23 dezembro 2009

De onde vem o Papai Noel



Uma vez, na França, na cidade de Dijon, em 1951, tentaram acabar com o mito do Papai Noel. As autoridades eclesiásticas acharam que o velhinho estava muito comercial. Convocaram 250 crianças para enforcá-lo em praça pública. O resultado foi, ao contrário, uma verdadeira rebelião. A população ressuscitou Noel entronizando-o no imaginário popular. O antropólogo Lévi-Strauss chegou até a escrever um ensaio sobre esse episódio. Se um dos maiores pensadores do nosso tempo se deteve a analisar isto, é sinal que a figura de Noel deve ter alguma importância.

Há duas origens do mito do Papai Noel. A mais conhecida a gente sabe: está ligada a São Nicolau, um santo de origem grega, que salvou marinheiros na tempestade, libertou moças prisioneiras e ficou famoso por ressuscitar crianças. Sua imagem de bom velhinho vem daí. A célebre obra “A lenda dourada”, que conta a vidas dos primeiros santos da igreja, dedica-lhe várias páginas.

Mas há uma outra origem dessa figura, que antecede ao cristianismo e que escapou ao próprio Lévi-Strauss. E aí o Papai Noel não é nada bonzinho. O mito do velhinho que, em pleno inverno europeu, gratifica as crianças trazendo presentes em um saco às costas é, na verdade, a forma como o imaginário cristão resolveu reformular um mito arcaico que era o avesso do Papai Noel.

Trata-se de um personagem que tinha também o nome de Nicolas. Ele vinha `a frente de uma horda de mascarados estalando seu chicote, fazendo soar os sinos dependurados em sua roupa e, assim, iam assaltando povoados e obrigando os moradores a celebrarem com eles suas orgias. Traziam consigo também sacos para o sequestro de crianças. Isto ocorria exatamente no solstício de inverno, época que a igreja, posteriormente, escolheu para fixar o nascimento de Cristo.

Há na memória, tanto dos povos nórdicos quanto dos franceses, belgas e alemães, referências à essa horda de cavaleiros perversos. Na região de Lorraine, existe a figura do Pai com Chicote que, ambiguamente, remete tanto ao bárbaro que vinha chicoteando seus cavalos, quanto ao Papai Noel que vem docemente “chicoteando” suas renas. Coincidentemente, na biografia de São Nicolau o chicote também aparece, mas de forma invertida, pois ele que é martirizado com um chicote. Na Alemanha, a figura do “Klaubauf” - um velho com um saco para recolher crianças - remete ambiguamente para a mesma lenda. E, na Inglaterra, esse vestígio da figura pré-cristã de Nicolau, aparece no nome do diabo que é chamado de “velho Nick”.

É fascinante como o imaginário acomoda nossos temores e expectativas elaborando personagens que podem ter até suas qualidade trocadas. Assim como na tradição cristã se construía igrejas com nomes de santos, onde antes havia um templo a Apolo, Minerva etc., também as lendas de outra época passaram por um tratamento ideológico.

Ainda bem que Papai Noel se transformou em algo bom. Já chega sermos vitimados o ano inteiro por uma série variada de saqueadores que não vêm de fora, mas que vivem no mesmo país que a gente.


[Crônica de Natal enviada por Affonso Romano de Sant'Anna]

22 dezembro 2009

Rubem Fonseca e o Papai Noel

Amigos,

como vocês devem saber, Rubem Fonseca mudou de editora e acaba de lançar pela Agir, O Seminarista.

A assessora de imprensa da Agir me perguntou se eu queria receber o livro para uma possível resenha no Cronópios. Sem entrar em detalhes, nem atualizá-la sobre o embróglio cronopiano, falei que gostaria de receber o livro sim.

Estou na página 99 e lá pela 76 o romance pareceu desandar. Até então estava adorando. Escrita direta, seca, sem firulas e muitas citações em latim. Sigo a leitura torcendo pra que a metade final do livro me surpreenda.

No entanto, como é véspera de Natal, o começo do livro me pareceu espetacular. Vejam só:

“Sou conhecido como o Especialista, contratado para serviços específicos. O Despachante diz quem é o freguês, me dá as coordenadas e eu faço o serviço. Antes de entrar no que interessa – Kirsten, Ziff, D.S., Sangue de Boi – eu vou contar como foram alguns dos meus serviços.

O último foi na véspera do Natal. O Despachante deu-me um endereço e disse onde encontrar o freguês, que estava dando uma festa para um monte de gente. Bastava chegar com um embrulho de papel colorido que eu entrava na casa. O Despachante era um cara magro e alto, muito branco, louro, e estava sempre de terno preto, camisa branca, gravata e óculos escuros. Ele me pagava bem.

‘O freguês está vestido de Papai Noel e tem uma berruga no rosto ao lado direito do nariz.'

Sempre odiei, desde criança, esses papais-noéis fazendo Ô! Ô! Ô! Sei que o ódio é um surto de insanidade, como disse Horácio, Ira furor brevis est, mas ninguém está livre dele. Vesti uma roupa alinhada, peguei uma caixa vazia e fiz um enorme embrulho de presente. Coloquei sob a camisa a minha Beretta com silenciador e toquei a campainha da casa do freguês.

Por sorte minha quem abriu a porta foi o Papai Noel. ‘Entra, entra’, ele disse, ‘feliz Natal!’

‘Faz Ô! Ô! Ô! pra mim’, pedi, enquanto constatava a berruga ao lado do nariz.

‘Ô! Ô! Ô!’, ele fez. Dei um tiro na sua cabeça. Sempre dou um tiro na cabeça. Com esses coletes novos à prova de bala, aquela técnica de atirar no terceiro botão da camisa para furar o coração pode não funcionar.”

Animador, não?

21 dezembro 2009

A música é a musa de todos nós

Podemos ter uma ideia do caráter de um povo, de um momento histórico e de um ser humano pela música que ele pratica e ouve. A música não só revela os sentimentos e emoções íntimas do ser humano, mas também os gera e os transforma.

Neste sentido torna-se valioso o conhecimento do material utilizado pelos músicos e compositores, mesmo que não o manipulemos como músicos; pois certamente somos mais influenciados pelas sonoridades que nos cercam do que gostaríamos de admitir.

A música pode nos levar a possibilidades de experiências jamais tentadas. Em todas as culturas antigas do mundo, a música existiu em função do ritual, do serviço a alguma divindade, da expansão da consciência e das mais profundas experiências humanas. Os ritos e cultos xamanísticos, os rituais da África ou da América do Sul, do Extremo Oriente, trabalham com um conhecimento - que podemos chamar de inconsciente - de uma força primordial, ou lei, desencadeada através de manifestações sonoras e rítmicas.

Esse conhecimento, por si só, já seria interessante para nós ocidentais ou ocidentalizados. Poderíamos, e isso só cabe a nós, não só deixar essa energia agir de forma mágica, mas também experimentá-la conscientemente, tornando-a mais presente, a nosso dispor e com isso tornando-nos seres mais perfeitos, íntegros. Em suma, mais seres humanos.

Nas civilizações da antiguidade, o som organizado inteligentemente representava a mais elevada de todas as artes, e a música, a mais importante das ciências, o caminho mais poderoso à iluminação religiosa e a base de um governo estável e harmonioso. A música vigorosamente agia sobre o caráter do homem.

Hoje, nós modernos ou pós-modernos, pós-tudo, ex-tudo (como diz Augusto de Campos), não estudamos, não mudamos, emudecemos e o pior: ficamos surdos.

quando não ouvimos

a própria voz

desafinamos.

