Leia um capítulo do livro:
II
A
xilocaína não serve para digestivo. Cheguei a essa conclusão após meu quase
suicídio. Compreendi que ao tentar me esquivar da dor eu tentava mastigar a
vida, ter dentes, sei lá. Coisa pra doido esquecer, não pensar, não especular.
Porque de especulação em especulação posso dar de cara com minhas tripas, meus
motivos subliminares e não sei se agüento, se quero ter olhos para me ver. Sou
hipermetrope e gosto disso.
Irene
diz que nos salvamos pela dor, que ela nos mantém vivos. Quando pergunto de que
poderíamos ser salvos ela sentencia: De nossa estupidez. Irene diz muitas
coisas, nem sempre escuto, o vento fala mais alto e eu me distraio. Talvez
Irene esteja certa, talvez a vida seja essa sucessão de cortes e recortes que
sonhamos e que sangram. Talvez só exista verdade no sangue e na respiração.
Talvez a vida seja uma engrenagem com vontade própria. Talvez eu seja um idiota
cem por cento. Existe ainda a possibilidade de que minha idiotice também faça
parte dessa engrenagem e como tal eu esteja enquadrado, inserido à revelia.
Na
verdade gostaria de ser salvo pela distância. Ficar afastado da vida, receber
uma suspensão. Não estar com algumas pessoas, não precisar contar histórias,
enredar fatos, encantar palavras para dar explicações. Explicações que não
tenho nem para mim.
Não
há justificativa para o desejo de morrer, ou mesmo para a incerteza de que
tenha sido ele o que moveu minha mão direita sobre o pulso esquerdo. Com a
lâmina. Não. Tenho certeza de que era a morte minha meta, não poderia ser
diferente. Cortar o pulso não é coisa que se faça assim, por impulso. A lâmina
na mão e o gesto nervoso tateando o pensamento. E a xilocaína? Acovardamento
frente à morte? Acanhamento diante da vida? Porque a dor só é possível aos
vivos. Não tenho certeza de que era a meta, minha morte. E Irene? Sorte. Irene
é meu demônio particular, tem força pra me proteger. Da minha estupidez. Irene
é minha dor de dente.
Não
sei, meu raciocínio é um cachorro correndo atrás do rabo, em eterna
desconfiança. Tenho preguiça de pensar, às vezes. Ou apenas penso que tenho, porque
a maior parte do tempo penso e repenso. Dispenso comentários, sei que estou
sendo contraditório e redundante, se é que é possível ser as duas coisas ao
mesmo tempo.
Estou refém,
cativo na cama, converso com meu travesseiro, enfronho-me em minha dor.
Pode ser que eu esteja ficando louco ou
pode ser que essa seja a sanidade possível para mim. Para a vida como ela se
instala, porque minha vida é uma senhora gorda e preguiçosa espalhada no sofá
da sala, sem a menor intenção de ir embora. A vida é a possibilidade que tenho
no momento, o que me resta. Por isso o que tenho a fazer é me levantar da cama
e começar o meu dia.
O dia caminha
sem mim, não precisa de mim.
Eu adoraria não
precisar de ninguém. Do amor de ninguém. Para não ter que me sentir assim, um
fraco e sem Raul. Raul é meu ponto fraco, meu calcanhar. Mas não sou forte nem
belo, não sou Aquiles. Luis é um nome sem rosto, um personagem que ignora seu
papel. Não sou ninguém, sou um ator. Para os gregos e romanos, o papel do ator
era um rolo de madeira em torno do qual se enrolava um pergaminho contendo o
texto a ser dito e as instruções de sua interpretação.
Estou
atrasadíssimo no grego e no latim.
Sou os
personagens que tenho deixado de encenar, as possibilidades misturadas nas
coxias. Raul deve ter razão. Razões que não encontro agora, entre os lençóis,
onde procuro me dissolver. Entregar-me à liquidez de não saber o que fazer de
mim e do resto de desejo que balbucia em meu ouvido. Raul. Provavelmente tem
razão. Eu bem posso estar misturando as histórias, mas não. O que encenamos no
palco foi ação teatral, sei disso, mas a reação que ele acorda em meus músculos
é meu corpo quem me conta, não um script. Quero escrever uma história na pele dele,
com suor e sêmen.
Suor.
Não sei se estou
com febre ou se vivo em delírio.
Irene
precisa voltar para me ajudar a acordar. Não quero me levantar, não quero tirar
o pijama, menos ainda vestir uma roupa, não quero me preocupar com comida, não
quero procurar um novo trabalho, não quero encontrar diretores, autores, outros
atores, não quero a vida de volta. Não quero essa prática da qual a vida nos
incumbe porque ela me pesa. Dá trabalho. Quero rolar na cama até Irene chegar e
tomar conta de mim.
Ela achará um
jeito de me fazer continuar.
by Andrea del Fuego
ADRIENNE MYRTES nasceu no Recife/Pernambuco
e vive em São Paulo desde 2001. É também artista plástica. Publicou o livro de
contos: A Mulher e o Cavalo e outros contos (Editora Alaúde, EraOdito
Editora, 2006), a novela juvenil: A Linda
História de Linda em Olinda (Editora Escala educacional, 2007) este último
em parceria com o escritor Marcelino Freire e participou, das antologias Os
Cem Menores Contos Brasileiros do Século (Ateliê Editorial, 2004) e 35 Segredos
para Chegar a Lugar Nenhum – Literatura de Baixo-Ajuda (Bertrand Brasil,
2007) entre outras. Eis o Mundo de Fora
é seu primeiro romance e foi contemplado com o Prêmio Petrobras edição
2008/2009.