08 junho 2010

Curso de Letras



Qual o livro mais chato da literatura brasileira? Não vamos perder tempo com os autores mais chatos, pois a lista seria infinda. Nem com os pseudoautores. Nos famigerados cursos de letras que desandam por aí, os alunos [será q ainda os há ou seriam meros esquentadores de bancos. ouvintes, ocos, das palavras instituídas?] são obrigados a ler um monte de livros e autores que são um pé e desviam a atenção do essencial. Mas, como saber o que é essencial em literatura sem ler e desler [pergunta boa. só me ocorreu agora]?

Um curso de Letras, assim em caixa alta, deveria servir para isso. Ou não?

Depois que nosso Mamaluco [claro que me refiro a Sebastião Nunes, mas, aliás, leiam o originalíssimo livro de Luiz Roberto Guedes, O Mamaluco Voador, com projeto gráfico e diagramação primorosa de Tereza Yamashita e Nelson de Oliveira. não tem nada a ver com o que estou falando, mas tudo a ver com o que estou escrevendo] ousou desbancar Machado de Assis de seu trono, o caminho ficou mais fácil [cara peitudo esse Tião. disse com todas as letras q Machado era leitura obrigatória de velhinhas carolas. rumor na arquibancada].

Felizmente não li todos os livros que poderiam ser adequados a esta categoria do liso, plano, sem elevação, rasteiro, sem relevo, sem elegância e maçante [definição de chato. faltou a coceira e a preguiça macunaímica q eles nos geram]. 



Por comparação, ou justaposição, ficou mais fácil ainda. O acaso [êta palavrinha mal compreendida por nós todos. leiam um pouco do budismo. não, não precisa raspar a cabeça, nem se internar em um templo seja em Cotia ou no Himalaia. um buda do século 13 deixou escrito que, vejam só, “até o esbarrar da manga de nossa camisa em outra no meio da rua confusa é regida por relações cármicas (relações não determinadas de causa e efeito), nada tendo a ver com acaso” uau! a rua confusa é por minha conta] possibilitou que eu estivesse lendo o instigante romance de Evandro Affonso Ferreira, Erefuê [o cara é maluco, no bom sentido, já teve vários sebos impecavelmente sem poeira e parece q não gosta muito de vender livros. enxotava aqueles que vinham buscando Coelhos e outros bichos da mesma subespécie literária], e ao mesmo tempo A Escrava Isaura de Bernardo Guimarães [alguém o leu por aí ou só lembra da Lucélia Santos, ou nem isso, talvez, da ex-paquita-qse-atriz, Bianca Rinaldi? confesso q nunca o havia lido e minha memória é da Lucélia].

Tudo bem que a comparação, a rigor, não possa ser feita sem correr o risco de se tornar esdrúxula e até incabível devido as variáveis históricas e sociais. Não vou fazê-la [mesmo porque não saberia como], então, mas confesso aguçou-se meu interesse pela construção da ficção brasileira. 



O romance de Bernardo Guimarães com sua construção melodramática que a telenovela soube aproveitar tão bem, me deixou um pouco irritado pela pieguice dos argumentos e a dissimulação da(s) ideologia(s) por trás dos argumentos. Um romance construído como uma fábula amorosa e ancorado em dados ‘historiográficos’ tão caros ao romantismo tupiniquim em seus primórdios. 



Cheio de ‘boas intenções’ em seu desejo de mostrar ao público de 1875 os crimes da escravidão e as questões de distinção de classe, destila – com uma adjetivação excessiva – preconceitos e valores que não escapam à tentativa de escamoteação: a escrava que é branca, bela, fina, culta e mais pura do que qualquer branca poderá almejar [ops! a palavra coube bem, né?].

A escrava submissa que, apesar de seus dotes, sabe reconhecer seu lugar e suporta resignada o assédio e os maus tratos que surgem de todos os lados. Um primor de chatice e melosidade que parece agradar, brasileiros, portugueses e até chineses.

Cruzes cristãs!!! [ah... se você quer ser escritor, corra dos cursos de letras...]!!

06 junho 2010

Conversas sobre Literatura



Edson Cruz - Começo por uma genealogia que nos aproxima: o poeta Manoel de Barros. Teu livro Biografia de uma Árvore, de 2002, a começar pelo título, parece-me que foi todo autorizado pelo Manoel, além dos pássaros, raízes e frutos. Esta relação amorosa vem desde quando?

Fabrício Carpinejar - Eu tenho paixão pela poesia anônima. Uma poesia que seja somente pouso de rio. Acredito que o rio sabe pousar melhor do que a ave. Biografia de uma árvore tem algumas peculiaridades que o diferenciam da poética do chão de Manoel de Barros: poesia extremamente tensa, que pergunta e não responde, quebra a bússola e não dá um rumo. Não faço poesia para consolar, mas inquietar. O melhor riso acontece quando não o esperamos. Meu desespero é apenas uma forma de rir. Não sou discípulo nem de mim mesmo. Mudo de endereço antes de me repetir. Eu sempre acreditei que o melhor esconderijo que havia em casa era o violino que ninguém tocava. Escondi minha poesia dentro das cordas. Sou um perfeccionista pelas imperfeições. Aprendi a me espreguiçar com um único suspiro. O fogo é um suspiro da água.

EC - Soube de tua tese sobre ele. Você gostaria de colocá-la sob nossos olhos e corações? Qual a nervura que, nela, você amplia?

FC - Meu estudo afirma que Manoel de Barros é um grande teólogo. Ele busca professar sabedoria em sua teologia dos trastes, enumerando o que um homem precisa fazer para ser uma paisagem. O autor procura repassar a pedagogia do ínfimo, ensinar como o leitor deve se comportar para enxergar o poema. Não questiona, não duvida, propõe uma poética do alumbramento, exclamativa. Realiza uma catequese: converter o selvagem em uma voz dócil e culta. Sua poesia tem o formato de conto, com pontuação epistolar. Usei como antítese em meu estudo a poesia de João Cabral. É curioso notar que Cabral dizia ser cerebral e é altamente espontâneo. Manoel diz ser espontâneo e é altamente cerebral. Ainda estamos presos nas falsas aparências.

EC - Em teu livro de 2000, Um Terno de Pássaros ao Sul, nota-se a importância de suas raízes afetivas, principalmente a figura paterna, para sua poesia. Fale-nos um pouco da sua relação com a poesia de Carlos Nejar. Quais seus poemas preferidos?

FC - O pampa é meu pai. O pampa é também pai de meu pai e pai de meu avô. Eu tenho uma ligação fortíssima com a terra e sua exuberância. Sempre prefiro sair pela porta do pátio do que pela porta da frente em minha casa. Passava pelos cheiros da cozinha e absorvia a atmosfera da horta. Misturei essa carga ancestral com minha vida urbana, com a urgência do cotidiano. Minha poesia faz romance em versos. Invento para libertar a mentira do hábito. Uma verdade já decorada não me agrada. Eu organizei uma antologia da poesia de Nejar, chamada Breve História do Mundo, que saiu pela Ediouro. Disponho a obra nejariana por arquétipos e espaços como assoalho, porão, calabouço.

EC - Qual a matéria da poesia?

FC - Tudo é matéria de poesia, principalmente o que não existe. O pó pisado de um pão é matéria de poesia. Uma ave manca é matéria de poesia. Um homem que se esqueceu em um casaco é matéria de poesia. Uma mulher que pisca a boca quando mente é matéria de poesia. É se encontrar onde não estamos. É se perder onde estamos. É conciliar contrários, reunir o imponderável, fazer um esforço de solidariedade para que palavras amuadas possam enfim se cumprimentar. O poema é uma mão tremendo. Seguro no poema, não para aliviar o tremor, mas para ser contagiado por ele. A façanha do verso é desabituar os olhos, mostrar a naturalidade da luz, do erro, sua extinção e vacilo. Uma luz perto de queimar tem a mesma força da escrita.