Não consideramos mais o som audível um reflexo terreno de uma atividade vibratória, que se dá além do mundo físico, mais fundamental e mais próximo do âmago das coisas.

Inaudível ao ouvido humano, essa atividade vibratória cósmica é a origem e a base de tudo que foi e continua a ser gerado no universo.

Além da música, a expressão do discurso era considerada um reflexo no mundo da matéria dos tons cósmicos. Esses tons cósmicos eram chamados pelos egípcios de «o verbo» ou «o verbo dos deuses»; pelos gregos de «a música das esferas».

As palavras, ouvidas por este diapasão, possuem um poder encantatório imenso. Já disse Louis F. Céline que o trabalho com as palavras pode matar um homem. Se pode matá-lo pode também salvá-lo, digo. Os arranjos são infinitos, aprendamos a escolher.

No princípio, então, sempre esteve o som, o verbo, a palavra, o ritmo, o logos. Como na música, assim na vida, já ouvimos. Diga-me qual a palavra e te direi quem és.

Os poetas, a meu ver, têm a função de recuperar este poder encantatório das palavras, tão corroídas pelos clichês. A função do músico, por outro lado, é colocar ordem no caos. Os ruídos são muitos e a afinação e a harmonia (esta deusa/ artesã que cria as formas mortais) parecem ser as buscas mais adequadas para o momento histórico que vivemos, depois de termos sido estilhaçados por duas guerras mundiais, duas bombas atômicas e experiências estéticas que reverberaram o caos e a desordem.

De partes bem ajustadas assenhora-se o sábio do Todo.

Os ouvidos não têm pálpebras.

Conta-se que Villa-Lobos, quando questionado sobre como conseguia compor com tantos ruídos externos (janela aberta aos sons da urbe ensandecida), respondeu com simplicidade: «meu filho, o ouvido externo não tem nada a ver com o ouvido interno».

É nosso ouvido interno que urge ser aprimorado e utilizado para a reconstrução do mundo e de uma vida mais plena. Tarefa difícil, mas necessária. Precisaremos de cardumes de bons músicos e poetas.

18 dezembro 2009

Encontro poético em Recife


Por onde anda o Evandro Affonso Ferreira, catrâmbias?



CATRÂMBIAS!

Diacho ando meio angurriado metade descrente metade arrufadiço totalmente afuazado apre há algo de podre no reino da dinamarca-mídia-literária em que vivemos; dois anos atrás escrevi livrinho de minicontos huifa baba-ovo daqueles louvaminhas cousalousa de todos os tipos-naipes quejandos; gostei claro; sou escritor; pobre-diabo estólido hã careço deles tapinhas nas costas; mas convenhamos dito-cujo puh muita-abelha-pouco-mel diriam amigos malandros dantanho eh-eh; oportuno dizer tertuliamente que elas vespas também fazem favos; retomando assunto digo-repito estou estupidificado com o digamos desprezo amplo-total-irrestrito deles jornalões de todos os quadrantes brasilísticos ao livro CERTEZA DO AGORA de Juliano Garcia Pessanha – autor que contraria meu (como direi?) malthusianismo literário: população-escritor e texto-consistência crescem em proporções diferentes; bangalafumenga aqui nada-neca-neres talento nenhum para costuras ensaísticas; pena; senão escreveria texto à la Carpeaux dizendo a flux: o numem de Juliano é um numem tremendum; a religião de Juliano não é a religião fácil dos bem-pensantes, a quem o seu Deus garante todas as ordens do mundo; o Deus de Juliano faz estremecer os fundamentos do céu e da terra; pena; estou anos-luz dele Otto Maria; mas Juliano Pessanha não; vejamos: Engana-se quem diz que o horror é inominável, o horror só é inominável para quem só conhece as palavras dóceis, para quem só conhece as palavras meios-termos, mas o horror é dizível na hipótese em que você foi visto por um olho-Auschwitz e você, tendo percebido que estava sendo visto-e-dito por um olho-boca-Auschwitz e você, simultaneamente, assistiu tudo isso acontecer. Com uma voz-frieza-de-objeto você pode descrever-mimetizar o que assistiu enquanto era visto e no-me-a-do como algo exterminável; li muito muito mesmo nos últimos tempos; mas não sei escrever sobre livros; Hermann Broch Gontcharov Bruno Schulz Lobo Antunes Jens Peter Jacobsen Hilda Hilst Manganelli mais tantos outros escritores que não vieram ao mundo para agradar a ortodoxia; sabiam-sabem que viver é garimpar pechisbeque hã são os áditos schopenhauerianos da vida; mas diacho nenhum deles me comoveu tanto feito ele Juliano Pessanha; nenhum deles havia sido literalmente taquicárdico; sim páginas tantas toque toque toque arre lá! Coração recauchutado pimba! Exigiu incontinenti auxílio dele Isordil; susto daqueles; finalmente entendia porque Tirésias perdeu a vista por ter olhado Atena; tarde toda quieto dentro de casa andando a furta-passo; vez em quando eh-eh olhava a revezes azabumbado CERTEZA DO AGORA fechado sobre criado-mudo me espreitando heiddegerianamente; abri não apre incor never more; dois dias depois sim enfrentei altivo livro-quase-letal dele magnífico Juliano Garcia Pessanha; huifa; texto traz nelas entrelinhas loucura simulada à la Ulisses aquele que semeava pedra em vez de trigo; texto dele transmigra verbo-presente-eclesiástico pro pretérito; nada havia de novo debaixo do Sol; texto dele Juliano deixa claro-claríssimo-da-silva que não há ensalmos que dê jeito nela insensatez humana; CERTEZA DO AGORA é comovente; é magistral; é devastador; diacho se eu soubesse escrever feito ele Carpeaux terminaria assim: uma vez Heidegger fez uma tentativa de traduzir seu pensamento citando versos de Hölderlin; ele se reconhecia no poeta; Juliano se reconhece no filósofo.

(Trecho do livro Zaratempô, editora 34, 2005, de Evandro Affonso Ferreira)

16 dezembro 2009

Caiu na rede começou

Sem dúvida nenhuma, uma das questões que o advento da internet veio problematizar e questionar, é a noção de autoria. Essa palavrinha/conceito só passou a existir de fato na literatura, se não estou enganado, a partir do século XIX. Antigamente, pelo menos na chamada Idade Média latina, tínhamos uma noção de “autoridade” que estava relacionada diretamente ao discurso, e não à figura de um indivíduo propriamente dito.

No romantismo é que se gera a idéia de um indivíduo artístico, a figura do “gênio” e a do “marginal”. Como propõe Foucault, em sua palestra para a Sociedade Francesa de Filosofia (em 1969), mereceria um estudo mais pormenorizado saber “como é que o autor se individualizou numa cultura como a nossa, que estatuto lhe foi atribuído, a partir de que momento, por exemplo, se iniciaram as pesquisas sobre a autenticidade e atribuição [de autoria], em que sistema de valorização foi o autor julgado, em que momento se começou a contar a vida dos autores de preferência à dos heróis, como é que se instaurou essa categoria fundamental da crítica que é ‘o-homem-e-a-obra’...”

Se não continuo enganado em meu raciocínio, creio que foi o próprio Foucault quem demonstrou que a noção de autoria interessava ao poder estabelecido, a igreja etc., pois com ela se podia melhor aferir as penas e culpas de determinados discursos transgressores.

