09 junho 2020

PANDEMÔNIO




























as garras da noite infiltraram-se

sorrateiras

na hesitante luminosidade

dos dias.

 

a lição que nos ensina

com seu manto de névoas

não será fácil assimilar.

 

em tempos de trevas

mitologias e religiões confundem-nos

ainda mais.

 

os sonhos foram expulsos

e le cheval noire de la nuit encarcera

todas as imagens luminosas.

 

o que engendramos em vigília

já não inspira qualquer transcendência.

 

pode ser que não sejamos mais humanos

e alguma mutação ôntica já tenha

se instaurado.

 

talvez não seja mais possível zombar

da multidão de deuses

nem esquecê-los.

 

quiçá tenhamos de lhes fazer libações

para domesticar a legião de demônios

que despencou dos palácios de Satã.

 

o que se instaurou sobre nós

é o informe Caos à espera

de algum demiurgo.

 

uma símile corrompida do Paraíso Perdido

com versos que eliminaram

qualquer possibilidade

de redenção.

 











   [Imagem: “O Trono do Caos”, de Gustave Doré]















08 junho 2020

CARAVANA SOLITÁRIA




duas flores desiguais: o amor e o desamor
entre a pétala e a sépala floresce um cosmos

do nascimento à morte o mistério jaz
de um limite ao outro o extremo se perfaz

há gente que mata como quem vive
há outros que imitam um serial killer

de tudo sobra quase nada
gota de orvalho na manhã do Saara

os cães já não me seguem
os lugares todos me desertam

vivo pisando no chão dos nefelibatas
toda a vida é um acontecimento sinistro

o segredo da noite recolhe meus cacos
uma flor oferece seu pistilo

eu sigo acariciando meu destino.




[composição, voz e violão: Reynaldo Bessa; poema: Edson Cruz]





07 junho 2020

ANOITECER NA FLORESTA





     





















     para o menino Thiago de Mello


     é a hora do sono dos jacarés.

     pálpebras pesadas se fecham
     em sibilino ressonar 
     no mormaço.

     o remanso do poeta se aproxima.

     no desaguar majestoso dos rios,
     um borbulhar ressoa no espesso
     cansaço e seu abraço.

     o tempo se espraia
     em atávicos igarapés.

     um gavião silva e sobressalta
     o manso descanso do vate.

     o silêncio envolve tudo
     em seu arremate de asas.

     o menino Thiago desliza 
     em sua canoa de sonhos
     pelas águas negras do rio.

     estrelas se refletem nas águas
     e pirilampos tremeluzem
     em seus cabelos.



[Thiago em sua casa preparando-me um copo de Mirantã]






06 junho 2020

FUTEBOL EM BAGDÁ














o jovem Salfullah Al-Ansari
se explode
antes do apito final.

em um átimo, já não há
mais nada:
jogos
sonhos
           beijos
amigos risonhos.

só a dor, o vazio
               surdo
do estampido.
os pedaços, os corpos
carcomidos.

o clarão, a luz
de existências detonadas.
a expansão do universo
                            em disparada.






05 junho 2020

ÂNIMA





















dentro de mim há um sol
que arde sem ter fim.

um farol a iluminar
o que há fora de mim.

um escol a transformar
o que toca em marfim.





04 junho 2020

PEQUENA ONTOLOGIA

















em tudo que refulge
podemos em suma
constatar:


terra e água é tudo
quanto vem a ser
e nasce.

no entanto, algo arde
e nos inflama
desde sempre.

como nomear
tal chama infensa
que nos ascende
e nunca se arrefece?






03 junho 2020

REFÚGIO





































uma palavra técnica
que a ONU tenta definir
e o coração humano,
abrigar.

para os intelectuais a religião
é o refúgio dos desiludidos.
eles também se refugiam
em argumentos irrefutáveis
em nervosas sinapses
de sua massa cerebral.

na matemática do refúgio,
não há lugar para os animais.
os animais não entram nas estatísticas
do desterro.

a matemática grita em nosso olvido:
mais da metade dos que buscam refúgio
são crianças.

não há lugar seguro para a vida 
no mundo.
as ações parecem ineficazes.
resta-nos o refúgio dos sonhos,
ou a ousadia de mudá-lo.




[foto de Muhammed Muheinsein. Veja mais aqui]





02 junho 2020

VIA LÁCTEA

























     para Neusinha e Serginho



     Nas palavras e imagens
     da memória, mora
     um cosmos.
     Um campo de amoras.
     O outrora e seu pomar
     de estrelas.
     O agora e seu aroma
     de auroras futuras.
     No coração dessa sopa
     leitosa, a amizade
     que é eterna e sempre
     se renova.




01 junho 2020

ULISSES


















        pior do que ouvir
        o canto das sereias
        é não ouvi-lo.
        ter as orelhas tapadas
        com a cera da apatia.
        sorrir ao próprio umbigo
        enquanto o barco
        à deriva, ruma direto
        ao abismo.






31 maio 2020

FALA XAMÃ





          poesia é moldar no céu
          da linguagem
          universos paralelos.

          realizar um milagre qualquer  
          transverberado 
          em palavras-valise.

          revelar-se subitamente 
          e desaparecer 
          aos olhos de todos.
         
          poesia é uma revoada
          de arribaçãs.




30 maio 2020

MEDITO





    








    uma gota de orvalho desvanece
    ao raiar do sol.
    um pingo de chuva se funde
    ao oceano cósmico da existência.
    um grão de areia irmana-se
    às margens do Rio Ganges.
    um coiote uiva solitário
    no deserto árido do Arizona.
    um acorde de Bach reverbera
    nos tubos de uma pequena catedral gótica.
    um mantra fulgura entre os oitenta
    e quatro mil ensinos do Buda.
    a vibração de uma Lei maravilhosa
    envolve a tudo.
    enfim eu sou o todo 
    e o todo sou eu.
    três mil mundos se configuram
    neste ínfimo instante da vida.
    refaço assim o cosmos que há dentro
    e lá fora de mim.







29 maio 2020

ZEITGEIST















pensamentos já não pegam

carona nas nuvens

do céu.

os dias acompanham

a degeneração das coisas

sem espanto.

não há mais visão

de anjos nem profetas.

não há mais poesia.

a aura do planeta

não é mais azul.

a escuridão se apossa de tudo

                                               len

                                                     ta

                                                        men

                                                               te. 










[obra do fotógrafo francês Philippe Echaroux]







28 maio 2020

NÁUFRAGOS
















 

ó musa fugidia e divina

artesã da narrativa cósmica dos seres

conta-nos o que já não podemos vislumbrar

ou venha recriá-la com adendos.

por mais que estejas cansada

de artimanhas

e dos fazeres tempestuosos de Cronos

por mais que teu coração esteja constrangido

pelo padecimento dos seres

peço-te que não nos abandone

não nos deixe ser abraçados pela ira

de Poseidon

que irritado com a loucura dos povos

e governos

despeja-nos no mar revolto

da desesperança.

o que podes dizer que ainda não foi dito?

quais imprecações ou bálsamo

teu canto pode inspirar?

quem sabe poderia nos lembrar

que somos frutos de um amar, nutridos

no sal corrosivo do ultramar,

estrangeiros

em nosso próprio lar.




[obra A Nona Onda, de Ivan Aivazovsky]