EC - O que significa hoje o conceito de invenção na poesia e como você se relaciona com ele - se é que isto te interessa?

FC - A grande poesia deve ser invenção para o autor, mas chegar ao leitor apenas como descoberta. Aquilo que se inventa na insônia precisa ter o frescor da descoberta, inclusive para quem escreveu. Requer portanto disciplina e uma dose cavalar de desconfiança. A tradição existe – não para ser reverenciada – como provocação, para ser questionada. Sou uma criança que não tem medo da pergunta banal. É na banalidade que a comoção aparece. O grande problema da poesia: ela é um dom natural e a complicam para parecer difícil. Só o simples permanece. Sobre minha relação com a invenção, não aceito me repetir. Costumo dizer: os poemas desconfiam de quem necessita repeti-los. Eu procuro na invenção um modo de me trair. Ao trair minha memória, estou sendo realmente fiel.

EC - O número quântico de estranheza proposto pela física quântica se aproxima da linguagem poética?

FC - Poderia se chamar até de número ôntico. Acho que se aproxima. Assim como a música é matemática, como a matemática é música, como a poesia é a matemática da música. Guardo um tanto de estranheza para ler depois. Com a escrita, não pretendo esgotar segredos, mas prolongar o mistério. A poesia é a reserva ecológica da linguagem, tudo se junta como ciscos para se elevar em ninho. Entendo um pouco de tudo, o resto deixo para intuição tomar conta. Não sofro por me perder, sinto até prazer em não reconhecer as ruas. Todo o caminho errado passa a ser uma saída.

EC - Como acolher o ser essencial cujo coração não está contaminado pelas demandas do mundo?

FC - Eu quero me contaminar pelas demandas do mundo, pelos ruídos, pela escala cardíaca de uma ave, de um trem, sem exceção. Minha essencialidade é esquecer de mim. Não escrevo para me isolar, mas para me doar. Ficamos muito tempo fechados pensando que estamos a nos proteger. A gente só se protege se repartindo. O melhor escritor é invisível, somente seu texto fica visível. Procuro ser anônimo para desafiar o que não pode ser dito. Minha vantagem é a autocrítica, a corrosão, a ironia, minha maneira de brincar com o desespero para fazê-lo rir, ao invés de ajudá-lo a chorar. A poesia é pura porque não tem medo de se misturar. Ela não classifica, não exclui, não escolhe, não cria preconceitos. Ela é adesão instantânea, a vontade de compreender e não julgar. Desejo entender a minha rua e já estarei entendendo o meu tempo. Critico o idealismo da poesia como erudição, vaidade e dom. Não é a inspiração que nos faz apaixonar, mas a fé de se superar sendo dois. Poesia é adoecer o mundo e curá-lo.

EC - Quais seus escritores de preferência e como se dá a magia da literatura para o Carpinejar leitor?

FC - Eu escrevo meus livros apenas depois de memorizá-los inteiros. Eu fico assobiando versos durante meses, sem cair na chantagem de um papel. Nada de anotar em pedaços, cadernetas, folhas. O livro precisa primeiro sobreviver à memória para depois ser escrito. Esse processo pode demorar anos e muitos poemas se perdem no caminho e não conseguem andar até o final. O que é essencial, permanece. Arrumo os versos em passeios pelas ruas de São Leopoldo, acentuando seu fôlego musical. Quando sento no computador, o livro já desce pronto. Esse método intuitivo colabora para meu projeto de ler minha obra como um único romance versificado. Cada título é um capítulo. Só a memória é capaz de dar distanciamento íntimo. A imaginação é a minha primeira leitora. Dos meus autores prediletos, são tantos que não os reduzo a uma lista. Tudo me influencia, até o que não foi escrito. Aprecio enormemente o chileno Nicanor Parra e sua antipoesia.

(a poesia de Nicanor Parra: http://www.poesia-inter.net/indexnp.htm)

EC - Você, que me parece amante da escola cabralina das facas, lê a poesia feita hoje? Hoje, onde o engenho não tem praça?

FC - Eu não sou amante da escola cabralina. Talvez seja amante das facas (risos). Eu admiro João Cabral e sua poesia sem arestas. Admirar não significa servir, mas respeitar e ter noção de que ele já cumpriu o que sua voz prometia. Ele não precisa de discípulos. Cabral não é uma escola, mas uma prisão. Ninguém consegue imitá-lo sem empobrecer o original. Não recomendo a ninguém, é prisão perpétua. A poesia brasileira contemporânea vive um grande momento. Concordo com Ivan Junqueira e a considero uma das melhores feitas no mundo, sem exagero. Veja apenas Minas Gerais: Ricardo Aleixo, Fabrício Marques, Wilmar Silva, Fernando Fábio, Iacyr Anderson, Edmilson, Prisca, Ângela Leite de Souza, Ana Elisa Ribeiro, etc. Eu citei aleatoriamente um estado, imagina todo o país. Sofremos um complexo de inferioridade diante dos mortos (Drummond, Cabral, Bandeira, Jorge de Lima) e de outros gêneros. O poeta brasileiro anda de cabeça baixa como um cavalo, sem a consciência de sua velocidade. Basta olharmos com mais compreensão e menos ranço. Nossa poética retomou o gosto de colocar as cadeiras na rua, de se comunicar e aprender com as diferenças, de ser febril e presente, de não renunciar a sua época em nome de uma imortalidade duvidosa.




Carpinejar, Fabrício Carpi Nejar, poeta e jornalista, mestre em Literatura Brasileira pela UFRGS. Nasceu em Caxias do Sul (RS) aos 23 de outubro de 1972. É autor dos livros: As Solas do Sol (Bertrand Brasil, 1998), Um Terno de Pássaros ao Sul (Escrituras Editora, 2000, esgotado) (Bertrand Brasil, 3ª edição, 2008), objeto de referência nos The Book of the Year 2001 da Enciclopédia Britânica, Terceira Sede (Escrituras, 2001), Biografia de uma árvore (Escrituras, 2002), Caixa de Sapatos (Companhia das Letras, 2003), Porto Alegre e o dia em que a cidade fugiu de casa (Alaúde, 2004), Cinco Marias (Bertrand Brasil, 2004), Como no Céu e Livro de Visitas (Bertrand Brasil, 2005), O Amor Esquece de Começar (Bertrand Brasil, 2006), Filhote De Cruz Credo (A GIRAFA EDITORA, 2006), Meu filho, minha filha (Bertrand Brasil, 2007, Canalha! (Bertrand Brasil, 2008) e Diário de um Apaixonado: sintomas de um bem incurável (Mercuryo Jovem, 2008). Blogue: http://carpinejar.blogspot.com/ E-mail: carpinejar@terra.com.br

01 junho 2010

Hans-Joachim Koellreutter: as ideias bem temperadas



Koellreutter chegou ao Brasil em 1937 e por aqui ficou, trazendo consigo uma formação tradicional européia. Foi aluno de Kurt Thomas e Hermann Scherchen e conseguiu aliar o rigor clássico de um Hindemith com as experimentações harmônicas e formais do dodecafonismo. Essas informações chegaram até mim aos poucos. No começo, eu só sabia que ele havia dado aulas para o Tom Jobim e para outro Tom, o Zé.

A lista dos músicos e compositores que foram seus alunos aumentou muito à medida que minhas informações musicais se solidificavam. O histórico grupo Música Viva, Guerra Peixe, Cláudio Santoro, Edino Krieger, Olivier Toni, Severino Araújo, Moacyr Santos, K-chimbinho, Cipó. Todos esses, e muitos mais, foram seus alunos. E agora eu estava ali na sua frente, meio penetra, meio sem saber direito o que estava buscando, muito menos o que iria encontrar. Estavam muitos na sala, mas o silêncio era reverencial.