E eu, nessa pequena reflexão, invisto-me da autoridade e do discurso de Foucault para valorizar a autoria de meu texto, recheado de citações, e quem sabe me livrar das penalidades cabíveis a minha inapetência intelectual, ou, o mais importante, seduzir o incauto leitor aos argumentos de “meu” discurso. Mas, mesmo assim, leitor cúmplice, assinarei meu nome no final, ou no começo como podes bem notar.

Em todo caso, anote bem o que dizia o grande Michel: “Assim que se instaurou um regime de propriedade para os textos, assim que se promulgaram regras estritas sobre os direitos de autor, sobre as relações autores-editores, sobre os direitos de reprodução, etc, – isto é, no final do século XVIII e no início do século XIX –, foi nesse momento que a possibilidade de transgressão própria do ato de escrever adquiriu progressivamente a aura de um imperativo típico da literatura. ...”

Você pode notar, prezado, que eu ainda me dou ao trabalho de colocar aspas (pois sou “intelectualmente honesto”) aos discursos que me aproprio, mesmo você, talvez, não sabendo se a ordem dos fatores, ou da fatura, apresentada poderia mudar drasticamente o produto.

Para finalizar o rosário de citações de Valery-Foucault, anote mais essa – mas me dê o crédito também, pois eu também penso assim, talvez, não com as mesmas palavras, claro – de nosso filósofo de última hora: “...os discursos ‘literários’ já não podem ser recebidos se não forem dotados da função autor: perguntar-se-á a qualquer texto de poesia ou de ficção de onde é que veio, quem o escreveu, em que data, em que circunstâncias ou a partir de que projeto. O sentido que lhe conferirmos, o estatuto ou o valor que lhe reconhecermos dependem da forma como respondermos a estas questões.”

Percebeu, mon chéri, o que isso significa? Se ainda não, então, leia rapidinho o texto de outro grande autor plagiado e diluído mundialmente, o Borges de Pierre Menard. Aquele texto fundamental onde Borges prova que o autor do Quixote não foi o fidalgo Cervantes.

Agora que já enchi bastante a lingüiça desta página em branco, devo dizer que esse palavrório todo é para sugerir a leitura do livro Caiu na rede acabou, de Cora Ronai. O livro já é antigo (aos padrões velozes dos novos tempos), mas o tema atualíssimo.

Ela tenta entender e analisar a inocência, ou a cara-de-pau de muitos que repassam textos, na internet, como se fossem seus, ou de autores consagrados, omitindo, ou rasurando, a autoria real do texto.

Dê uma conferida aqui.

11 dezembro 2009

Poetas à queima-roupa

As perguntas mais ingênuas, e legítimas, são sempre as mais espinhosas e difíceis de responder. Quando você pergunta a um marceneiro o que é marcenaria?, ele, quase sempre, sorri satisfeito com a possibilidade de discorrer sobre sua arte e, quem sabe, seduzir mais um neófito para seu ofício tão amado. O mesmo pode ser válido para outros artistas, por exemplo, um ator. O que é teatro?, você dispara, e ele mata a bola no peito e ainda faz várias embaixadinhas antes de responder falastrão.

Ainda que todas as artes tenham a sua especificidade e complexidade, os escritores — e, particularmente, os poetas — acreditam que a sua seja a mais complexa e inescrutável de todas. Bafejados pelas musas, os escritores são os seres mais suscetíveis do planeta. E os poetas, minha turma preferida, são a essência cintilante do que denominamos escritor. E dá-lhe suscetibilidade, pois eles carregam a responsabilidade, ou a pretensão, de serem as antenas da raça. E, cá pra nós, muitos realmente o são.

Se você é peitudo o suficiente e formula uma questão simples como esta: “o que é literatura?”, eles (os escritores) respondem como fazia Louis Armstrong quando lhe perguntavam o que é jazz: “Se você não sabe o que é jazz, então não vale a pena eu tentar explicar”. E ficamos por isso mesmo.

Pergunte a um poeta cioso de seu ofício: o que é poesia? Tem que ser à queima-roupa. Sacar rapidamente e desaparecer enquanto ele estiver perplexo e abalado. Antes de ele se recompor do primeiro balaço, volte e dê mais alguns tiros sem misericórdia para garantir o serviço: o que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?, e, cite-nos três poetas e três textos referenciais para seu trabalho poético. Por que destas escolhas?

Se Paulo Leminski estivesse vivo ele responderia (como de fato o fez, homenageando o poeta Manoel de Barros que em seu poema “Sabiá com trevas” diz: “o poema é antes de tudo um inutensílio”), sem pestanejar, com um golpe de caratê: “a poesia é um inestimável inutensílio”. E continuaria: “fazemos as coisas úteis para ter acesso a estes dons absolutos e finais.” Kiai! E não daria chance para as duas próximas perguntas.

Felizmente, estamos em época de internet e cibercultura. Pudemos enviar as afrontas por e-mail e aguardar, protegidos e ansiosos, as respostas. Se viessem. E elas vieram.

O projeto originou-se com essas reflexões quase pueris no intuito de satisfazer a curiosidade de estudantes, oficineiros e iniciantes no trabalho apurado com a palavra. O resultado seria (e foi) postado no blogue sambaquis.blogspot.com. Mas, afinal de contas, quem é que não se fez essas perguntas em algum momento, ou que não gostaria de saber como seu poeta dileto as responderia?

Alguns poetas silenciaram olimpicamente. Outros consideraram a primeira pergunta quase ofensiva. Mas, para minha surpresa, muitos poetas com quilometragem e obra consolidada responderam de forma generosa e corajosa.

À medida que as respostas e comentários foram chegando, percebemos que estávamos compondo um calidoscópio reflexivo do fazer poético contemporâneo, em sua imensa variedade de perspectivas e de fazeres.

Para adequação ao tamanho da edição, tivemos que deixar várias respostas de fora desta amostragem. O que nos leva a pensar na possibilidade de um segundo volume, pois respostas instigantes continuam a chegar.

Esperamos que as reflexões compiladas neste livro satisfaçam e reverberem no leitor sensível aos mistérios da criação poética (e no poeta que inicia sua trajetória) mas, principalmente que os libere para continuar a pesquisar, questionar e a tentar novos caminhos, pois, no âmbito da criação literária não há verdades absolutas. As musas, várias em suas manifestações, agradecem.

Se todo poema atualiza uma possível teoria da criação, o poeta quando instado a refletir sobre o (seu) fazer poético apresenta-nos, de bandeja, aspectos fundamentais de sua práxis, de sua poiésis, de seu paideuma, enfim, de sua índole poética.

A poesia é de longe, pelo menos para os poetas, a linguagem de maior potência de significação (“a mais condensada forma de expressão verbal”, dizia Pound), e não é de espantar a variedade de percepções, de leituras, de idiossincrasias, de práticas que permeiam a poética contemporânea e, evidente, a sua recepção. Tão diversas como o são os próprios seres e seus interesses.

Roland Barthes foi um dos teóricos que caracterizaram a linguagem poética como sendo um desvio consciente e sistemático da norma linguística. Podemos acrescentar que não só da norma linguística. A linguagem poética prima por desviar-se de qualquer tipo de normalidade, de adequação social, histórica, mercadológica e existencial. Pelo menos o que costumamos chamar — os envolvidos com o fazer poético — de poesia digna de nota.

