11 agosto 2020

ACROBATA

 










Sucesso na vida.
Um plano de carreira.

Aposentadoria planejada.
Lápide no cemitério.

Não tenho nada disso.
Sou um caso sem critério.

Meu currículo não Lattes,
mas morde.

Minha poesia não explode,
mas contamina.

Contra a morte precoce
não conheço melhor vacina.






10 agosto 2020

BILE NEGRA

 












há manhãs quando

nem o cheiro do café


o jornal aberto

sobre a mesa


o sorriso franco

da amada


o chamado doce

de meu filho


o latido amigo

do cachorro


o frescor florido

da jabuticabeira


o canto verde

das maritacas


o azul-celeste

de janeiro


suprem o corpo

oco da vida


o sumo

desperdiçado


a dádiva

imerecida.








09 agosto 2020

ESMERO



retocar a canção

chegar até

 

a imperfeição

 

de mero José

a impossível João.




[da série “Cabeças”, acrílica sobre tela colada em compensado, by Alex Flemming]










08 agosto 2020

AS SOMBRAS

 












enquanto o sol gira
e queima a aba

da constelação Alcione
— não aquela do pistão

em riste
a outra que contamina
a tudo e triste

com fótons

               pó de minas

                     energias sutis

nós — os chamados

humanos

entre escombros

seguimos

a acumular mortes

e assombros.




[Criança morta, de Cândido Portinari]








07 agosto 2020

CORTES

 


há um rio que nos separa

dos outros, rio


lethos de esquecimento

oclusões, duplos

o mundo é outro

segundo a dualidade

do ser

a margem que nos divide

é a pele

que nos irmana

quem vislumbra o tu

é nutriente

da relação


aquele que comunga

o isso não é  

está só.







06 agosto 2020

05 agosto 2020

ASSOMBRO





     a hora já não é mais nossa agora

     uma nuvem lá fora encobre o sol

     que outrora ardera sem espanto.

 

     em todo canto não se ouve cantos

     só o gemer dolorido e sem descanso

     de um povo a arder de febre e pranto.












04 agosto 2020

DICOTOMIA





carro engolindo

a pista

 

paradoxo de Zenão

 

torres ficando

para trás

 

um motor em combustão

 

faísca iluminando

a infância

 

um ursinho bem bobão







[litografia Dia e Noite de Maurits Cornelis Escher]








03 agosto 2020

SAMBAQUI





aqui em meu samba

cabem todos os restos

recanto de desterros

chão de joão-ninguém

repositório de erros.

 

todos os ossos

sem nome

todos os nomes

sem boca

todas as bocas

à míngua.

 

o que fazer 

com as palavras?

depositá-las assim

vomitá-las

como se vomita

uma língua.











02 agosto 2020

OURIÇO




nenhum mulato negro índio

nem esta nódoa nativa, mula

das índias ocidentais

 

nada com a cor de piche

melhorada em pixels

neca de pepitas douradas

nenhures nonada

 

zero em exercer exercitar se excitar

nulo deste aguadouro viscoso

seiva preciosa de vida escoada

à conta-gotas

 

chega deste papo besunto

arranjo de flores tardias

aulas, estórias, assuntos

 

demagogia a luz dos dias

chega de aulas de história

e a realidade feliz que não chega

 

chega

 

evoé, seja bem-vindo de volta

velho mouro.











01 agosto 2020

SALSUGEM







seu corpo

encontrado boiando

inchado de Jonas

baleia sem contorno.

 

o que já foi meu

um dia

hoje é alimento

da poesia.











31 julho 2020

ABULIA




quando os homens

e mulheres se abatem

todo o universo

se esbate

em misteriosa simbiose

melancolia jaz

soberana

sobre as lápides.







[Imagem: After the Ball by Ramon Casas]












30 julho 2020

SOPHIA


























para minha filha Sophia Miki


o verdadeiro sábio diria:
há caminhos no céu
que só os pássaros conhecem
neles trafegam
sem trombadas.

um sábio repetiria
sem pretensão
que há trajetos nos mares
intuídos pelos peixes
que desde sempre vão
aonde desejam.

[se é que peixe deseja
alguma coisa]

peixes não choram
embora alguns poetas
em seus tankas
– não confunda com tanques –
vislumbrem lágrimas
nos olhos dos peixes.

os peixes sofrem
um sofrer líquido e pegajoso
talvez não mais do que nós,
que embora invejosos
não conhecemos caminhos
nos céus,
nem nos mares,
nem na terra,
a não ser os caminhos
que manchamos com sangue
em nossa triste história
recente e sem fim.

sophia, ele arremataria
sabedoria é refazer-se
ao caminhar
acrescentar sobrenomes
ao nome
que lhe é próprio
criar verdes veredas
onde só havia
o ressequido ignorar.








29 julho 2020

UIVOVIVO



















a vida é breve
urge ser plena
mesmo que o sopro
leve o ânimo
desta pena
e a dor urre
sob o acúmulo
de neve
sigo
vi
vo
sou
um
ui
vo
.







28 julho 2020

SAMSARA





















tudo se transforma
nonada
que não quer ser

algo vira mônada
mais que nada
outra coisa vem
a ser

do feitio que ela
a vida
quando mesmo bela
se desativa

a chama passa
a se chamar
morte

aquele tênue
des
      equilíbrio
de quem foi
flama
e agora precisa
       renascer.











27 julho 2020

MORTE
















do fio que me anima
ao pavio que me consome
a palavra designa
alma minha que me foge.






26 julho 2020

SUPEREGO




























      diálogo com Ulisses Tavares




        sei tudo sobre esse herói.

        desde criança

        que me persegue.