As certezas que não deixei para trás, ao entrar naquela sala, seriam todas relativizadas pelo velhinho que já havia morado no Japão e na Índia. Da Índia ele contou que, após chegar com a esposa ao hotel, foi direto para uma apresentação de música clássica indiana. Era final de tarde e, depois de muitas horas no avião, ele estava muito cansado. Ouviu durante uma hora. A audiência quase que não se mexia, em transe. Ele não aguentou. Cochichou para a esposa que ia dormir. Ela ficou e só retornou ao hotel na manhã seguinte. O concerto durara a noite toda. Havia sido uma manifestação estética totalmente diferente daquela vivenciada por ela até então.

O primeiro conceito insinuava-se sutilmente: Estética: “Estética é uma parte da filosofia que estuda as condições e os efeitos das atividades artísticas. É um estudo racional e fenomenológico da expressão artística, quer eventuais possibilidades (estética objetiva); quer evento ou diversidade de emoções e sentimentos que suscita no homem (estética subjetiva)”. E complementou dizendo que não existiria uma objetividade absoluta; toda objetividade teria um mínimo de subjetividade.

Para Koellreuter havia dois tipos de estética: a estética relativista e a fenomenológica. Na relativista parte-se da premissa de que os componentes da composição artística não podem ser considerados independentes um do outro. Baseia-se no conceito da física de que o tempo e o espaço são grandezas inter-relativas. Na fenomenológica estuda-se a sensação causada no ouvinte por uma ocorrência musical (que é tudo o que ocorre numa partitura, até mesmo um ruído).

Concluiu o raciocínio dizendo que cada artista tem sua estética pessoal e com ela constrói seu estilo. Um artista que não tem estilo próprio não é um artista. O artista é um aventureiro.

O segundo toque também foi dado sutilmente. A noção de tempo é tudo e, também, não é absoluta. Paradoxal. Noção basilar na música, se ela mudar tudo mudará. O que mudará exatamente? A forma como será criado, como será executado e como será apreendido o discurso musical. Isso mesmo: discurso. Ele foi logo dizendo que embora se costume dizer que a música é uma linguagem, ela em essência não o é. Ela se serve de uma linguagem para criar o seu discurso. Para mim parecia ser a mesma coisa, mas ele insistia que não era.

Pediu para que anotássemos outra definição: “polissemia é um processo de multisignificação onde cada letra é um ícone intersemiótico que explode em inumeráveis significantes”. Falou pausadamente para que pudéssemos anotar. Ele parecia fazer questão de que anotássemos, sabendo que tantas informações que nos passaria necessitariam de tempo para serem digeridas.

Mas o que teria a ver esse conceito aparentemente linguístico com a música? Ele fez que não ouviu e continuou… a música é uma arte que faz uso de uma linguagem, disse, e tascou mais uma definição para ser anotada:

“Arte é a atividade que supõe a criação de sensações, emoções e estados de espírito, em geral de caráter estético, assim como processos sensoriais conscientes que proporcionam ao ser humano o conhecimento e a vivência do mundo externo.”

Ele ligava um conceito no outro. Pensava feito o desenho de um fractal.

Mas, professor, voltemos à linguagem. A música, então, não é uma linguagem? “Não”. E toma outra definição.

“Entende-se por linguagem um sistema de signos estabelecidos naturalmente ou por convenção, que transmite informações ou mensagens de um sistema cibernético (sistemas cibernéticos podem ser orgânicos, sociais, sociológicos, técnicos, ecológicos). Por exemplo, a linguagem dos animais; dos computadores; dos sinais de trânsito; linguagem científica, artística e outras.”

Cacilda, sistema cibernético?

Ele estava dizendo (eu acho) que a música usava um idioma, o idioma musical, e que os idiomas musicais são linguagens específicas. Na estética musical o idioma usa um vocabulário e uma sintaxe. O vocabulário chama-se repertório. E a sintaxe? Não perguntei... me empedrei.

Os idiomas são abraçados pelo o que ele chamou de estilo. Continuou o raciocínio, para mim um tanto nebuloso, dizendo que os estilos se caracterizam pelos idiomas que utilizam. Mas o que seriam estilos? Claro que ele não iria deixar passar um conceito sem destrinchá-lo. Esta, notei, era uma característica de sua forma de pensar e de ensinar. Partia sempre do conceito, fazia um raio-X dele e depois tirava suas consequências lógicas (e ilógicas). Bem alemão, pensei comigo.

Lembrei de uma definição de Hitchcock sobre estilo que não me atrevi a falar em voz alta: “Estilo é plagiar a si mesmo”. Se essa definição fosse verdadeira, então, Jorge Benjor seria o mestre do estilo. Seria um verdadeiro artista. E realmente ele o era, pensei comigo, mas continuei calado.

O velhinho tinha me fisgado e o melhor a fazer era continuar a ouvi-lo. E ele já estava definindo o que seria estilo:

“Entende-se por estilo, um conjunto de características que une e ao mesmo tempo separa a produção artística de países ou e artistas (que são personalidades individuais). Une e separa ao mesmo tempo.”

Para ele havia dois tipos de estilos. Os inovadores e os restauradores. Nesse momento fez questão de frisar que gêneros não devem ser confundidos com estilos. Por exemplo os gêneros da música clássica e da música popular não deveriam ser confundidos com estilos. Agora ele parecia um Ezra Pound pensando a música.

Os estilos inovadores apresentavam sempre um novo repertório e uma nova sintaxe, um novo repertório de signos e sinais. Mas o que era sintaxe, mesmo? E lá vai ele definindo o que é signo e o que é sinal. Eu cansei de anotar. Deixei pra lá…

Os estilos restauradores ou restaurativos eram aqueles que revalorizavam o idioma e a sintaxe tradicionais.

Já era quase meia-noite e o velhinho não parava. Alguém veio lhe avisar que já estavam para apagar as luzes. Ele ficou decepcionado, mas conformou-se. Continuaríamos na próxima semana. E não se esqueçam, disse, questionem tudo, tudo. Ele gostava mesmo desse exercício.

Fui pra casa naquela noite pensando em frases e conceitos enunciados com um sotaque arrastado nos erres. Tudo bem, eu teria uma semana pra digeri-los.

“Não existe erro absoluto em música. Pode haver erro relativo ao estilo da época.”

“Aprendemos as regras tradicionais para poder transgredir ou contrariá-las.”

“Devemos aprender a questionar tudo, até nossas próprias opiniões.”

“O artista deve abrir caminhos e novos modos de pensar.”

“Ao se criar uma obra de arte muda-se o modo de ver toda a sequência da arte até aquele momento.”

Depois dessa aula inaugural, acompanhei seu curso por mais um mês. Ouvi suas composições e o assisti regendo várias de suas peças no auditório do Masp. Em uma delas, a partitura do pianista era uma esfera transparente que carregava algumas sequências de símbolos coloridos, triângulos ou círculos que se mesclavam com outros entrevistos na curva da esfera. Uma loucura.

Eu, que sempre havia sido fascinado pelas melodias, ouvi estarrecido de Koellreuter que nós vivíamos em uma ditadura da melodia.

A rádio Cultura, lembro, fez alguns programas sobre ele que são históricos. Tenho tudo gravado.

Koellreuter faleceu em setembro de 2005 e, hoje, quase não ouvimos mais falar dele. Em época de muita confusão conceitual e sonora como a que vivemos, seu método de ver as coisas e de ensinar faz muita falta:

“1) não há valores absolutos, só relativos;

2) não há coisa errada em arte; o importante é inventar o novo;

3) não acredite em nada que o professor disser, em nada que você ler e em nada que você pensar; pergunte sempre o por quê."