O escritor norte-americano Randall Jarrel dizia de forma jocosa que um poeta poderá amanhã de manhã acordar famoso por ter escrito uma novela ou matado sua esposa, mas não por ter escrito um poema. Ele não contava com a possibilidade de um poeta acordar famoso por ter escrito uma canção. E menos ainda com a possibilidade desta canção ter resultado em um bom poema.

Como diz o poeta, filósofo e compositor popular Antonio Cicero, em suas respostas, citando Montaigne: “é mais fácil produzir poesia do que conhecê-la”. Bem, produzir boa poesia não nos parece ser tão fácil assim. Mas isso é história para outro projeto.


[Texto de apresentação do livro "O que é poesia?", de Edson Cruz, editado pela Confraria do Vento/Calibán]

Em primeiro plano: Frederico Barbosa e Affonso Romano - diálogo de gerações.
Foto: Edson Cruz

Pátio da Casa efervescente: Neres, Lúcia Santaella, Ricardo Silvestrin, Carlito Azevedo, Fabiano Calixto, Nicolas Behr, Marne, Márcio André (ao fundo), ? , Marcelo Ariel (ao fundo) e Affonso Romano.
Foto: Giorgio Rocha.

Bárbara Lia, José Geraldo Neres, Márcio-André e Marcelo Ariel - cada um de uma cidade.
Foto: Edson Cruz

Márcio-André, Ricardo Silvestrin e Carlos Felipe Moisés - antes do debate.
Foto: Edson Cruz

Edson Cruz quase esquecendo de chamar o Ricardo Silvestrin à mesa feita só de cadeiras.
Foto: Giorgio Rocha

Carlos Felipe Moisés, Lúcia Santaella, Carlito Azevedo, Affonso Romano e Nicolas Behr arrasando.
Foto: Giorgio Rocha

Carlos Felipe Moisés no Recital. Victor del Franco, Frederico Barbosa, Reynaldo Bessa, Marina Colasanti, Affonso Romano, Victor Paes e Márcio-André (enxugando as lágrimas) assistem.
Foto: Edson Cruz

Reynaldo Bessa, Ricardo Aleixo, Ricardo Silvestrin, Victor del Franco e Victor Paes - antes de sairmos para a bebemoração.
Foto: Edson Cruz

09 dezembro 2009

Poesia Brasileira Hoje

[Carlos Felipe Moisés expõe sua reflexão sobre a poesia contemporânea brasileira, sob os olhares atentos e quase assustados de Márcio-André e Lúcia Santaella.]

Foto by Giorgio Rocha

Perto do final da primeira década do século xxi, a poesia brasileira vive um momento esplêndido, excepcional. Nos últimos 10, 15 anos surgiram no país mais poetas do que nos 30 ou 40 anteriores. Quantidade não é qualidade, sem dúvida, mas no caso creio que já é, em si, um dado relevante. A fartura de poetas em atividade, hoje, no país, é indício de uma efervescência, uma ebulição, uma sede, um apetite voraz por poesia, sem precedentes. E, na minha avaliação, a qualidade tem sido proporcional. Não tenho lembrança de outro momento em que houvesse, entre nós, tanta poesia de boa qualidade como nos anos recentes. Nossos poetas, hoje, já nascem maliciosos, já estreiam com um notável domínio de ofício, uma considerável bagagem literária.

Antes, prevalecia a figura do poeta ingênuo, falsamente ingênuo, que acreditava em inspiração ou no improviso mais ou menos lírico-sentimental. Hoje prevalece o poeta que sabe o que faz, e é capaz de defendê-lo, não com base no direito que cada um tem de dizer o que quer, mas com base em argumentos e exemplos concretos, extraídos de uma sólida tradição, já hoje, de 80 anos. Os poetas surgidos mais recentemente tomam como referência os grandes mestres do passado, para os quais poesia para valer é aquela que tem, entranhado nos próprios versos, o necessário espírito crítico, a consciência crítica da poesia como forma de conhecimento.

Antes, os poetas olhavam para trás e enxergavam outro poeta, algum que tivesse feito sucesso nos anos anteriores; hoje, enxergam toda a tradição que os precedeu, remontando aos pioneiros dos anos 20-30, que aí estão, presentes e vivos, como nunca. A poesia brasileira, hoje, é uma poesia que tem consciência de sua história, que até recentemente era uma história linear, feita de “ismos”, “gerações” ou grupos de pressão, que iam se justapondo, em sucessão cronológica, e cada qual dava por superado e obsoleto tudo o que tinha acontecido antes. Hoje, essa história é o que sempre foi: movimentos espiralados, que incessantemente retomam o ponto de partida, ou seja, os grandes veios abertos pelos pioneiros dos anos 20-30, cada vez mais atuais.

O resultado é a pluralidade, a convivência de tendências variadas, não em nome do protocolar “respeito” às diferenças, ou em nome do politicamente correto, mas em razão da efetiva diversidade das matrizes que formam a nossa tradição.

Antes, tínhamos dois ou três suplementos literários, duas ou três revistas, uma ou outra editora que publicava alguma poesia, de modo que era possível, de um lado, um grupo de pressão mais persistente impor o seu gosto aos demais; de outro, era possível acompanhar com segurança o que estava acontecendo – ou era possível fingir ou até mesmo achar que era isso era tudo.

Hoje, essa ilusão não é mais possível. Não porque já não se façam mais suplementos literários como antigamente, mas porque revistas, no papel ou na grande rede, agora temos dezenas, a cada ano; livros, centenas, a cada cinco ou seis anos. E já não temos mais como acompanhar o que está acontecendo. Hoje, poetas de todas as idades dependem muito mais uns dos outros, todos empenhados no propósito comum de levar adiante uma rica tradição em poesia que, finalmente, 80 anos depois, atinge a sua plena maturidade.

* * *

Passados uns dias desse memorável encontro na Casa das Rosas, cuja tônica foi, na avaliação de todos, a tolerância entre facções outrora litigantes, ocorreu-me que eu poderia ter ido mais direto ao ponto se, em vez de optar por esse arrazoado mais ou menos impessoal, eu tivesse apelado, como diria Fernando Pessoa, para “a covardia do exemplo” (um só bastaria), acompanhado de um depoimento pessoal. O exemplo poderia ser este:

Ora, a alegria, este pavão vermelho, está morando em meu quintal agora. Vem pousar como um sol em meu joelho, quando é estridente em meu quintal a aurora. Clarim de lacre, este pavão vermelho sobrepuja os pavões que estão lá fora. É uma festa de púrpura, e o assemelho a uma chama do lábaro da aurora. É o próprio doge a se mirar no espelho. E a cor vermelha chega a ser sonora neste pavão pomposo e de chavelho. Pavões lilases possuí outrora. Depois que amei este pavão vermelho, os meus outros pavões foram-se embora.

A maioria dos presentes talvez não soubesse identificar o autor; muitos talvez não fizessem ideia de quem foi Sosígenes Costa (Belmonte, 1901 - Rio de Janeiro, 1968).

Idos de 70, tarde ensolarada – ao entrar no escritório que José Paulo Paes ocupava na sede da Editora Cultrix, que ele dirigia com mão de mestre, saudei-o, quase histriônico, com a primeira estrofe do soneto acima, o 29º dos “Sonetos pavônicos”, que sei de cor, desde que os li pela primeira vez, no início dos 60, na edição original da Obra poética, pela Editora Leitura. José Paulo ficou surpreso ao ver que um jovem poeta, em São Paulo, não só conhecia como admirava Sosígenes Costa, a ponto de sabê-lo de cor.

