30 setembro 2020

EM PRIPYAT

 











      para Márcio-André



Enquanto o sol irradia

e a manhã nos impulsiona

sôfregos à procura

da paz

da plenitude da vida

da realização efetiva

de uma recepção ideal.

 

Um poeta revisita

corajoso

o lugar mais pacífico

do mundo

- sim, Freud, um poeta

sempre chega antes.

 

Com sua poesia,

em voz alta,

contamina o silêncio

petrificado – quase

absoluto - do local

radioativo.

 

Lá, a paz se fez

plena.

Lá, tudo conspira

a uma digna exaltação

da vida.


O poeta constata

com inapta resignação

que o coração humano

é realmente mais complexo

do que a fissão 

de um átomo.


 



[Foto da abandonada Pripyat, cidade fantasma do norte da Ucrânia. Ela ficava bem próxima à central nuclear de Chernobil, onde ocorreu o maior acidente nuclear da história]













29 setembro 2020

SEM TÍTULO

 















O rio continua fluindo.

O pássaro-preto bicando a porta.

O relógio tiquetaqueando.

E as perguntas, ainda sem respostas.










28 setembro 2020

RUÍDO BRANCO

 











Uma árvore não faz

barulho

ao cair sozinha

na floresta.

 

Na solidão, morremos todos

sem alarde.









27 setembro 2020

MÍNIMA ÉTICA

 












é preciso ser verdadeiro

para entrar em contato

com a verdade.

 

não nos é permitido

tomar o céu

de assalto.







26 setembro 2020

ουτοπία

 













tudo o que ainda

não tem cerca

nem muros

o que nos cerca

até um monturo

tem vida mesmo

que moribunda.

 

muito dos mundos

por nós criados

já foram há muito

devorados.

resta-nos a tarefa

imensurável

não de explicá-los,

mas de reconfigurá-los.








25 setembro 2020

OUVIDO ABSOLUTO

 



Amar é como ouvir

música.

Intuir a frequência

de ondas

fundamentais.

Existenciar

o que ainda não é

no ser

amado.








24 setembro 2020

MORADA DO ESPÍRITO

 












Um gesto move o universo

inteiro.

Elimina o tempo. Reinventa 

o espaço.

 

Hong Yan e seu nome

perderam-se nas dobras

da história.


Mas seu gesto continua

em minha gesta.

 

Seu mestre morto

na batalha

não podia ser profanado.

 

Hong Yan rasga

o próprio ventre

e nele assenta o fígado 

do mestre.

 

A desonra assim foi evitada.

A morada do espírito manteve-se

intacta.

 

As gestas se desdobram.







No séc. 13, o buda Nichiren Daishonin louva seu discípulo Shijo Kingo dizendo: “O senhor acompanhou Nichiren, jurando dar sua vida como um devoto do Sutra do Lótus. Essa sua atitude é cem, mil, dez mil vezes superior a de Hong Yan, que abriu o próprio ventre para inserir o fígado de seu senhor falecido, o duque de Yi [a fim de salvá-lo da desonra e humilhação]”.











23 setembro 2020

RECOLHOS

 











Ouvir o repuxo das baleias.


Enfileirar todas as conchas

retiradas das areias que pisei.

Nomear cada uma 

com os medos que superei.

 

Jogá-las de volta ao mar

como contas de um rosário.

O mar - lugar de onde nunca

deveriam ter saído.

 

Expelir a água salgada

pelos poros.

Rabiscar na areia um novo

escapulário: sou feliz 

e não me arrependo de nada.







21 setembro 2020

BATEIA DE CLICHÊS

 












O seio da face

é a maça do rosto.

 

O que é do gosto

regala a vida.

 

Mais vale a lida

que o fácil gozo.

 

Em todo ovo

labuta o novo.





20 setembro 2020

O MECANISMO





Aqui jaz meu poema

fazendo-se de morto

na página que há pouco

já foi alva

feito um teorema

que não se pode refutar.

 

Até que você o leia

insufle a vida

que lhe falta

e o transforme

em delicado mecanismo

que venha habilmente atingir

o desejado alvo.

 

        Touché? 









18 setembro 2020

RELÓGIO DE AREIA

 













Meu filho de onze anos

adora manipular ampulhetas.

Observa atentamente o relógio

de areia

como quem assiste à dissolução

de um império.

Ele é o senhor do tempo

e nem imagina o quanto

me faz barganhar

com Tânatos.









17 setembro 2020

JAPÃO ETERNO

 





O olhar de Jimmu

delineia

um panorama.

 

Libélulas ligadas

pela cauda.

 

Ah, Akitsushima, Akitsushima...

 

Os jardins do Imperador

são meus 

sonhos anotados em uma lauda.

 

Acima de tudo

- impassível –

o Monte Fuji.







Jimmu foi o primeiro Imperador do Japão. A casa imperial do Japão baseia-se nos descendentes diretos de Jimmu.

Akitsushima é um dos nomes antigos do Japão e significa “Ilha das libélulas”.












16 setembro 2020

FRÊMITO

 













Seus olhos

– na fluídica noite

da ausência –

me assombram.

 

Peixes centelham

em ardentia

de cardumes.

 

Células flageladas

– calcinadas –

com o desprezo.





[Foto by Felipe Cretella]










15 setembro 2020

ENGENHO

 










A função da arte

é resgatar com o siso

de suas formas

as pistas

de um anjo.

 

A legião de daimones

dentro de mim

abre um sorriso

de arcanjos

decaídos.








14 setembro 2020

MONTANDO O BOI

 










Preenchendo com o ser

o vazio do eu.

 

Com palavras,

o vazio da página.

 

Com o silêncio,

o falatório do mundo.




[Imagem: Lao Tsé Riding an Ox, de Chen Hongshou]











13 setembro 2020

À MARGEM NO ESPELHO

 








não sei se me interessei pelo jovem Marx

por ele se interessar pelos explorados

se me interessei pelos explorados por me interessar

pelo jovem Marx

quando penso agora no jovem Marx

penso nos explorados e quando penso nos explorados

penso no jovem Marx como me parece

que vou me ocupar com os excluídos

por um bom tempo parece-me que não

vou deixar de me interessar também pelo velho Marx

por um bom tempo

nunca saberei se me interesso pelos deixados à margem

ou se me interesso por um jovem já velho Marx que se interessava

pelos deixados à margem já que não me lembro

se percebi primeiro os explorados

se percebi primeiro o velho-jovem Marx

ou se eu próprio me vi no espelho

se eu próprio fui sempre um excluído

se eu próprio sou e estou à margem.








[Imagem: Tela-mural Manifestación (1934), do pintor argentino Antonio Berni]










12 setembro 2020

MILAGRES

 









há tantas plantas

que não geram flores

e são belas

como elas só.

 

tantas palavras

se erguem suspensas

sentinelas do ato

que as comprove.

 

tantos seres

colocados à margem

tornando-se improváveis

rizomas de lótus.