27 maio 2010

Conversas sobre Literatura



O poeta Glauco Mattoso é uma das pessoas mais interessantes, gentis e assustadoras que conheci. Ele diz que está recluso e calado feito um monge. Pós-tudo, agora ficou mudo. Saudades.


Edson Cruz: Prêmio Nobel ou Prêmio Núbil? Qual a sua necessidade?



Glauco Mattoso: Nenhuma das duas. O único pacotão que ainda espero do Papai Noel (ou Papai Nobel) é a bota usada dele embrulhada pra presente.

EC: Tua veia escatológica é genética ou uma opção estrategicamente estética?



GM: Genético é só o glaucoma que me cegou. A veia eu escolho na hora de picar. A veia dos outros, bem entendido.

EC: Como é aquela estória de você colar anúncio de massagem nos pés, nos telefones públicos?

GM: Isso foi quando escrevi um romance podólatra. Tive que provar na prática (isto é, com a língua) a sola dos outros pra poder falar melhor sobre minha própria tara.

EC: Pra você o que é (e quem está fazendo) poesia de invenção, hoje? Ainda faz sentido este tipo de busca?



GM: Poesia que não inventa só requenta, não aquenta nem arrefenta. Todo bom poeta faz poesia de invenção, isto é, cria recriando, e sempre há um ou outro bom poeta. O próprio Tião é um deles.

EC: Qual a importância da memória pra você?



GM: Para um cego a memória é tudo, mas pra mim vale mais porque lembro das curras que sofri na infância, dos outros moleques, na hora em que bato punheta.

EC: Você compactua da opinião, veiculada por Alexei Bueno em entrevista ao Rascunho, de que "nos anos da ditadura militar o concretismo se consolidou como o último estado oficial da poesia brasileira"?



GM: Quem repudia o concretismo tem lá seus motivos. Antes do Alexei outros tiveram outros motivos (dor de cotovelo, principalmente), mas no caso do Alexei sei que se refere mais aos apóstolos fundamentalistas que aos profetas fundadores, e não lhe tiro as razões, pois também já fui vítima de anátemas.

EC: O rótulo de antropofágico, oswaldiano, bocagiano, doidão e outros, incomoda ou lisonjeia?

GM: Nenhum rótulo me incomoda, sequer o de "o Ministério da Saúde adverte..." ou o de "mantenha longe do alcance das crianças".

EC: Parece-me que fala-se mais da prosa do que da poesia hoje em dia. O que você acha da nova geração da poesia brasileira?



GM: Acho que ela é tataravó da geração 2020, que por sua vez será tataravó da geração 2050, se pensarmos cada geração literária virando uma década. Quem fica é o indivíduo, não o grupo. Prefiro ser um poeta inclassificável (ou desclassificado) que um poeta marginal.


Glauco Mattoso (paulistano de 1951) é um dos mais radicais representantes da ficção erótica e da poesia fescenina em língua portuguesa, descendente direto de Gregório, Bocage e, em prosa, de Sade e Masoch. Na década de 1980, celebrizou-se entre a "marginália" literária como autor do fanzine anarco-poético "Jornal Dobrabil" e do romance fetichista "Manual do podólatra amador" (reeditados, vinte anos depois, respectivamente pela Iluminuras e pela Casa do Psicólogo); após perder a visão, já na década de 1990, publicou mais de vinte volumes de poesia (entre os quais a antologia "Poesia digesta: 1974-2004", pela Landy), além do romance paródico "A planta da donzela" (editado pela Lamparina), que revisita "A pata da gazela" de Alencar. Adepto fervoroso da glosa decimal e do soneto clássico, destaca-se também como lexicógrafo no bilíngüe "Dicionarinho do palavrão" (pela Record) e como esticólogo numa "Teoria do soneto" e num tratado de versificação, "O sexo do verso: machismo e feminismo na regra da poesia", a sair em livro. Colaborador nas mídias impressa e virtual, assina colunas na revista "Caros Amigos" e no portal "Cronópios", entre outros veículos. Como letrista, tem sido musicado por nomes singulares do porte de Arnaldo Antunes, Itamar Assumpção, Falcão, Ayrton Mugnaini e outros experimentalistas independentes ou irreverentes. Seus livros mais recentes vêm saindo pela Dix Editorial (da Annablume), na série "Mattosiana", entre os quais uma história do rock e uma pesquisa do cancioneiro popular brasileiro, tudo em forma de soneto. Eis os endereços e contatos: www.annablume.com.br

http://glaucomattoso.sites.uol.com.br E-mail: glaucomattoso@uol.com.br

25 maio 2010

Meu querido Cronópios


Jorge Luis Borges conta que em torno de 1940, quando secretariava os Anales de Buenos Aires, um rapaz extremamente alto entregou-lhe um conto escrito à mão. Depois de uma semana o espigão voltou e queria seu parecer. Borges gostara do texto e já o havia encaminhado para publicação.



O conto “Casa tomada” foi a primeira publicação de Julio Cortázar e Borges lembra o ocorrido com orgulho, dizendo sentir-se honrado por ter sido o instrumento da primeira publicação de Cortázar. Este pequeno episódio revela-nos a magnitude deste escritor, admirado por um mestre. 



O próprio Cortázar tornou-se um mestre. Um mestre do conto, das estórias curtas e de um certo nonsense. Borges dizia que seu estilo iludia, parecendo não ser bem cuidado mas, pelo contrário, cada palavra havia sido cuidadosamente escolhida e colocada no seu devido lugar como faz um ourives com suas engrenagens de ouro.

Esse filho de argentinos nascido na Bélgica em 1914 considerava-se porteño e a julgar pela geografia e tipos humanos de seus textos era realmente um argentino. Viveu na Argentina dos quatro aos trinta e seis anos, indo para Paris em 1951 onde trabalhou como intérprete e tradutor. Nesse ano publica seu primeiro livro considerado importante: “Bestiário”, mas foi com seu terceiro trabalho, “As armas secretas”, que ganharia projeção mundial virando roteiro do filme de Antonioni, Blow up, com um de seus contos, “As babas do Diabo”. 



Até aí estamos nos livros de contos. Em 1965 vem seu primeiro romance “Os prêmios” e depois “O jogo da amarelinha” que é considerado por muitos críticos literários seu principal trabalho. O livro, nessa estranha realidade, são dois inseridos um no outro. Um pode ser lido de forma linear e o outro mudando-se a ordem dos capítulos altera todo o sentido da trama. Genial. 



Seu gênio esparrama-se em muitos outros livros, em muitas outras estórias difíceis de serem sintetizadas em seus argumentos. Cada texto seu é tecido com determinadas palavras em uma ordem também determinada. Como dizia Borges, se tentarmos resumi-lo comprovamos que algo precioso e único se perdeu. Uma bolha de sabão em sua complexa e frágil arquitetura. Se tentarmos tocá-la, para termos ciência de sua existência, ela se esboroa. 



O leitor incauto não sabe que seus textos têm uma certa magia, até ver-se tomado por ela e não poder mais voltar atrás. Conta-se que em uma aldeia da Escócia venderam-se alguns livros de Cortázar com uma página em branco perdida em algum lugar do volume. Se o leitor desembocasse nessa página ao soarem as três da tarde, morreria. 



Se você torceu o nariz para o argumento acima, imagine então que você é um cronópio. Sim, simplesmente um cronópio. Você se formou em medicina e abriu um consultório em um lugar qualquer. Logo chega um doente e conta como há coisas que doem e como de noite não dorme e de dia não come. Você, um sábio médico cronópio, recomenda que ele compre um buquê grande de rosas. O doente vai embora algo surpreso mas, como você é um sábio médico cronópio, ele compra o buquê e fica bom instantaneamente. Cheio de gratidão corre até você e além de pagar a consulta lhe dá um belo buquê de rosas. Bem, foi só o tempo dele sair e você, sábio cronópio, cai doente, sente dores por todo o corpo, de noite não dorme e de dia não come. 