Conversamos longamente sobre poetas brasileiros miseravelmente esquecidos – alguns de vez em quando lembrados, outros esquecidos para sempre. Conversamos também sobre os que tiveram o seu momento de glória e logo migraram para o limbo dos que nunca existiram. Menos de vinte anos depois da auspiciosa e tardia estreia, em 1959, ali tínhamos Sosígenes Costa, outra vez, um ilustre desconhecido. Zé Paulo confidenciou-me estar pesquisando, fazia algum tempo, a obra invulgar do poeta de Belmonte. O resultado foi, uns anos depois, a reedição revista e ampliada de sua Obra poética, preparada por José Paulo Paes (Cultrix, 1978 – exatos dez anos após a morte de Sosígenes). O circuito dos admiradores do poeta baiano, então, ampliou-se consideravelmente, mas hoje, 2009, meros trinta anos depois, esgotada a reedição, morto há mais de dez anos o próprio Zé Paulo – o poeta da zona do cacau volta a ser deslembrado.

Mas continua a ser o meu exemplo, um dos muitos possíveis, de poesia brasileira, hoje. Exemplo de quê? De que todos podemos orgulhar-nos de uma das mais ricas, férteis e variadas tradições poéticas do Ocidente, no século xx. Tão rica e tão fértil que nos damos ao luxo de, periodicamente, esquecer alguns dos melhores – esquecimento coletivo, já se vê. Cada um de nós tem o seu deslembrado Sosígenes (são tantos!), mas coletivamente é que são elas. É que estamos todos tramados na irrisória concepção de história literária que arruma tudo em blocos ou “ismos” ou “gerações” – essa enganosa sucessão linear de falsos “programas”, onde os vários Sosígenes, conhecidos de todos, não têm lugar.

Não há como escapar: a situação “atual” da poesia brasileira (assim tem sido, há décadas) só poderá ser corretamente avaliada quando for, um dia, encarada à luz de um processo histórico, longo já de 80 anos, que tem pouco a ver com a linearidade dos “ismos” ou das doutrinas dominantes, artificialmente forjadas nos bastidores, mas incondizentes com a multifacetada riqueza dos versos propriamente ditos.

Então nos daremos conta do “coração selvagem” que pulsa no bojo da nossa tradição poética. A imagem aqui lembrada (essa do “coração selvagem”) rege toda a trajetória de Clarice Lispector, mas não diz respeito à poesia. Clarice nem de longe pensava no apagado e esquecido ofício de poetar. No entanto, diz.

Talvez seja o caso de perguntar: passaremos a vida, como Clarice, sempre “perto do coração selvagem”, acampados nas suas imediações? Ou ousaremos um dia entrar na sua posse, para que nossa poesia – coletivamente – ecoe o variado e heterogêneo batecum desse coração que desde sempre nos anima?

 

 

[Depoimento de Carlos Felipe Moisés no debate coordenado por Edson Cruz (São Paulo, Casa das Rosas5/12/2009), que contou com a participação dos poetas Affonso Romano de Sant’Anna, Carlito Azevedo, Márcio-André, Nicolas Behr e Ricardo Silvestrin.]




08 dezembro 2009

Rave Poética

Frederico Barbosa, Marina Colasanti, Affonso Romano de Sant'Anna e Edson Cruz.
Foto: Giorgio Rocha

O lançamento, debate e recital, do livro "O que é poesia?" - antes, durante e depois - possibilitou alguns encontros e diálogos históricos. Foi uma celebração da Poesia. Vou postar aos poucos, comentários, fotos, textos e diálogos de bastidores. Inesquecível!

02 dezembro 2009

POESIA NA RAVE

A Confraria do Vento, a Calibán e a Casa das Rosas convidam para o lançamento do livro

O QUE É POESIA?
organizado por Edson Cruz




Depoimentos de 45 poetas contemporâneos brasileiros, portugueses e hispano-americanos respondendo a três questões essenciais sobre o fazer poético de cada um deles. O lançamento contará com debate, recital e performance.


Sábado, 5 de dezembro

16h – Debate: Os caminhos da poesia contemporânea brasileira: dificuldades e acertos

Com Affonso Romano de Sant'Anna, Carlito Azevedo, Carlos Felipe Moisés, Lúcia Santaella, Márcio-André, Nicolas Behr e Ricardo Silvestrin.

Mediação: Edson Cruz


18h15 – Recital: Poeta em Voz Alta

Com Ademir Assunção + Affonso Romano de Sant'Anna + Carlito Azevedo + Carlos Felipe Moisés + Claudio Daniel + Claudio Willer + Donny Correia + Edson Cruz + Eunice Arruda + Flavio Amoreira + Frederico Barbosa + Luiz Roberto Guedes + Marcelo Ariel + Marcelo Tápia + Márcio-André + Micheliny Verunschk + Nicolas Behr + Reynaldo Bessa + Ricardo Silvestrin + Rodrigo Petronio + Victor Paes + Virna Teixeira.

Mestre de Cerimônia: Frederico Barbosa


21h – Performance multimídia: Boca também toca tambor

com Ricardo Aleixo

O evento faz parte das comemorações pelo aniversário da Casa das Rosas.
A Rave Cultural é um evento da Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura cuja primeira edição foi em dezembro de 2006. Desde então, tornou-se a festa anual em comemoração à reabertura do local como espaço de poesia, homenageando o poeta concreto Haroldo de Campos. Em sua quinta edição, a Rave Cultural prepara grandes atrações que começam às 14h do dia 5 de dezembro e se estendem até as 5h da manhã do dia 6.

RAVE CULTURAL 2009
Sábado e domingo, 5 e 6 de dezembro

programação completa aqui


CASA DAS ROSAS – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura
Diretor: Frederico Barbosa
Av. Paulista, 37 -Bela Vista – Metrô Brigadeiro
Fone: 11 3285-6986/ 3288-9447
Funcionamento: Terça a sexta, das 10h às 22h.
Sábados e domingos, das 10h às 18h.

01 dezembro 2009

Celuzlose 03




Bela revista literária na Net editada por Victor Del Franco.
Destaque para entrevista com o poeta Rodrigo Petronio. Vale a pena conferir em http://issuu.com/celuzlose/docs/celuzlose_03

27 novembro 2009

Gustavo Felicíssimo à queima-roupa



O que é poesia para você?

O conceito de poesia é muito amplo, o que se transformou em um problema para a grande arte. Parodiando Pessoa eu poderia dizer que há poesia bastante no pôr-do-sol em Itapuã da mesma forma que em um assassinato. Agora, transformar essas matérias em um poema é que são elas.

O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?

Eu acredito, como Mário de Andrade, que o poeta é um ser fatalizado. Ou seja: nasce-se poeta. E por mais que se leia, caso o leitor não seja um poeta, jamais chegará a sê-lo. No máximo ele poderá ser um grande leitor e, se insistir, um poeta irregular, como a maioria, aliás. Ao poeta, aquele que diz a si mesmo e acredita não poder viver sem poesia, como sugere Rilke, cabe ler de maneira atenta os grandes artesãos do verso de todos os tempos, escolas e nacionalidades. Também ao poeta se pede estudo e dedicação, conhecimento formal, inclusive de versificação. Isso vale, também, àqueles que se dizem vanguardistas ou iconoclastas, pois não se pode desconstruir o que não se sabe construir. Aos admiradores do modernismo paulista eu diria que o verso é livre, mas nunca fora frouxo.

Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que estas escolhas?

