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19 janeiro 2010

Os caminhos da poesia contemporânea brasileira: dificuldades e acertos


Diante da incrível quantidade de poetas que surgem a cada dia, com seus modos particulares de escrita, cada vez mais elaboradas e conscientes; da efervescência de grupos e coletivos literários espalhados pelo país; da feliz facilidade hoje em se veicular uma publicação, seja por meio eletrônico, seja por meio impresso; da liberdade de poder ser o seu próprio agente literário; e do número crescente de editoras que se voltam a esse que é o mais frágil dos itens de mercado, eis que se revelam outros desafios – antes ocultos ou adormecidos – para os quais não nos preparamos adequadamente. O momento do pós-orgia preconizado por Baudrillard e adiado pelos nefelibatos do pós-real – o pós-tudo glorificado ou criticado em seus extremos por meio milhão de especuladores –, descamba então na exigência de novos caminhos – ou bem mais que isso, de se enxergar passagens ao largo de todas as rotas. O que nos move não é mais a poesia para todos, isso parece ter se cumprido de maneira adequada: todos fazem poesia. O problema agora é compreender porque ninguém lê poesia. Atribuir o problema à qualidade das escolas, à insuficiência das políticas de leitura ou às tendências mercadológicas não contempla à questão, uma vez que independente disso tudo, nunca esteve se fazendo tanta poesia. Talvez não haja uma resposta, mas não porque faltem explicações ou quem a queira responder, mas simplesmente porque ainda não foi formulada a pergunta adequada.

O projeto hegemônico lançou no mundo uma maneira eficaz, mas não necessariamente correta ou durável, de propor uma pergunta válida. A solução que ele dá para tanto excesso, cava um abismo ainda mais profundo, pois, se nos encontramos em um tal buraco, ele é a pá com a qual o cavamos. É na fundação excessiva de disciplinas e especializações que nos perdemos tentando encontrar a nós mesmos. Os estudos culturais, por exemplo, dão conta das diferenças simplesmente assimilando-as ao projeto dominante. Neles, os valores antigos são transferidos para ambientes periféricos, travestindo o mesmo e o de sempre com uma aura de marginalidade, inovação e rebeldia. É sabido que somente a descentralização não é suficiente para tocar o excêntrico. Em oposição à isso, encontramos os conservadores a la Harold Bloom, que ficam montando peças vitorianas sobre grandes teatros em ruínas. De um modo ou de outro, em um mundo que parece ter só se esmerado no aparo das arestas, a tática mais eficaz para a contemplação das diferenças tem sido a de torná-las sistematicamente identitárias. Com isso a contemporaneidade acaba sendo uma potência que gera energia em direções opostas: o mesmo que prepara para uma sindicância de reivindicações nos joga cada vez mais num processo maquinal.

A verdade, é que temos visto um uso leviano dos conceitos de “identidade” e “diferença” – ora se defendendo um, ora outro, de acordo com as conveniências –, sem que se leve em conta o mais relevante e o que de fato sempre moveu os pensadores do real: a tensão entre ambos. Pois, se por um lado evidenciar as diferenças na literatura é essencial, por outro é preciso criar uma consciência comum da literatura, para que não terminemos nas microinstitucionalizações da poesia e na guetização da literatura. O nosso desafio é alcançar aquilo que nunca esteve para ser alcançado e só podemos fazê-lo pulando fora do círculo vicioso, largando a pá e correndo para além do horizonte de eventos desse buraco fundo o suficiente para nos fazer desistir antes de tentar. Poderíamos começar com novas questões. Eis algumas delas: será que todos precisam de poesia? Será que ao que chamamos poesia – essa poesia de poetas e a maneira que ela se desenvolveu no século xx –, não se esconde a farsa de um protomercado que nem ao menos chegou a ser formulado? Será que o poético pode ser vendido? Será que ele é exclusividade dos grupos ou instituições que se formaram em sua defesa? Será que ele pode passivamente ser adequado e subclassificado em uma forma manifesta como a do poema, por exemplo?

Sim, o poema é um dos ritos da poesia, mas não o único, nunca o foi. Mesmo as formas mais ordinárias de projeção no real resguardam o poético – isso sempre se soube, mesmo depois de adormecida tal consciência – e, portanto, o poético pertence a todos, leia-se poemas ou não. O que se precisa é saber desvendar o poético nessas formas ordinárias – até certo ponto isto esteve na mão do cantor e a verdade nua e crua é que não está mais: não se precisa mais de poetas, ou pelo menos, não como supomos. E, talvez, a grande resposta à charada seja bem simples: é que todos – fazedores de poemas ou não – desejam ser, de alguma forma e mais do que nunca, seu próprio poeta, como fuga ao desencanto que se abate em todas as instâncias da realidade institucionalizante. Talvez (e isso é sempre um talvez) o poema não esteja mais cumprindo o seu papel de levar a poesia ao leitor, de fazê-los identificar no ordinário o que os poetas também enxergam. Mas tudo isso é menos triste para a poesia que para o poeta. Todo término e desesperança resguarda a possibilidade de um novo começo, ainda que seja para outros que não nós. Para isso é preciso que seus agentes sejam substituídos ou se movam segundos novos ethos.