Meu caro leitor, meu igual. Se você não reparou ainda, não vou conseguir contar a estória deste grande escritor linearmente como eu desejava. No meio fui contaminado pelo fogo, por uma espécie de micróbio que flutuava em minha estante. A contaminação foi publicada um ano antes do livro genial citado acima. Não sei dizer se este é tão genial quanto aquele, mas me perturba sobremaneira.

Chama-se “Histórias de cronópios e de famas”, é seu sexto livro e foi escrito num período de sete anos. É uma boa maneira de introduzir-se nesse universo paralelo que é a literatura de Cortázar e, também, de entender que não se é um Cronópios - nem mesmo um site - impunemente.

Se o leitor sentir-se perdido e confuso terá que lançar mão de uma qualidade tão rara aos humanos e tão cara aos felinos: sua capacidade de orientação no escuro. Ou então torcer pra que tenha mais seis vidas além dessa.

Mas, o melhor mesmo é ler Cortázar direto na fonte. Abaixo aos diluidores.

Cortázar no original: 


o Continuidad de los parques

o No se culpe a nadie

o Instrucciones para subir una escalera

o Historias de Cronopios y de Famas

o Conducta en los velorios

· del capítulo 7

· del capítulo 68

o la máquina para leer Rayuela y otras historias

· La prosa del Observatorio (1972)

o Lucas, sus pudores

20 maio 2010

A entrada do livro eletrônico é uma ótima oportunidade para os autores rediscutirem seus direitos autorais



Saiu matéria na Folha de São Paulo sobre o livro eletrônico, que começa a entrar no mercado editorial brasileiro. O texto diz que os livros nacionais ainda são pouquíssimos no formato eletrônico. Por quê? Eis o trecho que mais interessa a nós, escritores: “O livreiro é um dos que defendem que o maior nó no mercado é a rediscussão dos direitos autorais. ‘O medo está aí. Isso vai inundar o Judiciário’”. O livreiro é Pedro Herz, dono da rede de livrarias Cultura.

Nem todo mundo sabe, mas os autores ganham apenas 10% do preço de capa de cada livro vendido. 10%. Os outros 90% ficam com editoras, distribuidoras e livreiros. 10% é o padrão. Mas há editoras que chegam a pagar 3%. Quando falo isso para leitores que não fazem a menor idéia como funciona a remuneração de direitos autorais no Brasil, muitos ficam espantados, outros indignados.

A entrada do livro eletrônico é uma ótima oportunidade para os autores rediscutirem seus direitos autorais. Ouçam bem: é uma ótima oportunidade. As grandes livrarias já estão pressionando as editoras para venderem livros de seus autores em formato eletrônico. As editoras já estão procurando os autores para assinarem adendo aos contratos autorizando a venda em formato eletrônico.

Conversei com um advogado especialista em direito autoral essa semana. O livro eletrônico foi um dos temas da conversa. Perguntei a ele o que os autores devem fazer em relação às autorizações para comercialização do livro eletrônico. Ele foi claro e taxativo: “Enquanto não redefinirem a remuneração dos direitos autorais, não assinem. O livro eletrônico não tem custos que justifiquem manter os direitos autorais em apenas 10%”.

A matéria da Folha diz que os representantes de cada setor da cadeia produtiva do mercado editorial já estão discutindo a questão. Eu pergunto: quem representa os escritores nessas discussões? A Academia Brasileira de Letras? A União Brasileira dos Escritores? Algum escritor foi procurado para se manifestar?

O advento do livro eletrônico vai provocar grandes mudanças no Mercado editorial. Entre outras coisas, vai diminuir os custos de produção dos livros e também os custos de venda pelas livrarias. Tanto escritores, quanto editores, podem fazer vendas diretas em seus sites, a custos quase zero. Essa é uma boa alternativa caso não haja acordo justo em relação ao pagamento de direitos autorais. A pressão vai ser comercial. Em resumo: há todas as condições para o preço do livro diminuir bastante (vantagem para os leitores) e o pagamento de direitos autorais subir bastante (vantagem histórica para os escritores).

Por isso, está dado o alerta: escritores em geral: não sejamos bobos. Não assinemos nenhum contrato enquanto não houver uma discussão aberta sobre direitos autorais de livro eletrônico e um acordo justo. Não caiam na balela de que estamos nos tempos de “quebra de autoria, compartilhamento de informações”, argumento que está sendo utilizado por alguns comerciantes de livros. Eles não vão “compartilhar” nossos livros. Eles vão vendê-los.

Alguns editores já compreenderam a necessidade dessa discussão com seus autores. Já perceberam que se marcarem touca vão beirar a falência, como aconteceu com as gravadoras. São poucos. E provavelmente vão tentar acordos individuais com os autores.

Eu vejo a grande oportunidade de tomarmos uma decisão coletiva. Uma decisão dessa forma vem com muito mais força. Podemos fechar um acordo que beneficie a todos. É uma oportunidade única.

É uma oportunidade única para os editores e livreiros também mostrarem que se preocupam de fato com os autores, que os vêem de fato como “parceiros” (termo da moda).

Alguém aí já se deu conta que na “cadeia produtiva do livro” (outro termo em moda), o único que não é profissional (no sentido de viver do seu trabalho) é o escritor? O livreiro é, o distribuidor é, o editor é, o gráfico é, o balconista da livraria é. Menos aquele que produz a matéria-prima para o trabalho de todos os outros da tal “cadeia produtiva”.

Pensem bem nisso. Caso não haja acordo justo, nada impede que num futuro muito próximo os próprios autores se organizem, criem uma editora virtual, e vendam seus livros diretamente, ganhando 80, 90% de direitos autorais.

Peço aos que entenderam o que diz esse texto que se manifestem. Que passem adiante. Que republiquem em seus blogues. Que discutam nos bares (não é assunto “chato”, não. Diz respeito ao nosso trabalho). Que ampliem essa discussão e pensem formas de partirmos pra ação.

É a hora.

ADEMIR ASSUNÇÃO

Ademir Assunção é poeta e jornalista, autor dos livros, entre outros, LSD Nô, Zona Branca e Adorável Criatura Frankenstein e do cd Rebelião na Zona Fantasma. É um dos editores da revista Coyote. Blog http://zonabranca.blog.uol.com.br Site: http://zonafantasma.sites.uol.com.br E-mail: zonabranca@uol.com.br

17 maio 2010

Conversas sobre Literatura


A USP já não é mais a mesma. Mas ainda há vida inteligente lá. E há também humor. Às vezes sarcástico, irônico, corrosivo, desesperançado, porém, com uma didática lucidez. Meu amigo Oliveira Barbosa e eu percorremos as catacumbas do prédio da Letras para entrevistar o professor de literatura brasileira, autodenominado ‘espanador de múmias’, JOÃO ADOLFO HANSEN. Suas aulas estão sempre abarrotadas de alunos e curiosos, que em silêncio quase reverencial, quase susto, permanecem por hora e meia sentados ouvindo, ouvindo e ouvindo. É um dos professores mais interessantes que já tive a boa sorte de acompanhar.

EC – Como o Sr. vê hoje a falência das Humanidades, das Ciências Humanas no mundo globalizado?

HANSEN - Acho que ela é uma decorrência lógica do estágio atual do capitalismo, que evidentemente transforma toda a cultura num valor de troca e mercadoria. Na medida em que estas Letras ainda pretendiam ter uma função crítica, e na medida que você não tem condições práticas e materiais pra que essa crítica se realize, as Letras foram totalmente desvalorizadas. Elas só podem interessar, talvez, como divertimento, passatempo. Eu acho que é lógico, é um desenvolvimento lógico do capital. Agora, não sei se a gente fica numa posição de lamentar o leite derramado que se perdeu... Isso acho que não vale a pena, mas também parece que hoje nós não temos muita clareza sobre o que está ocorrendo no campo mesmo da cultura e das Letras. Parece que hoje o que vale... É quase um vale tudo, né? Não sei se eu te respondi?