Os poetas que mais gosto e admiro são: o pernambucano Alberto da Cunha Melo, sobre o qual já produzi vários ensaios, alguns deles publicados pelo Cronópios. Toda a sua obra é importante para mim, mas se tiver que escolher algum poema dele eu escolheria “Casa Vazia”, onde ele diz: Poema nenhum, nunca mais,/ será um acontecimento:/ escrevemos cada vez mais/ para um mundo cada vez menos. Que porrada, hein! Outro poeta de minha admiração é o baiano Ildásio Tavares. Ildásio, além de excelente poeta, possui uma obra vastíssima e é um grande mestre. Muitos poetas aqui da Bahia marcham nos finais de semana para sua casa a fim de se instrumentalizarem. O “home” sabe muito e eu tenho o privilégio da sua amizade. Também escrevi sobre sua obra e de sua lavra eu destaco o poema “Canto do Homem Cotidiano”, do qual trago aqui um excerto: (...) Por isso eu canto a luta sem memória/ Desse homem que perde, e não se ufana/ De no rosário de derrotas várias/ E de omissões, e condições precárias/ Poder contar com uma só vitória/ Que não se exprime nas mentiras tantas/ Espirradas sem medo das gargantas/ Mas sim no que ele vence sem saber/ E não se orgulha, campeão na história/ Da eterna luta de sobreviver. E o que dizer de Bruno Tolentino? Um fora de série total. Um poeta que, como os grandes, sempre primou pela eufonia. Seu poema que mais me agrada é “Nihil Obstat”, que corre assim:

É preciso que a música aparente
no vaso harmonizado pelo oleiro
seja perfeitamente consistente
com o gesto interior, seu companheiro

e fazedor. O vaso encerra o cheiro
e os ritmos da terra e da semente
porque antes de ser forma foi primeiro
humildade de barro paciente.

Deus, que concebe o cântaro e o separa
da argila lentamente, foi fazendo
do meu aprendizado o Seu compêndio

de opacidades cada vez mais claras,
e com silêncios sempre mais esplêndidos

foi limando, aguçando o que escutara.


Como sou chegado à exegese, também leio alguns críticos, pelos mais variados motivos. Um livro fundamental para se prevenir contra a falta de valores que se alastra pela nossa poesia é “Gênios”, de Harold Bloom. Outro texto imperdível é ”A Arte de Escrever”, do Schopenhauer. A L&PM o lançou em versão de bolso. Também presto muita atenção no que diz Affonso Romano de Sant’Anna em seu blog: http://www.affonsoromano.com.br/. Acho que é o bastante.


Gustavo Felicíssimo é poeta, ensaísta e pesquisador. Trabalha com preparação de textos para editoras e poetas. Fundou em Salvador, juntamente com outros poetas, o tablóide literário SOPA, do qual foi seu editor. Edita o blog Sopa de Poesia: www.sopadepoesia.blogspot.com

31 outubro 2009

ELEGIA


levantei ferido por estilhaços
dados flamejantes do real

a morte acompanha-me
em vigília sorri com servos

em seus braços
um sol negro explode

com a fúria de Ísis
a recolher pedaços tenros

na manhã que inicia
mãe assassina cinco filhos

em busca de atenção
pai estupra a própria filha

e torna-se pai-avô
mãe deixa
bebê rolar

nos trilhos de um trem em movimento
pai esquece bebê no carro

e sob sol escaldante vai para academia
o tempo para por um átimo

atiraram no dramaturgo
metralharam a poesia do dia a dia

tudo o que é humano
me é estranho

os átomos todos foram maculados
agora só nos resta o vazio

com seus espaços povoados de dor
chorar em nada me alivia

devo acordar do pesadelo
que me atormenta

e lívido merecer o perdão
por pertencer à espécie humana?

25 outubro 2009

Clássicos para quem?

O Jornal O Povo, do Ceará, fez uma entrevista comigo e não a publicou. Entonces, não me faço de rogado e a publico aqui (a quem interessar possa).


1. Que elementos/instâncias/poderes são fundamentais para a constituição de um clássico, seja em que área for?

Se eu soubesse a resposta já estaria imortalizado em minhas várias existências passadas e futuras (como criador ou como crítico). O que pode se tornar um clássico, em qualquer área, é regido pela música do acaso, da repetição criativa e da seleção (muitas vezes arbitrária) cultural e/ou social.

A natureza da arte, como toda natureza, é paradoxal. Uma obra-prima, prima por ser única e por isso mesmo eterna, mas não foi a primeira tentativa do artista e se ele tivesse mais tempo e paciência não seria a última. É como querer decifrar a “proporção áurea”. Nada sabemos sobre ela (ou melhor, eu é que não sei nada sobre ela, os matemáticos parecem saber algo), mas que ela está presente em várias criações no universo, isso é irrefutável. O que dizer das semelhanças, em vários níveis e camadas de sentido, entre uma catedral gótica e as composições de Bach, ou os desenhos de minha filha de três anos e meio?

Gosto de uma das definições do que seria um Clássico na literatura (que em geral são muito instigantes) feitas pelo escritor Ítalo Calvino: “É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo.”

Por outro lado é sempre bom manter a indagação: clássico para quem?

A discussão deve estar sempre aberta.

2. Clássicos podem desaparecer? Exemplo: um disco, livro ou peça de teatro ter sido considerado clássico em uma época para, na seguinte, ser total ou parcialmente esquecido? A atemporalidade é mesmo uma característica inerente ou podem existir clássicos com prazos de validade nem tão perenes?

Me parece que um clássico nunca desaparece. O barulho de fundo é que se altera e muitas vezes oblitera a percepção, o reconhecimento efetivo e até o contato real com determinada obra. Mas ela continua lá, indiferente ao tempo e a turba ensandecida. Às vezes um Indiana Jones da cultura, um outro artista, consegue garimpá-la no limbo das confusões culturais de cada época e apresentá-la, pepita que é, para a recepção ávida e jubilosa do cegos de plantão.

3. Existe idade para entender ou, ao menos, fruir um clássico?

Um clássico é composto de várias camadas que são descascadas aos poucos e nos revelam significados insuspeitados por toda a vida. Quando o lemos aos 15 anos temos uma apreensão, aos 30 outra e aos 80, com certeza, outra. Quem mudou, o clássico ou eu?

4. O que prevalece na leitura de um clássico: o simples prazer ou algum sentimento mais imponderável?

Creio que os dois. Em um momento o prazer de estar lendo algo que transcende as suas questões comezinhas, ou a algo esteticamente irreparável e em outro o sentimento de ter sido tocado por algo da obra que não conseguimos com clareza definir.

5. Por fim, liste obras clássicas nos últimos 50 anos na literatura e na música.

Olha, vou resistir ao canto de sereia de querer colocar o que para mim tem alguma relevância como sendo algo que pudesse ter relevância para outras pessoas. No final das contas cada um tem que fazer o seu próprio caminho, e olha que eu disse fazer, e não trilhar.

E aí leitor cúmplice, quais são as obras que você considera clássicas nos últimos 50 anos?

15 outubro 2009

Hipersexo

Sabe de uma coisa, me deu um ataque de Paulo Coelho – o guerreiro da luz, ou melhor, uma vontade de procriar como um coelho, milhões de olhinhos brilhando a procura de não sei o quê, talvez a claridade do conhecimento, talvez como dizia Wilhelm Reich o orgasmo verdadeiro, em sua verdadeira função, aquele que esvazia a estase de anos encouraçados sem potenkim, anos de energia acumulada nutrindo a neurose cotidiana, o próprio caráter genital a salpicar saúde nos bits que iluminam os caracteres que coloco nessa folha de écran.

