27 janeiro 2011

bile negra


há manhãs quando
nem o cheiro
do café
o jornal aberto
sobre a mesa
o sorriso franco
da amada
o chamado doce
de meu filho
o latido amigo
do cachorro
o frescor florido
da jabuticabeira
o canto verde
das maritacas
o azul-celeste
de janeiro
suprem o oco
do corpo a corpo
com a vida
o sumo
desperdiçado
a dádiva
                                                  imerecida

    

18 janeiro 2011

As coisas belas são difíceis


















A frase do título acima foi mencionada por Platão e revela uma sabedoria que pode ser aplicada à vida, às artes em geral e, mais especificamente, às tragédias gregas.

A tragédia é um gênero literário que, apesar de passados 25 séculos, ainda mantém o fascínio e a sua importância. Continuamos, de tempos em tempos, a tomar emprestado dos gregos seus temas e seus personagens trágicos para aprender mais sobre nós mesmos e, quiçá, experimentarmos alguma catarse.

O trágico é uma dimensão fundamental da condição humana e da história. Para nos reconhecermos como demasiadamente humanos que somos e daí podermos extrair algo que nos transcenda, ou nos redima, temos que re-conhecer o trágico.

Importante notar que o trágico não é a infelicidade ou o dramalhão, nem a catástrofe propriamente dita e televisada de nossa era. O trágico é uma contradição, um paradoxo, uma dialética, mais existencial do que lógica e sem qualquer superação. É a vivência plena do destino ou missão de cada um. Para o grego antigo, a existência é trágica por excelência.

Ler e conhecer as tragédias gregas são fundamentais para nutrir nosso espírito, para fortalecer nossa humanidade em toda a sua fragilidade.

A tragédia Édipo Rei (ou Édipo Tirano, ou o Rei dos Pés Inchados – dependendo da tradução), de Sófocles, talvez seja a representação mais acabada da condição trágica do ser humano. A ideia que permeia a história de Édipo e sua esposa/mãe Jocasta é a de que “nenhuma criatura humana pode fugir a seu destino”. Por mais que Édipo tenha tentado driblar o que o oráculo no templo de Delfos lhe vaticinara não o conseguiu. Mesmo sem saber (inocente, entre aspas), matou o seu pai Laio e acabou casando com sua mãe (que também não sabia ser ele o filho mandado para a morte, justamente para que não pudesse cumprir o oráculo terrível de que mataria o próprio pai).

Édipo é confrontado por Tirésias (talvez o personagem mais interessante da peça), o cego adivinho que tem a coragem de enfrentar o poder instituído, o Rei, e revelar-lhe sua verdadeira condição. Tirésias nada teme, pois está do lado da verdade. Mas não deixa de manifestar um lamento pungente: “Ai de mim! Como é terrível saber, quando o saber de nada serve a quem o possui!”

Outra revelação enunciada pelo coro (cujas falas representam o senso comum da cidade e da cultura daquela época) é a de que não existe felicidade para os mortais, no sentido que chamamos no budismo de “felicidade absoluta”. O coro entoa: “Pobres gerações humanas, como vossa existência nada vale a meus olhos! Qual o homem que obtém mais felicidade do que parecer feliz, para depois, dada essa aparência, desaparecer do horizonte? Tendo teu destino como exemplo, ó desditado Édipo, não posso mais julgar feliz quem quer que seja entre os homens”.

No fundo, a moral de qualquer tragédia é explicitada pela fala final do Corifeu. Ele lembra que Édipo havia sido invejado por todos na cidade. Quem não havia desejado estar no lugar dele? Édipo, o decifrador de enigmas famosos, que se tornou o primeiro dos humanos e se casou com a mais bela das rainhas. Sua fortuna não durou muito. Hoje, a miséria se apossou dele. “Guardemo-nos, então, de chamar um homem feliz, antes que ele tenha transposto o termo de sua vida sem ter conhecido a tristeza.”

Sábios, esses gregos.

