26 junho 2020

BANZO





carrego em meu lombo
várias máculas onomásticas.

sou Zé, filho de Edward
um desterro sem quilombo
e sobre o nome
a Cruz.

sou nenhum
mulato negro índio
sou ninguém
tingido d’água salgada vindo.

mesmo depois de liberto
com os sapatos a luzir
um ilhéu
que o destino não quis
soteropolitano.

um grapiúna no sul-
maravilha
quase impecável
sem marcas
       cicatrizes
não ungido
sem excesso de melanina.

algo assim próximo à matéria
alva que se quer tingir o mundo
visão última, clarão
dos que erraram o alvo
não tiveram sorte
e encontraram súbito
a própria morte.







[Baobás, Ilustração digital, 20x15 – 2020, de Alexandre Ignácio Alves. Confira mais de seu trabalho, aqui.]







25 junho 2020

GRAÇAS



















o corpo consuma múltiplas
violências.
o corpo feminino sempre foi
alvo preferencial.
é um templo que já foi sagrado
e diariamente é ultrajado.
em torno dele, homens dançaram
e impérios foram destruídos.
o tempo crispou seus pelos
e pássaros voaram sussurrando
o nome de Helena.
os deuses nunca suportaram
tanta graça e, invejosos,
derramaram sobre o mundo
todas as desgraças
urdindo mãos de muitos homens
para consumá-las.






[Vênus #5, Acrílica sobre tela – 1995, de Alexandre Ignácio Alves. Confira mais de seu trabalho, aqui.]


24 junho 2020

CONSIDERAR





















olhar com maravilha
fenômenos que cintilam
passageiros.
pastores a fitar paralisados
a luz noturna dos astros.
crianças a mirar silenciosas
o reflexo celeste
de seus olhos.
fios luminosos a riscar
o veludo negro
do cosmos.





23 junho 2020

CARDÍACO






     








     valorar é uma instância
     de tangência cardíaca.
     o coração contamina tudo.
     valores humanos são sempre
     valores do coração.
     uma ética que se preze
     é bombeada por uma estética.
     a estética é uma instância
     do fazer, da poiésis.
     e o que dá dimensão ao fazer
     é o olho da alma,
     um nome mais pomposo
     para o coração.







22 junho 2020

NIKÉ











































entre o zênite e o nadir
posto-me aqui sem nada
apenas com um tênis Nike
vaidoso como um faquir.







Niké é a deusa grega da vitória e está vinculada ao triunfo e à glória. Todos os deuses, atletas e guerreiros desejavam ter Niké ao seu lado. O que nos mostra como as grandes corporações são usurpadoras, antes de mais nada, do nosso imaginário, do nosso inconsciente coletivo.











21 junho 2020

CENTELHAS





        

















para Amaral Vieira e Yara Ferraz


céu e Terra são pousadas
onde os seres
fazem breve parada.

o tempo são redes,
hóspedes sem morada
espalhadas pelo sempre.

um Steinway ecoa no espaço
notas sagradas
de um Franz Liszt.









19 junho 2020

JAZZ

















o grave que jaz em nós
é o oco profundo do mundo.
uma frequência que desarmoniza
qualquer possibilidade de felicidade.
mas somos negros e algo em nós
resiste e grita.
nossa alma baila em moonwalk
no submundo do Hades.
aqui, nos Estados Unidos, em África
as mesmas marcas foram cravadas
nas estruturas.
o Brasil nos deu tudo de solapa.
uma ginga que encanta
quem não é bamba.
no ver da gente o samba
é pedra-mor.
nossas pegadas foram pregadas
na pedra
e buscamos sofregamente
decifrá-las.






18 junho 2020

TESSITURA














            o presente é ambidestro
            e nem sempre nos apetece
            mas é nele que a vida tece
            se faz presto e acontece.





17 junho 2020

HOMILIA












oh, poesia que irradia
ópio nosso de cada dia
dai-nos hoje a utopia
o contraveneno à afasia
devolva-nos por garantia
a tão usurpada alegria.






16 junho 2020

POBRE

















aquele de quem tiraram 
tudo o que tinha
e o fizeram querer tudo
aquilo que não pode ter.
aquele que fizeram crer
ser quase podre
e desejar aquilo tudo
que não pôde ser.




15 junho 2020

ANTES DO FIM













          para Sophia Miki e Tom Mitsuo



chegar ao outro lado da piscina Olímpica
e dar uma olhadinha pro céu azulado.

esperar a próxima florada das cerejeiras
passeando pelos parques do Japão.

cantar a música que ela tanto adora
e fechar os olhos na hora do beijo.

caminhar pela mata amazônica
e fotografar um Euhybus ikedai.

tirar uma self na Torre Eiffel
e depois mergulhar no Rio Sena.

tocar Praia de Morigasaki ao violino
e desaparecer enquanto todos estiverem chorando.

chegar à beira do Grand Canyon
e gritar a plenos pulmões: Sensei, eu venci!





