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11 dezembro 2009

Poetas à queima-roupa

As perguntas mais ingênuas, e legítimas, são sempre as mais espinhosas e difíceis de responder. Quando você pergunta a um marceneiro o que é marcenaria?, ele, quase sempre, sorri satisfeito com a possibilidade de discorrer sobre sua arte e, quem sabe, seduzir mais um neófito para seu ofício tão amado. O mesmo pode ser válido para outros artistas, por exemplo, um ator. O que é teatro?, você dispara, e ele mata a bola no peito e ainda faz várias embaixadinhas antes de responder falastrão.

Ainda que todas as artes tenham a sua especificidade e complexidade, os escritores — e, particularmente, os poetas — acreditam que a sua seja a mais complexa e inescrutável de todas. Bafejados pelas musas, os escritores são os seres mais suscetíveis do planeta. E os poetas, minha turma preferida, são a essência cintilante do que denominamos escritor. E dá-lhe suscetibilidade, pois eles carregam a responsabilidade, ou a pretensão, de serem as antenas da raça. E, cá pra nós, muitos realmente o são.

Se você é peitudo o suficiente e formula uma questão simples como esta: “o que é literatura?”, eles (os escritores) respondem como fazia Louis Armstrong quando lhe perguntavam o que é jazz: “Se você não sabe o que é jazz, então não vale a pena eu tentar explicar”. E ficamos por isso mesmo.

Pergunte a um poeta cioso de seu ofício: o que é poesia? Tem que ser à queima-roupa. Sacar rapidamente e desaparecer enquanto ele estiver perplexo e abalado. Antes de ele se recompor do primeiro balaço, volte e dê mais alguns tiros sem misericórdia para garantir o serviço: o que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?, e, cite-nos três poetas e três textos referenciais para seu trabalho poético. Por que destas escolhas?

Se Paulo Leminski estivesse vivo ele responderia (como de fato o fez, homenageando o poeta Manoel de Barros que em seu poema “Sabiá com trevas” diz: “o poema é antes de tudo um inutensílio”), sem pestanejar, com um golpe de caratê: “a poesia é um inestimável inutensílio”. E continuaria: “fazemos as coisas úteis para ter acesso a estes dons absolutos e finais.” Kiai! E não daria chance para as duas próximas perguntas.

Felizmente, estamos em época de internet e cibercultura. Pudemos enviar as afrontas por e-mail e aguardar, protegidos e ansiosos, as respostas. Se viessem. E elas vieram.

O projeto originou-se com essas reflexões quase pueris no intuito de satisfazer a curiosidade de estudantes, oficineiros e iniciantes no trabalho apurado com a palavra. O resultado seria (e foi) postado no blogue sambaquis.blogspot.com. Mas, afinal de contas, quem é que não se fez essas perguntas em algum momento, ou que não gostaria de saber como seu poeta dileto as responderia?

Alguns poetas silenciaram olimpicamente. Outros consideraram a primeira pergunta quase ofensiva. Mas, para minha surpresa, muitos poetas com quilometragem e obra consolidada responderam de forma generosa e corajosa.

À medida que as respostas e comentários foram chegando, percebemos que estávamos compondo um calidoscópio reflexivo do fazer poético contemporâneo, em sua imensa variedade de perspectivas e de fazeres.

Para adequação ao tamanho da edição, tivemos que deixar várias respostas de fora desta amostragem. O que nos leva a pensar na possibilidade de um segundo volume, pois respostas instigantes continuam a chegar.

Esperamos que as reflexões compiladas neste livro satisfaçam e reverberem no leitor sensível aos mistérios da criação poética (e no poeta que inicia sua trajetória) mas, principalmente que os libere para continuar a pesquisar, questionar e a tentar novos caminhos, pois, no âmbito da criação literária não há verdades absolutas. As musas, várias em suas manifestações, agradecem.

Se todo poema atualiza uma possível teoria da criação, o poeta quando instado a refletir sobre o (seu) fazer poético apresenta-nos, de bandeja, aspectos fundamentais de sua práxis, de sua poiésis, de seu paideuma, enfim, de sua índole poética.

A poesia é de longe, pelo menos para os poetas, a linguagem de maior potência de significação (“a mais condensada forma de expressão verbal”, dizia Pound), e não é de espantar a variedade de percepções, de leituras, de idiossincrasias, de práticas que permeiam a poética contemporânea e, evidente, a sua recepção. Tão diversas como o são os próprios seres e seus interesses.

Roland Barthes foi um dos teóricos que caracterizaram a linguagem poética como sendo um desvio consciente e sistemático da norma linguística. Podemos acrescentar que não só da norma linguística. A linguagem poética prima por desviar-se de qualquer tipo de normalidade, de adequação social, histórica, mercadológica e existencial. Pelo menos o que costumamos chamar — os envolvidos com o fazer poético — de poesia digna de nota.

O escritor norte-americano Randall Jarrel dizia de forma jocosa que um poeta poderá amanhã de manhã acordar famoso por ter escrito uma novela ou matado sua esposa, mas não por ter escrito um poema. Ele não contava com a possibilidade de um poeta acordar famoso por ter escrito uma canção. E menos ainda com a possibilidade desta canção ter resultado em um bom poema.

Como diz o poeta, filósofo e compositor popular Antonio Cicero, em suas respostas, citando Montaigne: “é mais fácil produzir poesia do que conhecê-la”. Bem, produzir boa poesia não nos parece ser tão fácil assim. Mas isso é história para outro projeto.


[Texto de apresentação do livro "O que é poesia?", de Edson Cruz, editado pela Confraria do Vento/Calibán]