09 julho 2020

SINAL VERDE


















tantos anos se arrastaram
já não me lembro de minha infância
será que a tive, ou foi um sonho?

tudo se resume a uma noite
noite de escolha e enfrentamento
ali, me fiz na solidão azul
do nascimento

“se não quer ir ao culto
que fique aí, sozinho!”

fiquei ali, e ainda estou...
em casa escura e sobressaltada
por sombras e faróis relampejando
abandonado de deuses e de afetos

não dormi, como não durmo agora
não fugi, como nem posso embora
ali, a vontade de meu eu se impôs
minha porção de dor se amarelou

permaneci na infinitude do possível
e assim abraço o totem
de vida que sutil me resta

na contingente luz verde que se revela
aceito humilde e resignado
o gentil açoite da morte que me espera.






08 julho 2020

CARMA























o destino guia os passos
dos que assim o desejam.

honra aos que em missão
lhe transformam o enredo.

arrasta aos que por medo
se contentam com o degredo.

faz bailar a todos
mesmo a música sendo apenas
um arremedo.











07 julho 2020

EU












um ser
atônito feito um deus
absorto

em meu rosto
gotas de um mar
morto.










     [Foto by Min An de Pexels]



















06 julho 2020

FLOR DE LÓTUS












se no hoje contemplamos o ontem
o que dizer do amanhã que nos almeja?

se no tanque afogamos a rã
o que fazer da morte que nos beija?

se no voo a libélula se espanta
o que escrever com o sangue que goteja?









05 julho 2020

TARTARUGA CAOLHA E O TRONCO FLUTUANTE






















[a propósito de uma parábola budista]


para se traçar um simples gesto
não basta armar-se de vontade
a luz mente e na direita está o sestro

é preciso saber esquecer a própria idade
pois nas profundezas de um mar escuro
até o sândalo não conduz à claridade

pode-se viver por muito tempo obscuro
tateando diante de si o tal anseio
feito criança na noite inseguro

a almejar o tão amado enleio
sem nenhum ontem em círculo vazio
ou amanhã que traga algum esteio

pode-se esperar milanos o tronco arredio
e súbito vê-lo passar com enganosa visão
ou tentar alcançá-lo feito gato no cio

como um quelônio sôfrego a exaustão
a deparar-se com mais um logro desvario
o sândalo na onda indo noutra direção.












04 julho 2020

O QUARTO LIVRO DO PENTATEUCO






















[para os que ainda dão importância ao Livro]




O recenseamento

a terra prometida
precisa ser conquistada
a cada dia.
os números são mais
do que a representação gráfica
de uma quantidade.
a rota que traçamos no deserto
são marcas que esvanecem
ao nascer do sol.



Oferendas

o total dos seres oferecidos em holocausto
é inumerável.
e só faz crescer.



A partida

nem tudo foi celebrado
o tempo se mostrou indeterminado.
no dia da partida, uma nuvem
encobriu a todos e a tudo.
durante toda a noite
notava-se o seu aspecto de fogo.
trombetas soaram
como agulhas no ouvido.
o momento da partida chegara.



Novos arranjos

a cada segundo
são vendidas sete unidades
de leite Moça no mundo.

a cada vinte e três minutos
um jovem negro é morto
no Brasil.

a cada vinte e quatro horas
seis por cento da população consome
sessenta por cento dos recursos do mundo.

a todo instante
milhares de princípios são solenemente
ignorados.

agora mesmo
enquanto você se espanta com os números
uma criança acaba de tombar de fome.








03 julho 2020

FEITIÇO
















algo assim tão
inatural
que chega a ser
outra natureza

algo sim não
mais factício
por demais
tal coisa feita

que de tão artifício
vira arte
vira livro
vira ofício.






02 julho 2020

SEMENTE
























para Renato Ishigami



sou a inescapável casa
que habito
a fonte que busco
iluminada
o paraíso e inferno
que me agitam
o impalpável eco
após o grito.

sou o lugar
que tanto almejo
o instante que ressoa
no infinito
a ação que se conclui
neste momento
o bem e o mal
que no mundo entrevejo.

sou aquele que é
já se fazendo
partícula por quem
o todo se apaixona
vida que permeia
o ambiente
sombra que acompanha
o movimento.

sou semente
sou a mudança que germina
em minha mente.








01 julho 2020

CORAÇÃO














aqui
neste lugar onde
o ar rarefeito arde
refaço meu inventário
de sombras.

aqui
neste lugar como
a hecatombe em meu peito age
desenho garatujas
em matizes.

aqui
neste lugar quando
o quintal de minha casa jaz
encontra-se a matriz
do universo.

aqui
no coração deste lugar
com olhos úmidos a me encarar
aquele menino
que um dia já fui.







30 junho 2020

NANQUIM





palavra que não se faz ludo
em configurações sutis
na pele luminosa

que não prefigura
realidades transcendentes
espaços paralelos superpostos

palavra que não lavra
universos numerados até o fim
páginas que se desdobram infinitas

são rastros de tinta em si
restos de tinturaria de tipos
lixos disfarçados de nanquim.




[Obra do argentino León Ferrari, “Carta a un general”]








29 junho 2020

CREPÚSCULO

















    no princípio era
    o ovo
    o pássaro em
    voo

    agora a um passo
    precipício
    motores sangram
    o poente

    indiferente
    enjoo






[Registro do fotógrafo alemão Daniel Biber em Costa Brava/ES]