Para recuperar esta força geratriz e propor novos começos, o poeta deverá enfrentar seus próprios medos e frases feitas. Ele não pode mais ser nem o cantor e nem o excluído. Seu poema não é mais uma edificação, mas uma picareta. Ele deve erguer-se na direção oposta da grande máquina de polarizações. Para além do pós-orgia, chegamos ao pós-chernobyl, e o poeta já não deveria se preocupar com posicionamentos diante de blocos ideologizantes. O que se espera dele é um movimento que vá contra aquilo que ele sempre acreditou: a centralização em si mesmo – visto que o grande mal hoje é o excesso cada vez maior das individualizações –, em direção ao rompimento de todo e qualquer obstáculo de acesso aos topos.

Se todas as ciências são ciências do espaço, a poesia, fundação do espaço, deve ser a cons-ciência de seus acessos – e para isso o poeta deve pertencer a um fluxo ininterrupto de trânsito entre os topos, sem restrições impostas uns pelos outros. Falamos sempre de topos ontológicos, de uma geografia mais profunda que aquela calculada entre regiões politicamente delimitadas; uma biotecnologia da alma que se revela em estados de ser no mundo; todos autênticos e que devem ser respeitados e contemplados em suas diferenças. E é fato que até agora nós, poetas, perdemos muito tempo com questões menores, bloqueando os caminhos, emperrando o movimento e mantendo a poesia distante de sua urgência. Diante da escassez dos meios, nos preocupamos com a ocupação dos topos para dali dominar e excluir, criando mecanismos de defesa uns contra os outros e emperrando o movimento para uma realização poética plena. Há poetas, por exemplo, que fingem ignorar outros, enquanto elegem seus amigos para as resenhas e antologias e isso inibe o surgimento do novo, do surpreendente, da diferença; pior: dá margem a criação de gerações de poetas cínicos. Todos somos excluídos em alguma escala e não podemos – enquanto poetas – compactuar com qualquer forma de exclusão, seja por meio da institucionalização, do controle dos canais ou da reserva dos meios. Sim, somos, por natureza, diferentes! Sim, essa é a nossa maior identidade – a única permanência. A tensão entre fixos e fluxos do levantamento de nossa topologia, os erros ou acertos no título desta mesa, revelam-se aí.

O desafio para o poeta é ainda maior, é a democratização do trânsito entre os topos, a movimentação entre estados, em prol de uma topopoiésis, i.e.: a restituição da poética ao espaço. Em nossa topopoiésis, as diferenças não são excludentes e as identidades não são niveladoras. As diversas realidades são concomitantes, realidades opostas e contraditórias coabitam, consubstanciam e determinam o real, não por eliminação ou assimilação, mas em suas diferenças radicais. O fluxo de passagem de um topos a outro, pressupõe sempre a própria dimensão do outro. O outro é uma dimensão a mais em nosso sistema sensorial. Por isso ser poeta será, entre outras coisas, calar-se em meio ao falatório, ter o dom do silêncio diante do outro (poeta ou leitor); ser a recolha em meio ao excesso.

Só nesse estada utópico (οὐ+τόπος, sem lugar), se faz o vislumbre do trânsito entre todos os topos, rompendo as fronteiras em direção a uma entropia. As diferenças só se mostram importantes quando confrontadas. Isoladas ou em identificação dialética, elas se anulam. Por exemplo, a potência geradora subsistente aos encontros propiciados nessa mesa e os frutos que dela podem surgir é mais importante que a diferença entre cada um de seus componentes isoladamente. Essas diferenças são sim relevantes quando confrontadas umas com as outras, possibilitando tensões criadoras de novos caminhos, de outros desígnios e de maneiras plurais de ver. O debate e suas possíveis formas de lapidação do pensamento é o que fertiliza e fomenta novos mundos a serem explorados pela poesia. Esse confronto traz muito mais vantagens que a disputa vazia ou a articulação de novos redutos. É somente nesse estágio de sabedoria dos poetas que se prevê o leitor autossuficiente, aquele que pode, atravessando diversos topos, erguer não um paideuma, mas uma topologia, uma vez que ele será o coautor de todo os livros. Pois bem, é esse leitor que salvará a poesia.


[Texto lido pelo poeta Márcio-André na mesa de diálogo sobre o lançamento do livro "O que é poesia?", na Casa das Rosas]