21 setembro 2020

BATEIA DE CLICHÊS

 












O seio da face

é a maça do rosto.

 

O que é do gosto

regala a vida.

 

Mais vale a lida

que o fácil gozo.

 

Em todo ovo

labuta o novo.





20 setembro 2020

O MECANISMO





Aqui jaz meu poema

fazendo-se de morto

na página que há pouco

já foi alva

feito um teorema

que não se pode refutar.

 

Até que você o leia

insufle a vida

que lhe falta

e o transforme

em delicado mecanismo

que venha habilmente atingir

o desejado alvo.

 

        Touché? 









18 setembro 2020

RELÓGIO DE AREIA

 













Meu filho de onze anos

adora manipular ampulhetas.

Observa atentamente o relógio

de areia

como quem assiste à dissolução

de um império.

Ele é o senhor do tempo

e nem imagina o quanto

me faz barganhar

com Tânatos.









17 setembro 2020

JAPÃO ETERNO

 





O olhar de Jimmu

delineia

um panorama.

 

Libélulas ligadas

pela cauda.

 

Ah, Akitsushima, Akitsushima...

 

Os jardins do Imperador

são meus 

sonhos anotados em uma lauda.

 

Acima de tudo

- impassível –

o Monte Fuji.







Jimmu foi o primeiro Imperador do Japão. A casa imperial do Japão baseia-se nos descendentes diretos de Jimmu.

Akitsushima é um dos nomes antigos do Japão e significa “Ilha das libélulas”.












16 setembro 2020

FRÊMITO

 













Seus olhos

– na fluídica noite

da ausência –

me assombram.

 

Peixes centelham

em ardentia

de cardumes.

 

Células flageladas

– calcinadas –

com o desprezo.





[Foto by Felipe Cretella]










15 setembro 2020

ENGENHO

 










A função da arte

é resgatar com o siso

de suas formas

as pistas

de um anjo.

 

A legião de daimones

dentro de mim

abre um sorriso

de arcanjos

decaídos.








14 setembro 2020

MONTANDO O BOI

 










Preenchendo com o ser

o vazio do eu.

 

Com palavras,

o vazio da página.

 

Com o silêncio,

o falatório do mundo.




[Imagem: Lao Tsé Riding an Ox, de Chen Hongshou]











13 setembro 2020

À MARGEM NO ESPELHO

 








não sei se me interessei pelo jovem Marx

por ele se interessar pelos explorados

se me interessei pelos explorados por me interessar

pelo jovem Marx

quando penso agora no jovem Marx

penso nos explorados e quando penso nos explorados

penso no jovem Marx como me parece

que vou me ocupar com os excluídos

por um bom tempo parece-me que não

vou deixar de me interessar também pelo velho Marx

por um bom tempo

nunca saberei se me interesso pelos deixados à margem

ou se me interesso por um jovem já velho Marx que se interessava

pelos deixados à margem já que não me lembro

se percebi primeiro os explorados

se percebi primeiro o velho-jovem Marx

ou se eu próprio me vi no espelho

se eu próprio fui sempre um excluído

se eu próprio sou e estou à margem.








[Imagem: Tela-mural Manifestación (1934), do pintor argentino Antonio Berni]










12 setembro 2020

MILAGRES

 









há tantas plantas

que não geram flores

e são belas

como elas só.

 

tantas palavras

se erguem suspensas

sentinelas do ato

que as comprove.

 

tantos seres

colocados à margem

tornando-se improváveis

rizomas de lótus.








11 setembro 2020

O IMPOSSÍVEL SILÊNCIO

 








sem linguagem nada se mostra

ao ser.

ao calar-se, Wittgenstein falou

com a eloquência rara

dos tagarelas

e das paisagens sem vento.

 

o silêncio só é possível

na morte.

 

mesmo assim ele ulula

cão sem dono

entregue à própria sorte.








08 setembro 2020

REI

 











A melhor coisa do futebol

não é o gol.

Nem o gole que você toma

antes, durante ou depois.

 

Não é o seu time

com aquele hino sem tino.

Nem o meu

e suas estrelas sem brilho.

 

A melhor coisa do futebol

poderia ser a torcida,

seus cantos e urros.

Não fossem as organizadas

com seus hooligans

dando patadas feito burros.

 

E os jogadores com seus ritos,

seus pulinhos e cabelos

esquisitos?

Só perdem para os juízes

e seus horríveis modelitos.

 

Também não é o goleiro

em seu lance rasteiro

à procura da redonda,

sua eterna Gioconda.

 

A melhor coisa do futebol

é o drible, o olé.

É nele que reside o pois é,

a poiésis, a techné.

 

Melhor que isso tudo

só Ele, em caixa alta.

Melhor que a perfeição,

que a magia do ludo.

 

O ser talhado em ébano,

envolto em glória,

gingando pelos gramados

de minha memória.

 

Não ouso dizer seu nome,

seu Nascimento,

seu pedigree.

 

Apenas o trago guardado,

estampado nos álbuns.

Nas coleções

que nunca concluí.










07 setembro 2020

RUBRICA

 











Se a flor bela

não espanca,

a poesia

não encanta.

 

Todo poeta precisa ser

espancado.






05 setembro 2020

PRODÍGIOS

 








Tudo é escrita,

mesmo a palavra

não dita.


Tudo é fábula,

mesmo o enredo

sem fadas.


Viver é lavra

em uma ficção

inaudita.






04 setembro 2020

COMPETÊNCIA

 








Não sei falar inglês

nem o dialeto ancestral

banto.

Me vingo toda noite

sonhando

em esperanto.






03 setembro 2020

02 setembro 2020

REGRAS



















Boi, catamênio, 
chica, chico, conjunção, 
costume, embaraço, escorrência, fluxo, 
incômodo, lua, menarquia, 
menorreia, mênstruo, 
mês, paquete, pingadeira, 
sangue, veículo, 
visita, 
volta da lua.

Quando ela se viu grávida,
as regras já estavam sem sinonímia.






01 setembro 2020

DE TRÊS DEDOS

 



     







     Geometrias rasuradas
     nos gramados
     da memória.

     Uma coruja sobre
     um ângulo reto.
     O gol vazio e quieto.







31 agosto 2020

DESPERTAR

 











A busca principia

e se finda no coração.

Na longa jornada

dia a dia se oficia.

No limite, nos brinda

com a iluminação.

O ser na aurora do dia.