02 agosto 2020

OURIÇO




nenhum mulato negro índio

nem esta nódoa nativa, mula

das índias ocidentais

 

nada com a cor de piche

melhorada em pixels

neca de pepitas douradas

nenhures nonada

 

zero em exercer exercitar se excitar

nulo deste aguadouro viscoso

seiva preciosa de vida escoada

à conta-gotas

 

chega deste papo besunto

arranjo de flores tardias

aulas, estórias, assuntos

 

demagogia a luz dos dias

chega de aulas de história

e a realidade feliz que não chega

 

chega

 

evoé, seja bem-vindo de volta

velho mouro.











01 agosto 2020

SALSUGEM







seu corpo

encontrado boiando

inchado de Jonas

baleia sem contorno.

 

o que já foi meu

um dia

hoje é alimento

da poesia.











31 julho 2020

ABULIA




quando os homens

e mulheres se abatem

todo o universo

se esbate

em misteriosa simbiose

melancolia jaz

soberana

sobre as lápides.







[Imagem: After the Ball by Ramon Casas]












30 julho 2020

SOPHIA


























para minha filha Sophia Miki


o verdadeiro sábio diria:
há caminhos no céu
que só os pássaros conhecem
neles trafegam
sem trombadas.

um sábio repetiria
sem pretensão
que há trajetos nos mares
intuídos pelos peixes
que desde sempre vão
aonde desejam.

[se é que peixe deseja
alguma coisa]

peixes não choram
embora alguns poetas
em seus tankas
– não confunda com tanques –
vislumbrem lágrimas
nos olhos dos peixes.

os peixes sofrem
um sofrer líquido e pegajoso
talvez não mais do que nós,
que embora invejosos
não conhecemos caminhos
nos céus,
nem nos mares,
nem na terra,
a não ser os caminhos
que manchamos com sangue
em nossa triste história
recente e sem fim.

sophia, ele arremataria
sabedoria é refazer-se
ao caminhar
acrescentar sobrenomes
ao nome
que lhe é próprio
criar verdes veredas
onde só havia
o ressequido ignorar.








29 julho 2020

UIVOVIVO



















a vida é breve
urge ser plena
mesmo que o sopro
leve o ânimo
desta pena
e a dor urre
sob o acúmulo
de neve
sigo
vi
vo
sou
um
ui
vo
.







28 julho 2020

SAMSARA





















tudo se transforma
nonada
que não quer ser

algo vira mônada
mais que nada
outra coisa vem
a ser

do feitio que ela
a vida
quando mesmo bela
se desativa

a chama passa
a se chamar
morte

aquele tênue
des
      equilíbrio
de quem foi
flama
e agora precisa
       renascer.











27 julho 2020

MORTE
















do fio que me anima
ao pavio que me consome
a palavra designa
alma minha que me foge.






26 julho 2020

SUPEREGO




























      diálogo com Ulisses Tavares




        sei tudo sobre esse herói.

        desde criança

        que me persegue.







25 julho 2020

BUENA VISTA












talvez ela

a teoria
especial da relatividade
pudesse explicar

o fato incrível de
estar numa velocidade
de xis quilômetros

e/ou

o tempo congelar
retroceder
o espaço se alterar

d’eu estar aqui
e num istmo/átimo
em Cuba lá estar

ela talvez

explicar pudesse
a relatividade da especial
teoria

ela talvez ela

quem sabe?








24 julho 2020

NO TANQUE DE BASHÔ











anuros
de etimologia obscura

mergulhos
em tanques imundos

sapos coaxando ali
tudo à revelia de mim

apupos n’alma









23 julho 2020

ALTA-AJUDA















Uma lanterna ilumina
mil anos de escuridão.

A vida irrefletida não vale
a pena ser vivida.

O homem é um ente a ser
superado.

O conhecimento não ultrapassa
nossa própria experiência.

A razão habita
a linguagem.

A imaginação dispõe
de tudo.

Não há nada fora
do texto.

O Ctrl+C e o Ctrl+V
operam maravilhas.









22 julho 2020

OVO















       Como voltar a um lar
       que nem sequer existiu.

       Fazer o movimento pendular.

       Recuperar a mãe
       que me pariu?






[Canal do Arruda no Recife. Foto by Diego Nigro]















21 julho 2020

APOLOS












Nenhum pássaro canta
o sofrimento.

Os homens, sim.

Os cisnes cantam maravilhosamente
antes de morrer.

Os homens berram e choram,
mesmo que tenha sido o bode.


Estamos mais próximos dos bodes
do que dos pássaros.

Somos rascunhos esquecidos
dos hiperbóreos.






20 julho 2020

OLVIDO
















Somos mortais esquecidos
de si.

Gurdieff colocava despertadores
espalhados pela casa.
Tocavam em horários diferentes
e ele se lembrava que os havia
colocado para não esquecer.

Depois, esquecia-se de tudo
até o próximo alarme.

Só os imortais não se esquecem.
São os mais infelizes dos seres.



[Relógio, by Vladimir Kush]










19 julho 2020

DOMINGO DE 1964
















Naqueles dias
a paisagem gritava
silenciosa.

Um câncer feroz
dilacerava minha infância
mas eu não fazia ideia
ainda.

Só a ausência
me carregava
pela mão.

A avenida Tiradentes faiscava.
Quartel de um lado,
tropas a descansar
de outro.

No meio de tudo,
um menino atento
ao mundo seguia
mudo.

O silêncio de minha mãe
era meu único amigo.
Ouriço encravado
doía, fundo.








[Avenida Tiradentes, foto do Acervo/Estadão]