EC – Mas como se posicionar nesse meio, como professor de Literatura, como estudante de Literatura, como alguém que de algum modo se envolve com a Literatura...?

HANSEN – Evidentemente eu não posso dizer o que os outros devem fazer, eu posso dizer o que eles podem fazer e a partir de minha experiência que é muito precária e muito particular. Eu, pessoalmente, acredito que a gente deve resistir contra a barbárie que esta aí. Então nesse sentido as Letras ainda tem uma função de conhecimento, de crítica, e eu espero sempre que até de democratização das relações. A gente devia pensar num mundo mais democrático. Eu penso nisso, que a função de um professor é criticar opinião. É criticar aquilo que passa por natureza e é só ideologia, entende? Nesse sentido as Letras, elas são ocasião pra discutir temas da cultura, na medida em que a Literatura põe em cena todas as questões que importam. A gente vê isso na grande poesia, quando você ta lendo um Drummond, quando você lê um Murilo Mendes, ou um grande artista como o Graciliano Ramos, um Guimarães Rosa, um Machado de Assis, ta tudo ali... Pra quem quiser ver. Tem essa questão, é pra quem quiser ver. Eu acredito que você faz aquilo que você pode. Às vezes me sinto como professor, como se eu fosse um arqueólogo que trabalha num museu, guardando múmias. Na medida em que a experiência do texto literário, atualmente, não encontra a ressonância nas práticas efetivas da nossa sociedade. Mas assim mesmo acredito que é possível ainda ler, discutir, fazer, na medida em que há pessoas, que tem interesse. Não sei se eu te respondi de novo...



EC – Sim... Temos uma idéia romântica que a Literatura pode fazer alguma coisa pra mudar, de alguma forma interferir...

HANSEN – Não, ela não pode. Como eu ia dizer hoje mesmo em classe, falando do João Cabral, o poeta não pode nada, o escritor não pode nada. Ele não é padre, não é militar, não é político, e ele não é banqueiro. Quer dizer, ele não tem acesso, realmente, ao poder efetivo... Mas, no texto literário, quando o texto literário vale a pena, as normas sociais, os esquemas de ação verbal estão sempre sendo polemizados, criticados, contraditados. Acho que a Literatura tem alguma eficácia na medida em que ela evidencia sempre o arbitrário da cultura, o arbitrário do simbólico, o arbitrário da convenção social no uso dos signos. Nesse sentido o poeta pode ser eficaz. Talvez pra alguns... Não diria que ele vai transformar a sociedade. Ele vai transformar, talvez, modos de ler, modos de entender, o que já é alguma coisa, né? Você acha que responde, também...?



EC – É uma resposta... Mas, retomando uma pergunta que eu havia lhe feito em aula: o que é fazer literatura relevante hoje, e quem a estaria fazendo?

HANSEN – Eu nem lembro como eu lhe respondi...



EC – Porque, uma coisa que sentimos falta aqui na USP são dos autores contemporâneos... Estudam-se os autores mortos...

HANSEN – … é sempre difícil fazer a história do presente... Quer dizer, a história sempre está interessada no presente, eu acho. Você fala do passado interessado no presente, mas fazer a história dos próprios objetos e das práticas do presente, a gente não tem distanciamento. E às vezes, não temos uma documentação suficiente, a coisa não ficou sedimentada pra produzir, por exemplo, um consenso crítico, ainda que fosse polêmico, mas que fosse crítico. E na medida que você tem uma grande dispersão das práticas literárias hoje, a gente às vezes, não saberia por onde começar, o que escolher, etc. Além disso, tem um outro dado que é institucional, é que a Universidade ao mesmo tempo em que faz pesquisa, ela também tem este sentido de quase garantir uma memória daquilo que há. Geralmente, a Universidade tem esta tendência, às vezes muito forte demais, de dar conta só daquilo que ta morto, daquilo que passou. Você tem também aí, no nosso caso específico, uma questão institucional de não ter espaço acadêmico para fazer isso. O número de cursos, por exemplo, na minha área de Literatura Brasileira, não é suficiente pra dar conta do próprio passado. Nós somos obrigados muita vez, a fazer uma seleção que exclui, inclusive, épocas inteiras e autores inteiros. Do ponto de vista de uma história literária, embora sejam autores que não são grandes, mas tem interesse como coisa cultural. Então você tem várias questões aí. Também falta iniciativa, provavelmente de professores, falta iniciativa e organização dos alunos, mas eu acho que seria perfeitamente viável discutir o que se está fazendo hoje em poesia, ou como prosa, como experiências, inclusive, que estão abandonando estas classificações e vão indo, por exemplo, pro hipertexto, pra computador. Seria interessante fazer, quer dizer, de vez em quando aparecem coisas... A gente sabe que há todo um movimento nas periferias de jovens que escreve músicas, escrevem poesia falando de sua própria experiência. Mas a gente sabe muito pouco disso, porque talvez faltasse iniciativa... Mas acho viável, factível, ler ou discutir o que se faz hoje. Há um suplemento literário de Curitiba, chamado Rascunho...

EC – Conhecemos...

HANSEN – Com vários críticos jovens, que estão tentando fazer isso, discutir a produção contemporânea...



EC – É!

HANSEN – Eu conheci ali uns rapazes... O Rodrigo, o Bressane, e que são moços inteligentíssimos, brilhantes e que tão fazendo coisas muito legais... A gente precisaria de mais iniciativas..., Inclusive discutir se é na Universidade mesmo que isso deve ser feito, ou se às vezes a inteligência não está fora da Universidade... (Risos)



EC – Já que você tocou no Rascunho, que tem o Nelson de Oliveira lá escrevendo também; tem (tinha) um poeta "atual" com vários livros editados, o Carpinejar, inclusive uma antologia pela Companhia das Letras... Como você vê, se é que você acompanha, essa nova geração?

HANSEN – Eu não acompanho muito não. Eu tenho lido coisas esparsas, dadas à própria natureza do meu trabalho. Como eu tô fazendo trabalhos ligados lá ao passado, sécs XVI, XVII e XVIII, geralmente, estes objetos ocupam todo o tempo e meu campo... Eu tenho tentado ler algumas coisas, e tenho tentado ler sem pré-juízo. Porque acontece muito também que esta produção nova, às vezes ela é lida por meio de critérios com que a gente lia os textos modernistas, modernos, de grande invenção. E às vezes, como esta literatura nova não tem estes critérios, muita vez a crítica é negativa, e aplica a ela critérios de exclusão ou de desqualificação, dizendo que não tem, por exemplo, a qualidade de X, Y ou Z. Agora, o problema que a gente tem é de discutir esta literatura segundo os próprios condicionamentos materiais, sociais dela, segundo as próprias regras que ela propõe para ela mesma ser lida hoje. E nesse sentido a gente não tem muito distanciamento e, às vezes, temos muito a interferência das categorias críticas anteriores, que dão conta de um João Cabral, ou dão conta de um Marques Rebelo, de um Cyro dos Anjos, até mais longe, de uma Clarice Lispector, mas que não dão conta, por exemplo, de um conto do Bressane, percebe? Neste sentido, acho que você tem aí uma questão teórica, uma questão crítica, que é também uma questão artística e uma questão política. Quem fala? De onde fala? Como fala? Quais são os condicionamentos, o que está em jogo? Agora, como é um campo disperso, a própria dispersão produz uma dificuldade quase que apriorística. O que é que eu vou ler e como é que eu vou juntar... Você fala ‘Geração 90’, será que é mesmo uma geração 90? Será que justamente eles não estão estourando a própria idéia de classificação por década, ou de classificação por estilo. Porque parece que é uma variedade muito grande de experiências... Você tem desde a experiência que vai recuperar a poesia concreta, à experiência de gente que está revendo Ezra Pound, os provençais, tá no computador fazendo holograma, gente que está fazendo uma prosa realista, naturalista, bruta, falando da favela; ou gente que está fazendo experiências metafísicas, percebe? Então é difícil... pra mim é difícil.