Talvez fosse melhor me explicar e dizer que não quero necessariamente as verdinhas que advém do milagre da multiplicação das edições multilingües, não invejo aquele acontecimento que nos torna encantados e encantadores a todos os editores e leitores do planeta, que nos disputam à tapas, beijos e seduções, pagam isto e aquilo, e mais aquilo outro para nos ter em sua casa, casa da palavra, casa do saber, casa de papel.

O verdadeiro sábio diria que há caminhos no céu que só os pássaros conhecem, e como eles sabem se guiar, sem marcas, placas, sem trombadas, tropeços, a não ser quando um helicóptero, claro, pilotado por um humano vesgo os atropela, ou melhor os estraçalha sem nem perceber que acabou de dizimar uma vida, ou a de um bando, mas voltando ao assunto, estou tergiversando, talvez embriagado por este lampejo epifânico de sabedoria que me veio neste instante, o sábio realmente diria que há trajetos nos mares e rios manjadíssimos pelos peixes que de olhos fechados ou abertos, tanto faz, os percorrem e sempre vão onde querem, chegam onde desejam, se é que peixe deseja alguma coisa, peixe não chora vocês já repararam?, embora alguns poetas japoneses em seus tankas, ou seriam tanques, vislumbrem lágrimas nos olhos dos peixes e até dos sapos, mas que eles sofrem, sofrem, talvez, não mais do que nós, que não conhecemos nem caminhos nos céus, nem nos mares, muito menos na terra, a não ser aqueles caminhos áridos e já enlameados de sangue percorridos por todos em nossa triste história recente e sem fim.

Mas vocês querem apostar quanto que esse texto inspiradamente confuso, genial dirão alguns, melodramático dirão outros, carente de revisão, dirão meus amigos revisores, jornalistas de plantão, ilegível, diria Oscar Wilde, esse texto com a pontuação esdrúxula e mal usada como se fosse um copião medíocre de nosso amado Saramago, o mago da língua portuguesa, embora eu prefira lobos a magos, não, não, o verdadeiro mago de nossa língua é o Paulo, sim, o Coelho, o cara realmente é mago, cura, descura e não sara, quer sempre mais, agora quer escrever bem, e até que vem conseguindo, já tem até fardão, mas o que eu ia dizendo é que vocês, leitores atentos, querem apostar quanto, mesmo, de que esse texto que agora termina vai estar na lista dos mais acessados do Google, só porque tem no título a palavra que anima até os santos: SEXO, SEXO, SEXO?

13 outubro 2009

Literatura na Web [bate-papo]



Surrupiei o banner acima do blogue da queridíssima Andréa del Fuego. Depois do papo de amanhã, com a Índigo, o Sandro Saraiva, Euzinho e o Ivan Marques, ela continuará no Sesc Vila Mariana com sua Oficina. Confira:

Criação literária na web

Criação literária (teoria e prática) para publicação em quaisquer suportes digitais. Cada aluno criará seu próprio blog. Com a escritora Andrea Del Fuelgo.
Dias 17, 24 e 31, sábados, das 15h às 18h

SESC Vila Mariana
Rua Pelotas, 141 - Fone: 11 5080-3000
De terça a sexta, das 9h às 21h30
Sábado, domingo e feriado, das 10h às 18h30
email@vilamariana.sescsp.org.br
Visite:
http://www.sescsp.org.br
0800-118220

03 outubro 2009

Como deixei de ser Deus

A gente diz o que a língua permite. E ela permite pouco quando o ser bebe do absoluto. O que diria Deus se percebesse que já não o era mais? O que diria um mortal comum se compreendesse que ainda é Deus? O que dizer quando um escritor nos revela como deixou de ser Deus? Espanto. As palavras atrapalham-nos, pois quando a alma fala já não é ela quem diz. A língua é sempre fascista se queremos nomear o mundo. A visão absoluta é a cegueira. O exagero é a expressão do moderno. O gêneros foram estilhaçados. Graças a Deus. Ou melhor, graças a escritores que deixaram de ser Deus. Schlegel já provou que só se apreende o todo no fragmento. “A minha ambição é dizer em dez frases o que qualquer outro diz em um livro — o que qualquer outro ‘não’ diz em um livro.’, escreve Pedro Maciel. E consegue. Seu livro pode ser lido de olhos fechados e torna-nos um autor amplificado. Nietzsche dizia que seus aforismos eram a pura filosofia. Filosofia à golpes de martelo. Pedro Maciel tece sua escritura numericamente estilhaçada e diz que é um “romance”. Esses caras vieram para nos confundir. E conseguem. São deuses caídos. Ou serão anjos?



Trechos do livro:

21
(...): não me importo com as coisas perdidas mas com o tempo perdido. O vento nunca devolveu o meu tempo.

28
: pelo amor de Deus se vai ao inferno. Deus é um bom Diabo.

35
O espírito permanece no tempo e não no espaço. Jamais tive outro cárcere além do meu corpo.

37
O pensamento está sempre além do corpo. A linguagem é a máscara do pensamento.

40
(...): ele reparava atentamente em todo relâmpago que mergulhava no lago; fazia questão de medir a extensão dos raios para desvendar com quantos espelhos se esclarece uma noite. A hora dele não é deste tempo. Ontem ele deu um perdido no passado e correu para se adiantar mas não parou lá adiante como se fosse um antes. Continuou percorrendo, correndo, vivendo e morrendo todo dia. Todo dia é uma memória.

43
(...): se não há sonho, há muitas realidades a serem realizadas. O pesadelo é um oráculo.

48
Ele pôs fim à própria vida por uma questão de princípios. Se, na hora da morte de um homem, toda a compaixão dos outros homens se juntasse para impedi-lo de partir, esse homem não morreria.

86
Eu vivo às cegas. Minha sombra olha por mim.

121
Ontem visitei a cidade em que nasci; ninguém me reconheceu. Deus não se revela ‘no’ mundo.

2041
Não dê ouvidos aos adivinhos. (...) não há um mundo a descobrir.



Como deixei de ser Deus, Ed. Topbooks será lançado em São Paulo, no dia 20 de outubro, terça-feira, Livraria da Vila, Jardins. Al. Lorena, 1731, Jardins – 3062.1063. Nos vemos por lá.

28 setembro 2009

Amador Ribeiro Neto à queima-roupa



1) O que é poesia para você?

Embora seja professor de teoria da poesia e poeta, eu não sei o que é poesia.
Por isto me valho de 2 grandes pensadores:
poesia é palavra na sua mais condensada dimensão (Pound) e
é som, sentido e imagem numa interação semiótica (Jakobson).

2) O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?

Clareza de pensamentos e consciência de linguagem. Neca de pitibiribas de inspiração. Muito tutano, no duro.

3) Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que destas escolhas?

Poetas: Augusto de Campos, João Cabral de Melo Neto e Caetano Veloso.
Escolhi estes 3 poetas porque o que fazem/fizeram me provocam, me instigam e me incomodam sempre.

