        Carpe diem.
        A vida é
        curta.

        Carpas riem.
        O azul do dia
        zune.

        O céu refletido
        nas águas.
        Lume.






12 julho 2020

INSÍGNIA



























    habito
    este mundo

    ave do paraíso
    sem pernas

    rascunho
    que não pousa

    nunca












11 julho 2020

PALIMPSESTO














          toda poesia já
          escrita

          não se equipara
          a toda poesia

          inscrita
          a poesia jaz






Imagem:  “Palimpsesto”, de Denis Brown - acrílico sobre papel, 1993 (British Library).








10 julho 2020

O MITO






Quando a noite vem cobrir
o pensamento
feito um urso polar a abraçar
a sua amada
agradeço à dádiva absurda
de ainda estar vivo.

Lembro-me da rara insensatez
dos Gregos
ao postularem que seus homens
mortos ainda jovens
seriam mais amados
pelos deuses.

O fato é que não 
escolhemos como morrer
nem os deuses que porventura
virão a nos receber.

O que nos cabe - se formos
sábios - é não aspirar
à vida imortal
e, como Píndaro, esgotar
o campo do possível.
Viver o instante que nos redime
e glorifica.


O agora, a mãe
geradora de todos
os futuros
impossíveis.





[Imagem: poema de Augusto de Campos]








09 julho 2020

SINAL VERDE


















tantos anos se arrastaram
já não me lembro de minha infância
será que a tive, ou foi um sonho?

tudo se resume a uma noite
noite de escolha e enfrentamento
ali, me fiz na solidão azul
do nascimento

“se não quer ir ao culto
que fique aí, sozinho!”

fiquei ali, e ainda estou...
em casa escura e sobressaltada
por sombras e faróis relampejando
abandonado de deuses e de afetos

não dormi, como não durmo agora
não fugi, como nem posso embora
ali, a vontade de meu eu se impôs
minha porção de dor se amarelou

permaneci na infinitude do possível
e assim abraço o totem
de vida que sutil me resta

na contingente luz verde que se revela
aceito humilde e resignado
o gentil açoite da morte que me espera.






08 julho 2020

CARMA























o destino guia os passos
dos que assim o desejam.

honra aos que em missão
lhe transformam o enredo.

arrasta aos que por medo
se contentam com o degredo.

faz bailar a todos
mesmo a música sendo apenas
um arremedo.











07 julho 2020

EU












um ser
atônito feito um deus
absorto

em meu rosto
gotas de um mar
morto.










     [Foto by Min An de Pexels]



















06 julho 2020

FLOR DE LÓTUS












se no hoje contemplamos o ontem
o que dizer do amanhã que nos almeja?

se no tanque afogamos a rã
o que fazer da morte que nos beija?

se no voo a libélula se espanta
o que escrever com o sangue que goteja?









05 julho 2020

TARTARUGA CAOLHA E O TRONCO FLUTUANTE






















[a propósito de uma parábola budista]


para se traçar um simples gesto
não basta armar-se de vontade
a luz mente e na direita está o sestro

é preciso saber esquecer a própria idade
pois nas profundezas de um mar escuro
até o sândalo não conduz à claridade

pode-se viver por muito tempo obscuro
tateando diante de si o tal anseio
feito criança na noite inseguro

a almejar o tão amado enleio
sem nenhum ontem em círculo vazio
ou amanhã que traga algum esteio

pode-se esperar milanos o tronco arredio
e súbito vê-lo passar com enganosa visão
ou tentar alcançá-lo feito gato no cio

como um quelônio sôfrego a exaustão
a deparar-se com mais um logro desvario
o sândalo na onda indo noutra direção.












04 julho 2020

O QUARTO LIVRO DO PENTATEUCO






















[para os que ainda dão importância ao Livro]




O recenseamento

a terra prometida
precisa ser conquistada
a cada dia.
os números são mais
do que a representação gráfica
de uma quantidade.
a rota que traçamos no deserto
são marcas que esvanecem
ao nascer do sol.



Oferendas

o total dos seres oferecidos em holocausto
é inumerável.
e só faz crescer.



A partida

nem tudo foi celebrado
o tempo se mostrou indeterminado.
no dia da partida, uma nuvem
encobriu a todos e a tudo.
durante toda a noite
notava-se o seu aspecto de fogo.
trombetas soaram
como agulhas no ouvido.
o momento da partida chegara.



Novos arranjos

a cada segundo
são vendidas sete unidades
de leite Moça no mundo.

a cada vinte e três minutos
um jovem negro é morto
no Brasil.

a cada vinte e quatro horas
seis por cento da população consome
sessenta por cento dos recursos do mundo.

a todo instante
milhares de princípios são solenemente
ignorados.

agora mesmo
enquanto você se espanta com os números
uma criança acaba de tombar de fome.