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10 junho 2009

Canção do Venerável




Carlos Alberto da Fonseca foi professor de Sânscrito e Cultura Indiana na USP por muito tempo. Ele é doutorado em Linguística com o trabalho “Teias sobre o Sânscrito. Um estudo da consciência linguística na Índia antiga”. Em outras palavras, o cara é um mestre no assunto. Ou melhor, doutor. Fiz um pequeno curso sobre o Mahabharata com ele na Casa das Rosas e fiquei encantado.

O que me levou a procurá-lo não foi um interesse súbito pelas coisas da Índia nem a sedução pelos caminhos globais da Índia. A questão é que assumi uma encomenda da Editora Paulinas: adaptar para o público jovem o grande clássico indiano Mahabharata. Tinha uma pálida idéia da encrenca em que havia me metido. Bem pálida. Estou devidamente encrencado.

O texto é monumental. Como ele diz, em pequena entrevista abaixo, tem cerca de 200 mil versos. Duzentos mil e não 78 mil como encontramos em algumas fontes. E tudo em sânscrito, que eu teria que levar mais de uma existência para aprender... Mas deixemos isso pra lá e vamos direto ao assunto que interessa aqui.

Carlos Alberto lança sua tradução, direta do sânscrito, do famoso e pouco lido, citado por bruxos milionários e cantores de rock — Bhagavadgita, ou Canção do Venerável. Texto que faz parte do livro 3 do Mahabharata.

Além do rigor da tradução, com a adequação de vários termos que haviam perdido sua real significância por nossa ignorância na matéria ou pela folga semântica que adquiriram em suas passagens por várias línguas ocidentais, ela se propõe a reproduzir a linguagem poética do livro em linguagem poética, deixando as explicações e paráfrases para as notas. Não é pouco.

Aproveitei o momento do lançamento e lhe enviei algumas perguntinhas básicas. Confira suas respostas.




Olá Edson...
já de volta, depois de me enfronhar nos meandros do caráter de um trapalhão chamado Górgias numa peça do Menandro de que depois Molière se adonou e deu a conhecer ao mundo, o Misantropo... mas no cd que eu trouxe não estão nem a apresentação nem o texto da tradução do Gita... vou ficar devendo...

Mas vou responder às perguntas... menos à última, e me explico: eu recusei um convite da produção da novela (da produção, não da autora) para lhe dar assessoria, por isso me vejo impossibilitado de falar qualquer coisa a qualquer mídia sobre a novela... espero que compreenda...

E vamos lá:



1) Quais as principais dificuldades encontradas para um tradutor do sânscrito? Sua tradução mantém a estrutura em versos da obra?

Em minha tradução procurei manter o esquema da estrutura em dísticos do poema; nele há algumas estrofes com 4 versos, e assim formulei sua tradução. Mas é interessante observar o lugar do verso na literatura indiana de expressão sânscrita; com reserva da poesia dos períodos védico e clássico (anterior e posterior ao período de elaboração dos poemas épicos), o verso serve mais às técnicas de memorização dos textos para sua transmissão oral, e não propriamente como elemento estético.

a) colocação no mercado: uma tradução de texto da Índia, antiga ou não, por conta da enorme diferença de dados culturais, precisa ser uma tradução anotada, profusamente anotada - o que sempre acaba dando ao texto traduzido um aspecto acadêmico - não que isso seja um problema, mas comercialmente causa estranheza...

b) é difícil, e tem de ser um trabalho cuidadoso e referenciado, encontrar adequação ou correspondência termo a termo nos vocabulários em confronto do português e do sânscrito no caso de uma tradução; a palavra dharma é um bom exemplo, correspondendo a "religião, filosofia, justiça, direito" e um longo etc... a semântica é sempre o maior problema na tradução de um texto sânscrito;

2) Sabemos que o Bhagavadgita faz parte do grande épico indiano Mahabharata. Qual a divisão dos livros do Mahabharata? O Gita é seu principal livro? E por que ele é o mais conhecido, se é que podemos verdadeiramente afirmar isso?

O MBh tem 18 livros, num total de cerca de 200.000 versos; o Gita faz parte do livro 3; talvez se tenha tornado o texto mais conhecido porque, embora engastado no poema como um conjunto de conceitos destinados a persuadir o personagem Arjuna a não combater os exércitos diante dele perfilados, tenha assumido o caráter de um texto teórico sobre questões discutidas por todas as correntes filosóficas indianas; no Ocidente, talvez sua popularidade também se deva ao fato de ter sido o primeiro texto sânscrito a ser traduzido neste lado do mundo... ou uma junção das duas razões... também tem o caráter de texto didático, mas nele não são fábulas que misturam seres humanos e animais que pensam e falam que transmitem os ensinamentos - mas o deus Krishna, avatar de Vishnu, o aspecto conservador da trindade hindu...

3) Um ocidental pode compreender e aproveitar com profundidade uma obra tão diversa e com uma cosmogonia tão diferente da nossa? Não há o risco da proposta estética essencial da obra não ser apreciada, de seus reais conteúdos não se tornarem temas de reflexão?

Claro que todo e qualquer texto de intenção doutrinal ou não corre esse risco de não ser compreendido e aproveitado em profundidade... isso só aumenta a necessidade das notas, sem vieses (a Índia não tem anjo, nem alma, nem pecado...) - e daí a oportunidade que minha tradução oferece de discussão, de construção por parte do leitor de questões apontadas no texto...

4) O movimento Hare Krishna está fundamentado nesta obra, ou dito de outra forma, o Gita é o manuscrito doutrinal de alguma religião?

5) Não poderia deixar de perguntar: o que está achando da visão passada da Índia feita pela novela da Globo?


Trechos:


Não queremos matar os filhos de Dhrtarastra nossos próprios parentes.
Como seríamos felizes tendo morto nossa própria gente, Madhava?

Mesmo que aqueles de mente dominada pela cobiça não vejam erro
na destruição do corpo da família e no crime da traição aos amigos,

como não podemos aprender a manter longe de nós essa culpa,
nós que consideramos erro a destruição da família, ó Janardana?

Na destruição da família, perecem os imemoriais dharma das famílias;
com a perda do dharma toda a família se volta para o adharma.

[...]

Ah que grande culpa nos arranjaremos por fazer
matar nossa própria gente por ambição pelas delícias do reino!

Seria melhor para mim se os filhos de Dhrtarastra, armas na mão,
me matassem a mim na batalha, desarmado e sem resistência.

Assim falando na batalha, Arjuna está desabando no assento do carro
deixando caírem o arco e a flecha, a mente dominada pela dor.