EC – Talvez esta seja a característica do que nós chamamos pós-moderno...?

HANSEN – Eu acho que sim. É uma espécie de característica desse liquidificador que é o mundo contemporâneo. Fundamentalmente, acho que é uma des-hierarquização do valor, a gente não tem mais categorias nítidas e precisas pra dizer isso presta, isso não presta. Porque o próprio conceito de arte e o próprio conceito de literatura faz tempo que foi pro espaço. A gente não sabe muito bem. Temos uma concepção tradicional, que vem lá dos gregos, que opõe, o texto é literário quando ele é de ficção. E a gente opõe a idéia de que existem discursos que falam do real que não são fictícios. É possível ler um texto literário como se ele fosse um texto pragmático, um texto que se refere diretamente à realidade, não como ficção. É possível ler uma instrução de uso de aspirador de pó como se fosse fictício. Os alemães lá de Constanza, principalmente, o Stiller, eles propuseram que a questão da discussão da literatura hoje implicaria termos que discutir o que é o ato de fingir? Não a idéia da ficção já dada como uma evidência, ficção oposta ao real, mas a idéia de que um texto é literário quando ele pode ser lido como um texto que representa um ato de fingir. E como os atos de fingimento variam historicamente, e segundo eles, são muito particulares, teríamos que definir também em que situação algo pode ser lido como literatura. Você pensar que hoje os meio de comunicação produzem a realidade o tempo todo. Você imagina, por exemplo, quando o avião se choca lá nas torres em nova-iorque, é um acontecimento real, mas a reprodução daquela imagem na televisão americana incansavelmente, passaram durante dois ou três dias, a cada segundo passavam, chega um momento que aquilo torna-se ficção, mas que produz um efeito de realidade e que você não sabe mais qual é o evento real. Se é o primeiro momento que bateu o avião, ou ele continua batendo sempre, percebe? O que produz, evidentemente, do ponto de vista norte-americano, é para produzir uma paranóia que garante o controle do Bush e aí a política guerreira dele. A coisa também é política. Você teria que ter critérios aí muito teóricos pra gente discutir. O que é o estado da realidade contemporânea? A gente não sabe muito bem o que é...



EC – Mas, o poeta pra fazer um trabalho relevante hoje, ele contestaria o que está aí, ou ele faz uma viagem interna...?

HANSEN – Não sei. Não sei o que ele teria que fazer... Quer dizer, ele tem todo um peso de uma gigantesca tradição atrás dele...



EC – ... Que ele tem que dialogar...?

HANSEN – Aqui no Brasil, por exemplo, um poeta ele tem que pensar que já houve João Cabral, Drummond, Bandeira, Murilo Mendes, Mario de Andrade, Oswald de Andrade, posso estar esquecendo alguém importante... Tem que pensar também que houve uma gigantesca redução da poesia, uma síntese, feita pelo Concretismo. Ele também não pode ser um poeta inculto, tem que saber o que a crítica literária propôs, discutiu. Tem que ser muito informado historicamente, ele não pode ser ingênuo. Essa é a primeira coisa, agora, o que ele vai fazer, isso a gente tem que discutir a partir efetivamente do poema concreto que ele irá realizar... Do poema concreto não...(Risos)...Do poema particular, porque muitos ainda estão fazendo poesia concreta. Tenho a impressão que você teria que discutir de novo os condicionamentos da prática. E que são sociais. O que condiciona a prática desse poeta? O que ele põe em cena quando ele escreve? Que material social ele transforma? E que sentido ele dá a forma que ele produz? Aí você já tem alguns elementos pra se começar a discutir. Agora, evidentemente, a gente também faz parte desta tradição e quando você lê um poeta hoje, você tem na cabeça um Drummond, Mallarmé, uma tradição longuíssima, você tem Virgílio e Homero na cabeça. Então quando você vai ler, você fala: o que esse cara ta propondo? A gente tem muito uma idéia modernista, moderna, de que a poesia deveria ser o novo, a cada momento o novo. Num mundo administrado como o nosso e que vive um presente contínuo da troca, a gente deveria perguntar se existe condição de aparecer o novo. Ou se a própria idéia de novo não é a reposição contínua da própria estrutura de troca mercantil que a gente vive. Se o novo já não ta controlado previamente pela estrutura do capital. Agora você vai perceber que muitos artistas vão ficar uma espécie de técnicos numa pequena técnica. Por exemplo, nas artes plásticas, que acabou a pintura, e só tem essas bobagens destas instalações – você entra numa sala escura com uma televisão ligada, tem um fio de vara de pescar que te bate no rosto e um ruído – e isto é arte, quer dizer, uma indefinição total e que chateou... (silêncio)... Muitos artistas cansados disso estão voltando a uma pequena técnica, estão fazendo de novo, xilogravura, estão retomando pincel, estão propondo a serigrafia, tão fazendo...



EC -...Sonetos.

HANSEN – É, sonetos... Até sonetos...



EC – o Glauco Mattoso...

HANSEN – O Glauco faz, né? Mas o Glauco é satírico, paródico, e o Glauco tem um humor magnífico, né? Então ele faz com um sentido muito divertido, a geléia de barroco, aquelas coisas dele... O Glauco é divertido e é bom o que ele faz, eu acho muito bom... Ele é muito agudo e irreverente. Acho que o poeta precisa ser irreverente hoje, senão ele fica esmagado com o peso da tradição, o nome do pai...



EC – E o Manoel de Barros, o que acha?

HANSEN – Eu acho singular, interessante, uma coisa assim que vem, pequena, uma espécie de...



EC – Ínfimo...

HANSEN -... De experiência do ínfimo, de experiência do micro e que faz valer uma experiência de vida muito intensa dele, com a planta, o bicho, a terra. Ele é uma voz autônoma, quer dizer, é um poeta culto, mas você não precisa dizer: ah, isso me lembra Drummond. Não, você pode dizer: isso me lembra Manoel de Barros.



EC – É. Ele tem uma voz própria.

HANSEN – Ele tem uma voz própria.



EC – E isso é raro. Talvez seja esse o desafio...

HANSEN – Isso é muito raro. Talvez, como dizia o Mário de Andrade, o poeta brasileiro publica muito cedo, né? Devia ser... Não deve ser proibido adolescente fazer poesia, de modo algum, deve até ser incentivado, mas ele devia ser proibido de publicar. Ele devia fazer o teste do Horácio, quer dizer, guardar na gaveta nove anos, e daí quando reler, se não causar vergonha, presta. (risos) Entende? É que eles são muito açodados, muito afoitos. É que também tem uma ideologia aqui...



EC – Também porque é rápida... Edite...

HANSEN – Sim. E tem esta ideologia também da comunicação a toda força, e até de um certo narcisismo, do prestígio: eu quero ser reconhecido como poeta, né? O que é uma bobagem. O Guimarães Rosa que dizia, quando o Guteloris perguntou pra ele: o que você acha de ser o gênio da Literatura Brasileira. Ele falou, gênio? Não. Trabalho. Trabalho. Trabalho. Trabalho. E mais Trabalho. Ele repete cinco vezes. E Rosa fala isso com autoridade, né? Percebe? Eu penso assim. Tô brincando um pouco é evidente, mas eu penso assim...



