23 fevereiro 2010
22 fevereiro 2010
09 fevereiro 2010
Rosácea de Proust
Na língua e no pensamento gregos havia duas formas de se encarar e vivenciar o tempo. O que eles chamavam de Chronos, gerou a palavra cronológico, e carregava o sentido de passagem do tempo, sequencial e quantitativo. O outro termo era Kairos, o tempo qualitativo, aquele que não pode ser medido e que nos faz sentir um século passar em um instante.
Qualquer narrativa, em qualquer arte, tem que trabalhar com a questão do tempo e, no limite, criar o seu próprio tempo. Há aquelas que primam pelo uso essencial do tempo, como a música, o cinema, os quadrinhos e a literatura.
Um romance, por exemplo, construído de forma linear, com começo, meio e fim e os fatos e peripécias desenvolvendo-se um após outro, flerta com Chronos em sua tessitura. Mas há aqueles que instauram Kairos em seu tecido ficcional e na fruição que nos possibilitam.
O escritor francês, Marcel Proust, foi um mestre do tempo na perspectiva revelada pelo conceito grego de Kairos. É o escritor que, talvez, melhor tenha conseguido retratar a passagem do tempo vivido e rememorado no romance moderno.
Sua monumental obra, Em Busca do tempo Perdido, foi elaborada em sete romances que se entrelaçam, formando um todo harmônico e musical feito uma sinfonia. A metáfora da música é mais do que adequada quando falamos em tecer o tempo com o grau de refinamento e destreza que Proust realizou.
A sinfonia de Proust foi composta em sete movimentos: No Caminho de Swann, A Sombra das Raparigas em Flor, O Caminho de Guermantes, Sodoma e Gomorra, A Prisioneira; A Fugitiva e O Tempo Redescoberto.
Ficamos sabendo, lendo suas anotações, que o último capítulo de O Tempo Redescoberto foi escrito imediatamente após o primeiro capítulo de No Caminho de Swann o que, por si só, demonstra que o romance não foi concebido linearmente, pois a matéria central entre os dois foi escrita depois.
Proust buscou representar por intermédio do narrador, indiferente à cronologia e à organização lógica, as suas próprias questões existenciais. O narrador, que é o personagem principal, coloca o problema de uma vocação que se debate até tomar consciência de si mesma no último livro do romance.
Mas a forma como ele fez isso é que ainda faz toda a diferença. E sabemos que em arte a forma conta mais do que o conteúdo. Em Proust a narrativa é vivenciada no presente e o tempo que nos mostra não é apenas retrospectivo (foi um dos primeiros a usar a técnica de flashbacks na literatura), mas também prospectivo.
O tempo em Proust está ligado, intimamente, com a memória e, mais especificamente, com a memória involuntária, que é o afloramento à consciência de determinada lembrança a partir de uma sensação análoga à outra experimentada anteriormente.
Por exemplo, quando o narrador ouve uma sonata, no momento em que sua amada já o desprezava, sente voltar o tempo em que era amado por ela. Não só o tempo, mas as sensações prazerosas daqueles instantes já perdidos.
Ou quando saboreia uma madeleine (um biscoito fino) molhada no chá e sente uma profunda alegria ao relembrar da cidadezinha onde passava férias e de toda a infância, da atmosfera de todo o período de seu passado aflorado na consciência, neste exato instante, pelo gosto do biscoito em sua boca.
A questão do tempo, então, não é apenas uma questão de se estabelecer a proporção entre a importância do evento e o tempo destinado ao seu tratamento. No romance, a duração percebida está relacionada à sintaxe. Os voos estilísticos e as digressões retardam, por exemplo, o fluxo da narrativa. E neste aspecto, o romance de Proust é um verdadeiro marco narrativo. Proust cria e recria o tempo com maestria, gerando um ritmo extremamente lento, que parece dissolver a ação.
Sua narrativa envolve uma temporalidade tríplice: o tempo da história, o tempo do discurso e o tempo de produção do discurso.
O tempo da história pode abranger uma vida toda. O tempo do discurso compreende o tempo necessário para se ler o romance. O tempo de produção do discurso é como esta história é contada no tempo, ou seja, esta vida toda pode ser contada em um dia, ou toda a infância aflorando a partir de um sabor rememorado.
O tempo buscado por Proust é aquele que não existe mais em nós, mas que continua a viver oculto em um sabor, uma fragrância, uma imagem, as torres de uma igreja. Tempo recuperado pelo conteúdo que emerge à consciência.
Muito se falou da relação da obra de Proust com as ideias e reflexões do filósofo Henri Bergson. Não se pode negar em Proust, a influência bergsoniana na apreensão do tempo como “duração” fora do encadeamento sucessivo dos fatos. Mas, não seria totalmente verdadeiro conceituar o romance proustiniano como uma adequação literária da filosofia de Henri Bergson, como muitos o fazem.
Ele conheceu a filosofia de Bergson mais tarde do que se imagina e negou categoricamente em entrevista a existência de uma relação direta entre a sua obra e as teorias do filósofo.
Mesmo no quesito memória, o denominador comum entre Bergson e Proust está na crítica de ambos às limitações da memória ligada à inteligência. Bergson considera que a totalidade do passado é conservada, desde o despertar da consciência. Para Proust, a memória aparece como um abismo, de onde só um pequeno número de lembranças é resgatado. Mas a julgar pelo caudal de sua obra, o que para ele é pequeno, em nós é quase afogamento.
Há quem identifique no estilo de escrita de Proust, cheio de idas e vindas, com avanços e recuos alternados e simétricos, frases e períodos longuíssimos, uma correspondência aos impulsos de uma respiração que luta para vencer a falta de ar, pelo fato dele ter sido asmático desde criança. Até já nomearam esse estilo de “rosácea de Proust”.
O fato é que, depois de Proust, a importância do enredo e as narrativas tradicionais com começo, meio e fim, foram abaladas irremediavelmente. O tempo é o senhor de tudo. Tambor de todos os ritmos. E ele aguarda que todos possam usufruir do biscoito fino, a madeleine, que Proust nos ofertou.
[Texto escrito e reelaborado com outro título para a edição nº 3 da baiana Revista Lícia]