14 junho 2020

TAO





















   o mestre taoista
   ao se apaixonar caligrafou:
   “Agora sim eu vi o dragão”.









13 junho 2020

HASARD

















não há acaso no pós,
apenas o caos e seu abraço
a gerar inúmeros dados.
nenhum lance de sorte
é esperado.
não há chance. no way.
apenas o fado
e seu bailar desastrado.
o deslizar dos dados
no tabuleiro da vez.
o xeque-mate do enfado
e o desespero do rei.






Nota:
1) poema enviado (e não selecionado) ao Arte como Respiro: múltiplos editais de emergência do setor de cultura dos banqueiros do Itaú/Unibanco.

2) compartilho comentário do poeta Marcelo Ariel que reflete o que eu penso a respeito desses editais culturais de fome patrocinados por bancos e adjacências:

Não deveria perder meu tempo comentando isso mas não é bom que passe em b(r)anco: Se um banco que obteve um lucro líquido contábil de R$ 3,401 bilhões no primeiro trimestre de 2020, quisesse realmente criar um auxílio emergencial para as artes criaria uma linha de crédito de no mínimo trinta milhões de reais com abertura imediata de conta para subvenção a fundo perdido.O critério seria inclusivo para artistas desempregados e/ou com renda inferior a um ou dois salários mínimos impactados pela pandemia, obviamente isto seria em uma segunda fase extensivo para microempresas. (Pequenas editoras, sebos, revistas e fanzines culturais, pequenas gravadoras independentes, centros culturais em zonas de exclusão, livrarias alternativas e produtoras culturais em geral ) Essa medida iria atingir infinitamente mais pessoas do que um edital seletivo e exclusivo que no fundo é uma operação de divulgação de marca que utiliza menos de 0,02% da renda líquida do primeiro trimestre de 2020 do não referido banco. Obviamente participei e participo sem ilusão ou ressentimentos de todos os editais abertos , sei da importância deles, não somos otários mas os bancos pensam que somos.











12 junho 2020

NA ESTRADA

















      araucárias choram.
      pinhas espalhadas
      pelo gramado molhado.







11 junho 2020

LINGUAGEM



















outeiro criado de acúmulos
tegumentos enrijecidos
essências exteriorizadas

depósito de antiquíssimas
coisas que não deterioram

plástico cheio de esperma
restos que não evaporam
interiores de madrepérola

coisas não transformadas
em objetos de adorno

palavras não específicas
lamelibrânquios lâmina
branca de sentidos

forno onde se calcina
a cal da memória

fábrica de desmundos
mijos de civilizações
sambaquis

tudo que o tempo não esquece
nem envaidece

kjokkenmodding








Nota: Na foto, Ezra Pound em Veneza, local em que morreu, que foi um mestre no quesito linguagem literária. O poema acima faz parte de meu primeiro livro Sortilégio. Descobri em meus arquivos um comentário inesperado do grande Augusto de Campos (enviado por email depois do livro lançado) que nunca havia compartilhado, nem publicado. Compartilho agora e notem que, claro, aceitei sua sugestão:

Caro Edson,


                    Ezra Pound dizia que os velhos não devem dar opinião sobre os mais novos, porque eles tendem a gostar daqueles que se parecem consigo mesmos. Em suma, os velhos são gente suspeita. No caso do SORTILÉGIO eu sou mais suspeito ainda, porque venho de ser tratado por vocês com uma generosidade inusitada e imerecida.  Em suma: como diríamos hoje no nosso lulês cotidiano, os septuagenários  “não deveriam meter o nariz” no trabalho daqueles a quem passam a bandeira. Mais atrapalham do que ajudam. Nos últimos anos de vida, quando já quase não falava, solicitado para dar um conselho aos jovens, respondeu o Ol’ Ez: “Curiosity, curiosity“. Curiosidade é o que não falta a você. O que sei dizer é que sua poesia tem garra e é tratada com esmero. Naturalmente, pelo vício original apontado por Pound, prefiro os poemas curtos, que você domina com segurança. Nada contra as tercinas (que necessitariam de mais precisão rítmica) ou os versos mais largos, onde há experiências interessantes como Lágrimas, com a sonoridade dos seus países e lugares, parecendo-me mais do que válido que você se exercite em diversas frentes. Porém a impressão que tenho é que, ao menos nesta fase, você se move, paradoxalmente, com mais fluidez e precisão, no verso enxuto. [Uma sugestão de amigo. Por que o “se envaidece” no bom poema LINGUAGEM? O problema gramatical é que a gente se envaidece “de” alguma coisa, o que parece conflitar com aquele “esquece”. Mas pode-se empregar perfeitamente “envaidece”, como transitivo, com uma pequena torção no significado. Acho que você poderia usar com vantagem “tudo o que o tempo não esquece/ nem envaidece.”]

Abraço grato, impertinente e suspeitíssimo do
                                                                     Augusto de Campos