EC – E a poesia serve pra quê?

HANSEN – Pra nada! (risos) Poesia é totalmente inútil. Mas, justamente num mundo utilitarista como o nosso, burguês, essa inutilidade dela é que vale. Ela tem a virtude do inútil, percebe? Isso que é legal.



EC – Um inutensílio...

HANSEN – É. Ela é um inutensílio, neste sentido. Não serve pra nada, mas é justamente esse nada que é fundamental. Porque ele pode ser contraposto ao mundo regido pelo dinheiro, como o nosso, em que tudo, mas tudo mesmo, é pensado como valor de troca. A poesia é uma das últimas coisas em que o valor de troca não apita. Embora a gente saiba, também, que ela é um presunto. Como dizia o João Cabral, ela é fezes, ela é um resto. Mas acho que não serve pra nada...



EC – Em suas aulas, pelo seu jeito de expor seus pensamentos, sua ironia... Fico pensando que para quem tem 18, 19 anos parece que você puxa o tapete e não apresenta nada no fim do túnel...

HANSEN – Sim. Ótimo, né? É isso, eu não sou padre. Você concorda? Eu acho imoral também, você fornecer pras pessoas receitas de vida. Eu não posso dizer pras pessoas, vocês devem fazer isso. Os intelectuais brasileiros tentaram por muito tempo, esta idéia de que eles iam organizar a massa, fornecer consciência pra massa. Isso eu acho que não é possível. Já basta isso, puxar o tapete. Se a gente, efetivamente, puxa. Porque a gente também não passa de um professor, que fala umas coisas, que às vezes são ouvidas, às vezes não...



EC – Às vezes são gravadas...

HANSEN – Mas eu não tenho nenhuma pretensão de melhorar ninguém. Também não de piorar, mas não tenho pretensão, não. Acredito que as boas intenções são punidas; necessariamente punidas. Eu acredito muito fortemente nisso. É uma ocasião de um jogo, mas de um jogo sério e você tem que ser honesto com os alunos, você tem que expor aquilo que há sobre aquela questão que está debatendo, ao mesmo tempo não fazer a brincadeira de ser um avestruz. Porque acreditar que este é o melhor dos mundos possíveis... Ele não é.



EC – Mas você tem esperança?

HANSEN – Não sei. Eu não sei... Já estou velho... Sim, mas você sempre tem alguma esperança. Basta pensar que eu continuo vivo, eu não me matei. Eu sempre espero, o melhor. Mas aqueles objetos de esperança que eu tinha, de quando era moço, eles se tornaram historicamente inviáveis. Não existem mais... Eu não sei. Sim... A gente tem que ter esperança tem que afirmar a esperança mesmo quando não há razão nenhuma pra ter. Agora, o mundo de hoje é muito ruim, como sempre foi, mas ele é... Basta você abrir um jornal, ligar a televisão, estar vivendo pra perceber que ele é terrível... É terrível. E que tudo que há parece que desmente qualquer hipótese de esperança, mas apesar de tudo há movimento. Eu acredito que as coisas mudem. E a gente tem que mudar, e tem que viver prum mundo onde as coisas mudem. Isso já oferece... Um princípio. Talvez eu não tenha nenhum fundamento pra justificar isso que estou dizendo. Bom... Acho que é isso.



EC – Se você tivesse que indicar cinco obras, ou autores, pra quem estiver começando na Literatura, quais vocês indicaria?

HANSEN – Eu proporia que lesse a Bíblia. Eu proporia que lesse Homero. Na medida em que essas duas grandes tradições, como Auerbach mostrava, elas dão origem a toda a Literatura do ocidente. O poeta Auden também falava isso. Dizia que, se um dia ele desse um curso, ele faria os alunos durante dois anos ler a Bíblia e Homero. Porque na hipótese dele, tudo que vem depois retoma estes dois grandes textos. Feito isso, você teria que discutir se você vai ler a Literatura de sua língua, ou se você vai ler Literatura que fosse, assim, universal. Eu leria Shakespeare, que tem uma visão muito nítida do homem. Uma visão desencantada, crítica, dura. Eu leria também Kafka. Eu acho que Kafka vê o mundo moderno, o mundo contemporâneo. Leria também um autor nosso. Ficaria em dúvida entre o Machado de Assis e o Guimarães Rosas. Estou pensando em prosadores. Evidentemente na poesia, é difícil, porque você tem poetas assim, monstruosos. Um Drummond é toda uma Literatura. Eliot é um grande poeta também. Os italianos: Salvatore Quasímodo, Montale, Ungaretti. Você teria que eleger uma tradição poética. Tem várias tradições, né? Talvez, a gente fosse buscar aquele texto que nos fala mais diretamente a experiência de vida porque sintetiza todo o mundo dele, o tempo dele. Você vê, eu podia ter falado do Cervantes, do ‘Quixote’, mas eu pensava na idéia de uma formação do leitor: A Bíblia, o Homero, Shakespeare, como uma síntese de tudo que é antigo e depois eu pulava pro Kafka e leria algum grande poeta moderno. E aí eu tenho dúvida entre o Drummond, Eliot...



EC – Baudelaire?

HANSEN – Não, eu não diria Baudelaire. Eu leria Baudelaire, como um poeta que é um sismógrafo, uma espécie de indicador da modernidade chegando. É um grande poeta, mas eu acho que não leria Baudelaire, eu proporia poetas ainda mais amplos, eu proporia Drummond, por exemplo. Se eu tivesse que levar pruma ilha, eu levaria os dois, mas se tivesse que escolher seria difícil, mas eu levaria Drummond. São só opiniões...



EC – Hoje praticamente você tem quase tudo disponível na internet...

HANSEN – Tem tudo... Agora, quem lê? Esta que é a questão. (Risos) Quem é o superolho..., Porque precisa ter o olho de um Deus pra poder ler toda essa informação. A gente talvez devesse ser mais lento... A gente ta numa sociedade da velocidade, a gente devia... Ralentando, desacelerar um pouco.



OB – Então a crítica literária está fadada ao fracasso?

HANSEN – Em que sentido?



OB – Por não conseguir...

HANSEN – Sim. A crítica não existe mais... Como instituição. Você tem o resenhador, o marqueteiro tipo Folha de São Paulo... Você não acha? Você não tem mais a instituição crítica... No Brasil. Um Wilson Martins, um Álvaro Lins, Antonio Candido, que escreviam profissionalmente no jornal. Ou trabalhava na Universidade... Não tem isso mais.



EC – Interessante falar isso passando por estes corredores cheios de história... (Caminhávamos pelos corredores onde ficam as salas dos professores. Antigamente chamavam-se gabinetes e ainda se pode ver o nome de alguns espécimes já extintos, e outros em vias de pregados nas portas: Alfredo Bosi; Massaud Moises; Davi Arrigucci Júnior; Ina Camargo Costa; Ligia Chiappini Moraes Leite; Regina Lucia Pontieri; Ariovaldo Jose Vidal; Marcus Vinicius Mazzari; Antonio Dimas; Jose Antonio Pasta; Alcides Villaça; Luiz Roncari; José Miguel Wisnik; Augusto Massi; João Adolfo Hansen; Roberto Zular, Jorge M. B. de Almeida).

HANSEN – Pois é!

João Adolfo Hansen (Cosmópolis, 1942) é professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo-USP. Pesquisador na área de literatura, crítico literário, ensaísta e historiador, Hansen é o nome mais importante dentre os estudiosos de Letras Coloniais e certamente um dos mais importantes críticos literários do Brasil ainda em atividade na universidade (2009). Recebeu o Prêmio Jabuti, na categoria Estudos Literários, pelo livro A Sátira e o Engenho. Gregório de Matos e a Bahia do Século XVII.