13 janeiro 2011

A canção do venerável Krishna


    Ficara claro a todos que para as duas famílias só restava a guerra. Quando o dia e a hora que não poderiam ser evitados chegaram, os dois grandes exércitos se postaram frente a frente, com seus carros de guerra, seus corcéis e seus estandartes, como se fossem duas sinistras cidades rivais. Então soaram as trombetas de guerra, as conchas, tambores e gongos. O barulho tornavase ensurdecedor.
    Arjuna avançava no meio dos dois exércitos guiado por Krishna. O sinal para o início da batalha, do lado dos Pândavas, seria dado por ele. Nesse instante crucial, Arjuna pareceu titubear, entrou em desespero e dirigiu‑se a Krishna, inspirando profundamente entre um pensamento e outro:
    – Oh, Krishna, vendo minha gente e parentes postados para a luta, meus braços tremem, minha boca se resseca e meu corpo todo se arrepia. Meu arco desliza de minhas mãos, e não consigo me manter em pé. A vida que há em mim parece flutuar. Não consigo ver bem algum no fato de matar minha própria gente. No fundo, não quero a vitória nem o reino. O que são os deleites da vida? Que orgulho poderemos ter, se matarmos Duryodhana e sua cambada de saqueadores? Como poderemos ser felizes depois disso? Só a culpa seria a nossa companheira. Uma família destruída tem o seu darma corrompido. Com a perda do darma não haverá mais norma, lei, direito, justiça, costume, tradição, moral, piedade e, quiçá, religião. Se a ausência de leis prevalecer, haverá um transtorno na administração dos deveres da própria família, o que aprofundará o desequilíbrio. Seria melhor para mim se Duryodhana ou Karna me matassem na batalha, desarmado e sem resistência. Como eu poderei combater e ferir Bishma e Drona, que foram meus mestres? Matar os mestres só para obter a vitória ou bens seria o mesmo que nadar no próprio sangue. Difícil dizer o que seria pior: nós vencermos a batalha ou eles nos vencerem. Não consigo ver saída para esse dilema. Por favor, divino Krishna, acabe com minha aflição!
    Foi um momento solene em meio a um confronto que pairava paralisado e em silêncio repentino. Arjuna, em seu desabafo, deslizara no assento de seu carro e deixara seu arco e flecha escaparem de suas mãos dominadas pela dor. Foi então que Krishna, cheio de benevolência, tomou o fio do discurso e lançou-o sobre Arjuna:
    – O que é isso, Arjuna? De onde vem esse desânimo? Não aja como um fraco. Elimine a covardia de seu coração e levante‑se! Você se lamenta por quem não merece lamento. Um sábio alegra‑se na adversidade e se mantém firme na alegria e, por isso, conquista a imortalidade. Aquilo que não é nunca se tornará algo e aquilo que não se tornou algo é porque não era. Nada poderá causar a destruição daquilo que ainda não se deteriorou. Assim como um homem veste roupas novas após tirar as velhas, assim também, após eliminar a carne velha, o homem se cobrirá com uma nova. No meio de toda ação, você deve permanecer livre de todo apego. Precisa aprender a ver uma pepita de ouro e um montículo de estrume da mesma maneira. A morte é certa para quem nasce, e o nascimento é certo para quem morre. Por isso, não deve lamentar algo que é inevitável. Essa essência vital no corpo de todo ser nunca morrerá, portanto, não deve lamentar‑se. Você deve cumprir seu destino sem vacilar. Se não participar da guerra como pede seu darma, você será como um erro ambulante. Não se pode escapar de praticar um ato que deva ser praticado, e essa ação, com certeza, deixará sua marca latente. Você deve se preocupar sempre com a ação, e não com os frutos da ação. Não se torne a causa do fruto da ação, não fique preso à inação.
    Com muita benevolência, Krishna conduziu Arjuna por meio de todas as sutilezas de seu espírito. Mostrou para ele as mais profundas manifestações de seu ser e onde era seu verdadeiro campo de batalha: lá onde cada um tem que lutar sozinho, sem guerreiros nem flechas. Mostrou‑lhe a verdade e seus desdobramentos. E continuou Krishna:
    – Toda entidade viva é uma alma individual. Todas estão mudando seu corpo a todo momento, ora manifestando‑se como criança, ora como jovem ou idoso, embora permaneça a mesma alma eternamente sem mudança. Cada alma individual, por fim, transmigra de um corpo para outro, e é certo que terá tantos outros nascimentos, espirituais e materiais. Por isso, não há razão alguma para lamentar‑se por causa da morte. Do apego origina‑se o desejo. Do desejo gera‑se a cólera. Da cólera cria‑se a estupidez e as ações distorcidas. E as ações inadequadas geram sofrimento a si e aos outros. O homem que abandona todos os desejos e caminha sem pretensão, posses e livre do apego ao ego conquista a paz. Eu, Arjuna, sou o tempo que, avançando, faz a destruição do mundo. Por isso, levante‑se e conquiste a glória. Vença seus inimigos e conquiste um reino próspero. Seja apenas meu instrumento, porque é por mim que, antes de tudo, eles serão mortos. Coragem, brilho, firmeza, habilidade e, no combate, a força sem medo, a generosidade e o exercício do poder. Essa é a ação própria de sua natureza. Não a contrarie. Arjuna, você escutou o que eu disse com a mente reta como o tiro de sua própria flecha? Será que consegui dissipar sua ignorância?
    – Sim, Krishna – ele respondeu. – Sinto minhas ilusões se desfazerem uma a uma. Sou até capaz de contemplá‑lo em toda a sua plenitude. Através de você, vejo a vida e a morte. Por sua causa, agora estou firme. Minhas dúvidas foram dispersas e eu agirei conforme suas palavras. É costumeiro o tolo se esquecer nos momentos cruciais o que aprendera em ocasiões normais.

Ganesha estava maravilhado por relembrar essas santas palavras. Pena que a história tinha que continuar e muitas delas seriam esquecidas por Arjuna.

[Minha versão para jovens do famoso livro do Bhagavad Gita (A canção do venerável Krishna), um dos capítulos do Mahâbhârata - Vide edição aí ao lado]

11 janeiro 2011

epifanias

um girassol ilumina
o silêncio

das coisas sem voz
dos seres sem vez

de tudo que nunca

veio a ser