Amador Ribeiro Neto é autor, em parceria com Roberto Coura, de "imagens & poemas" (ed. UFPB, joão pessoa, 2008). É organizador e co-autor de "muitos – textos sobre caetano veloso" (ed. orobó, montes claros-mg, no prelo). É autor de “Poemail”, livro de poemas, inédito. Também organizou e é co-autor de "literatura na universidade" (ed. UFPB, joão pessoa). É co-autor de "chico buarque do brasil", organizado por rinaldo de fernandes, rio, garamond; de "quartas histórias", organizado por rinaldo de fernandes, rio, garamond e de "capitu mandou flores", organizado por rinaldo de fernandes, s. paulo: geração editorial, 2008. E-mail: amador.ribeiro@uol.com.br

25 setembro 2009

Poeta Radioativo



Se você ainda não conhece o Márcio-André, corra! O cara tá mandando bem e contaminando tudo que passa pelo seu caminho. Eu já fui contaminado e cooptado: faço parte do conselho da bela revista da Confraria do Vento e logo, logo, sai, pela editora da Confraria, o livro que organizei com poetas contemporâneos respondendo àquelas três questões ingênuas mas nem tanto: o que é poesia? etc.

Confira: www.marcioandre.com e www.confrariadovento.com/

11 setembro 2009

A GRAVIDADE SEM PESO [apontamentos - I]




O ficcionista italiano Italo Calvino deu o mote ao que deverá ser a busca de qualquer projeto literário contemporâneo consistente: a leveza. Calvino coloca a literatura como uma função existencial e a busca da leveza como uma reação ao peso de viver. A leveza como um valor a ser buscado na carpintaria da literatura, na poiésis diária que subtrai com afinco o peso do que é pesado, seja de figuras humanas, corpos celestes, cidades, estruturas da narrativa, ou da própria linguagem.

A leveza poderá emergir quando o autor, associado à precisão e à determinação (nunca ao vago ou aleatório), despojar a linguagem de seu excesso de indumentária e tecer uma escritura sem suspensórios — como diz o poeta Manoel de Barros. Ela poderá ser encontrada nas narrações e descrições que comportem um alto grau de abstração ou pela criação de imagens figurativas da leveza que possam assumir um valor emblemático e gerar possíveis epifanias.

A força do autor contemporâneo reside na recusa da visão direta, assim como a força de Perseu — para decepar a cabeça da Medusa sem se deixar petrificar — sustentou-se sobre o que há de mais leve, as nuvens e o vento e, sobretudo, ao dirigir seu olhar para aquilo que só pode se revelar por uma visão indireta, uma imagem capturada no espelho de seu escudo.

Uma bela alegoria da relação do poeta com o mundo, revelou-nos Calvino, e uma lição definitiva do processo de continuar escrevendo, apesar de tudo e de todos.

No século passado, século de duas guerras mundiais, duas bombas atômicas, de Auschwitz-Birkenau, de tantas guerras civis e devastações, se tornou categórica a “missão” do escritor em refletir, questionar e problematizar a vida e o seu mundo. Muitos se transformaram em estátuas no processo e não puderam escapar ao olhar inexorável da Medusa, deixando que o pesadume, a inércia e a opacidade do mundo aderissem à sua escrita, sem encontrar meios de driblá-los.

Na primeira de suas seis propostas para o próximo milênio, Calvino diz:

“Cada vez que o reino do humano me parece condenado ao peso, digo para mim mesmo que à maneira de Perseu eu devia voar para outro espaço. Não se trata absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional. Quero dizer que preciso mudar de ponto de observação, que preciso considerar o mundo sob uma outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle. As imagens de leveza que busco não devem, em contato com a realidade presente e futura, dissolver-se como sonhos...”

Deixa bem claro, Calvino, que esta busca não é uma fuga da realidade do mundo, nem o abraçar inconsciente do sonho e do devaneio. A busca da leveza está associada à agilidade e à capacidade de revelar o imprevisível, de sobrelevar o peso do mundo, demonstrando que sua gravidade detém a chave da leveza.

Calvino lembra uma citação do poeta Paul Valéry que diz: “É preciso ser leve como o pássaro, e não como a pluma”.

Uma pluma é tão leve que é levada por qualquer sopro, enquanto o pássaro depende da gravidade do mundo para pairar sobre ele e dirigir o seu bico para o horizonte que lhe aprouver.

Buscar o antigo instante mais leve que o próprio pássaro, como no poema de Cecília Meireles:

Leveza
Cecília Meireles

Leve é o pássaro:
e a sua sombra voante,
mais leve.

E a cascata aérea
de sua garganta,
mais leve.

E o que lembra, ouvindo-se
deslizar seu canto,
mais leve.

E o desejo rápido
desse mais antigo instante,
mais leve.

E a fuga invisível
do amargo passante,
mais leve.


O escritor contemporâneo, na construção de seu projeto literário, deve ter um plano de vôo (um projeto) com uma estrutura leve como a ossada de um passarinho, cujo objetivo maior seja o de fazer com que o leitor e o texto decolem juntos e, por que não, o próprio autor.

Algumas dicas práticas, referentes ao trabalho com o texto, são sempre bem-vindas. Façamos bom proveito delas:

1) O toque de leveza transforma as frases explícitas do texto em sutilezas que surpreendem e cativam o leitor impelindo-o a continuar na viagem.

2) Aparar as pontas das palavras gastas pelo uso, das frases vazias, das observações desnecessárias e das descrições muito longas.

3) Saber a hora de evitar um adjetivo desnecessário.

4) Saber eliminar um advérbio cujo sentido já está implícito no verbo da frase. Evitar as explicações. O leitor deverá compreender, por si mesmo, a trajetória do texto em voo.

5) Mantê-lo (o leitor) ligado no texto, evitando repetições e remissões.

6) O excesso de gordura e peso de um texto advém de nosso medo pessoal (a escritura não é lugar de uma terapia pessoal), de nossa ansiedade, da pressa (o afã de ser reconhecido, de publicar, de marcar presença) ou da pressão externa (aceitar prazos que não sejam os de sua própria criação).

7) Esvaziar a linguiça (enchê-la qualquer um faz, esvaziá-la com estilo é o desafio). Frases extras diminuem o ritmo e tornam o texto enfadonho.

8) Aprender a reescrever o texto quantas vezes forem necessárias (não esquecer a prática ensinada por João Cabral ou por João Gilberto) para deixá-lo respirar aliviado e airoso. Sim, leveza não é só cortar, mas, também, reescrever, redistribuir palavras, frases, ideias, enfim, reorganizar.

9) Ouvir a melodia do texto e buscar a harmonia necessária. Onde está a tônica, a terça e a quinta de seu texto? A terça é menor ou maior? O acorde precisa de uma sétima menor, uma nona? Você quer realçar o trítono?

10) O ritmo do texto entra em consonância e no compasso da tônica, seja ela uma imagem, uma ideia, uma palavra. Ao ler em voz alta os sons do tecido textual poderão nos alertar para cacofonias e inadequações em vários níveis.

11) Literatura busca ambiguidade, mas não a confusão. De confusão o mundo está cheio. O escritor, assim como o músico, surge para colocar ordem no caos, mesmo que seja uma ordem não reconhecida em um primeiro momento, uma ordem caótica.

12) Ter consciência de que técnica e background (um autor sem vivências, sem leitura, sem o sofrimento, sem a alegria, sem o desespero, pode ser facilmente substituído por uma máquina de produzir textos sem ossatura) são duas coisas totalmente diferentes e igualmente importantes para um escritor.

13) Nunca deixar de buscar um estilo próprio e pessoal de escrita. Parece redundância, mas é a coisa mais difícil de se alcançar. Estar só sem desprezar o mundo e os seres é um exercício digno de um Buda.

Os ossos da escrita são colosso.