04 novembro 2020

PLUMAS










o peso empluma as coisas

quando ungidas 

pelo sonho.

as palavras são levadas

pelo vento leve

dos devaneios.

em meus sonhos os cavalos

saltitam azuis

em nuvens de algodão-doce.

deixemos que a linguagem

averigue

o que o sonho adivinhou.

a linguagem evapora

e vai mais além

do que o sonho

deflagrou.









30 outubro 2020

CANTOS

 










minha cidade é meu sítio

de desterro

ela se funde com todos os locais

do passado e do presente

locus de um declínio

apocalíptico.

 

o que ainda floresce

em mim

não sou eu

são meus sonhos

a esperar que a noite

pegue no sono

e lampeje faíscas 

de fogo.

 

a visão de rostos na multidão

são como pétalas rubras

espalhadas pelo chão negro

uma épica sem enredo

definido

uma lógica poética

do assombro.


com esses fragmentos

refaço minhas ruínas.









29 outubro 2020

CACTOS

 















chove no coração chamuscado

da floresta.

no âmago despedaçado

da metrópole, nada mais resta.

só cactos atravessados

em nossa goela

a aspereza intratável

de seus gestos.





[poema presente no livro “Pandemônio”, Kotter Editorial. Reserve já seu exemplar: https://kotter.com.br/loja/pandemonio-edson-cruz/. Capa de André Albuquerque (@kandros8)]








27 outubro 2020

26 outubro 2020

KÓLAPHOS

 













as palavras que interessam 
derivam do grego

embora muitas

já nada signifiquem.


Crátilo de Platão

precisa ser reescrito.


politeia é o papel dos cidadãos

no Estado.
economia já não significa 
‘administração da casa’.


o sentido original dos vocábulos 
foram estuprados.
são milhares de estupros

a cada segundo.
milhares de princípios
ignorados.

o cinismo impera
no império cínico.


o sofrimento prolifera
para quem já sofre 

e tanto.

o ódio triunfa

com ou sem 

Trump.


todos são ignorados.
o corpo é ignorado.
o ser é ignorado.
o futuro é ignorado.
a ignorância é nossa

ninguém nos tira.

kólaphos é o princípio

e o fim.
há muitas acepções

para esse estado de coisa 

choque. 
pancada. 
incisão. 
lesão. 
murro. 
ardil. 
trama. 
rombo. 
abalo. 
rasgo. 
desgraça.

golpe.


somos sobreviventes

feito baratas

nos acostumamos

aos escombros

seguimos na sombra

dando de ombros.

nada, nem as palavras

nos resgatarão.

os campos semânticos

foram dizimados.











 










23 outubro 2020

ODES

 











              para o querido Leme Xuxuzão



não me importo

com o passado.

a mim, interessa

o presente

que nos foi dado.

a vida e o carpe diem

doado pelo bardo.

matriz de tudo

que um dia será

revelado. 









22 outubro 2020

SOUVENIRS

 





 







ano que vem não irei ao Japão

nem visitarei Jerusalém

estarei por aí recolhendo

os pedaços de meu coração americano

mas enviarei cartões-postais

para os amigos

e para mim mesmo

decalcarei neles selos comemorativos

comprados em algum mercado de Istambul

o envelope exalará um odor de milho

e em letras miúdas grafarei meu nome

o sobrenome e também o local

de alguma visitação histórica ou religiosa

no cartão se lerá: queridos, saudades, fico por aqui

não visitei templos budistas nem sinagogas

vi de relance a Mona Lisa

mas não era a original

as catedrais daqui são inigualáveis

mas só as vi de fora

as entradas estão proibidas

os monitores dos museus foram desligados

há muita “gente” na rua buscando bares

os branquelos passeiam com suas bermudas

e os que ali éramos morenos

fingem que são mouros

pois há gringos da Califórnia e eles parecem

que são louros

fico do lado de fora a observar a encenação

de um mundo que já não é o mesmo

quero crer que minha visão é privilegiada

uma serenata sem metáforas

me azucrina as noites

não há palavras para o som metálico

das castanholas que vibram

sob a tensão que se instaurou

no velho e bizarro mundo.











21 outubro 2020

HAICAIS

 














bebê tropeçando

nas formigas do caminho:

risinho divino.

 

***

 

o sino interrompe

a conclusão do poema:

silêncio na noite.

 

***

sabiá trinando.

parece que a vida toda

carmim se aveluda.

 

***

o longe parece

tão perto depois da prece.

ou eu que desperto?








20 outubro 2020

SEM TÍTULO

 










Mais uma criança tomba

feito árvore na floresta.

Não existe mais.

Nunca existiu,

aliás.






19 outubro 2020

ESFINGE

 















um incansável pintor

a capturar a mãe

de todas as formas. 

a fêmea ancestral

a imiscuir-se nas curvas

da história.

o ondular de eras

inglórias

o sussurrar cósmico

do tempo.

 

o ardiloso mito

inaugural

o nascedouro de todos

os enigmas.





Trabalho de Judy Scotchford, pintora australiana contemporânea.







15 outubro 2020

HERMES

 











o diabo é a greve

dos Correios.

ainda bem que deus

pai das formas breves

trafega

em meus e-meios.






14 outubro 2020

ARTEFATOS

 












Há poemas que são verdadeiros

bonsais.

Há poetas que desvelam segredos

e que tais.

Há poesia que engana com poemas

tão naturais.

 

Este aqui até que começou bem

mas só quer passar a boiada.

 

O som se insinuou de mansinho

como quem não quer nada.

 

O sentido veio junto de enfiada

e você nem sentiu a estocada.







13 outubro 2020

REVELAÇÃO

 










  tenho uma certeza

  uma epifania pessoal

  quase religiosa.

 

  o caminho que escolhi

  é o melhor

  entre os caminhos

  pois foi o que escolhi.

 

  apesar da convicção

  que me anima

  quase fanática

  não estou disposto

 

  a enforcar

  apedrejar

  jogar bombas

  atirar

  exterminar

  abraçar com morteiros no culote

  embargar economicamente

  eliminar

  civilizar ninguém

 

  por não compartilhar

  de meu júbilo

  de minha sina

  solitária. 





O monge budista Thich Quang Duc protesta contra o regime pró-católico do Vietnã do Sul e suas políticas discriminatórias contra o budismo. Foto by Malcolm Browne, 1963.










12 outubro 2020

FERIADO DE MIM

 












hoje não vou falar sobre aquilo tudo que não sei e faço de conta que sei não vou nomear o que não carece fazer aquela pergunta desnecessária e que ninguém se interessa constelação de saliva em boca seca vou ficar aqui assim desse jeito só eu e meu teclado amarelado o monitor a piscar o Word em branco a esperar palavras palavras palavras aqueles mundos não mudos que não chegam aqueles desertos habitados por ninguém hoje não








11 outubro 2020

AURORA

 










neste momento

quando meu ser se compraz

ouve-se o marulho do tempo

sutis temas de jazz


ruído branco

causa e efeitos

em emaranhado

de névoa

 

sua voz suave a sibilar

no ouvido dos seres

a sussurrar 

 

que no espaço infindo 

desta hora

de hoje 

de amanhã

ou de outrora

há algo que quer
                   pode
                   deve
t  r  i  u  n  f  a  r.