21 agosto 2020

PRÉSTITO NEGRO

 












o Carnaval acabou

ou será que nunca houve?

mas o desfile continua.

nada para essa gente

nem Covid nem indigentes.

a morte sempre chega

não é mesmo?

e daí? segue o coro

dos contentes.

 

ela vem mansa e nua

com seus macios passos

de porta-bandeira

a equilibrar o mastro

em suas ancas de ossos

carcomidos

devorados pelos olhos

vorazes da avenida

Brasil, 

corsos ensandecidos.







20 agosto 2020

SIM

 









um poema de amor

poderia assim

começar

amo a pressentir

o fim

gotas a marejar.





19 agosto 2020

18 agosto 2020

ENCAIXES

 













o animal vegeta

feito planta

 

a planta se anima

ao ouvir música

 

a música preenche

o silêncio dos entes

 

o silêncio distingue

o ser solitário

 

o ser acaricia

o todo quando canta

 

o todo permeia

tudo a seu modo.




[Escultura by Susan Beatrice]







17 agosto 2020

LÁGRIMAS

 











Ano Bom Arzila Ormuz Azamor

Ceuta Flores Agadir Safim

Tanger Acra Angola Mogador

 

Aguz Cabinda Cabo Verde Arguim

São Jorge da Mina Fernando Pó

Costa do Ouro Portuguesa Zanzibar

 

Melinde Mombaça Moçambique    

Guiné Portuguesa Macassar

Quíloa São Tomé e Príncipe Mascate

 

Fortaleza de São João Baptista de Ajudá

Socotorá Ziguinchor Bahrain Paliacate

Alcácer-Ceguer Bandar Abbas Cisplatina

 

Ceilão Laquedivas Maldivas Baçaim

Calecute Cananor Chaul Chittagong

Cochim Cranganor Damão Bombaim

 

Dadrá e Nagar-Aveli Damão Mangalore

Diu Goa Hughli Nagapattinam

Coulão Thoothukudi Salsette Masulipatão

 

Surate Nagasaki Timor-Leste

São Tomé de Meliapore Mazagão

Malaca Molucas Guiana Francesa

 

Nova Colónia do Sacramento Bante

Macau

Brasil

 

Portugal

Oh sal que corrói a pele de nossas almas.






16 agosto 2020

DEVIR

 











nem branco, nem negro

nem verde ou amarelo

o ser derradeiro

‘inda está no prelo.







15 agosto 2020

TEMPLO

 















lá em casa

o menino Jesus

 

com os meninos

tinha caso

 

com as meninas

engatinhava

 

o menino Jesus

lá em casa.










14 agosto 2020

13 agosto 2020

BIBLIOTECAS

 



A biblioteca do pai de Borges
foi o fato capital de sua vida.
Ele nunca saiu dela, disse.

Em minha casa nunca tive livros.
O fato capital de minha vida
é não ter tido pai.

Minha mãe foi minha biblioteca.
Ensinou-me tudo.
Nunca saí dela.
Era analfabeta e deveria
ter se chamado Alexandria.




[Imagem: Biblioteca Nacional da República Tcheca]








12 agosto 2020

EPÍGRAFE

 

















Um ilhéu

fazendo a travessia.

Acima dele o céu.

Abaixo, a maresia.

Entre os fios de seu enleio,

a vida fugidia.




[O menino grapiúna by Casa de Jorge Amado]









11 agosto 2020

ACROBATA

 










Sucesso na vida.
Um plano de carreira.

Aposentadoria planejada.
Lápide no cemitério.

Não tenho nada disso.
Sou um caso sem critério.

Meu currículo não Lattes,
mas morde.

Minha poesia não explode,
mas contamina.

Contra a morte precoce
não conheço melhor vacina.






10 agosto 2020

BILE NEGRA

 












há manhãs quando

nem o cheiro do café


o jornal aberto

sobre a mesa


o sorriso franco

da amada


o chamado doce

de meu filho


o latido amigo

do cachorro


o frescor florido

da jabuticabeira


o canto verde

das maritacas


o azul-celeste

de janeiro


suprem o corpo

oco da vida


o sumo

desperdiçado


a dádiva

imerecida.








09 agosto 2020

ESMERO



retocar a canção

chegar até

 

a imperfeição

 

de mero José

a impossível João.




[da série “Cabeças”, acrílica sobre tela colada em compensado, by Alex Flemming]










08 agosto 2020

AS SOMBRAS

 












enquanto o sol gira
e queima a aba

da constelação Alcione
— não aquela do pistão

em riste
a outra que contamina
a tudo e triste

com fótons

               pó de minas

                     energias sutis

nós — os chamados

humanos

entre escombros

seguimos

a acumular mortes

e assombros.




[Criança morta, de Cândido Portinari]








07 agosto 2020

CORTES

 


há um rio que nos separa

dos outros, rio


lethos de esquecimento

oclusões, duplos

o mundo é outro

segundo a dualidade

do ser

a margem que nos divide

é a pele

que nos irmana

quem vislumbra o tu

é nutriente

da relação


aquele que comunga

o isso não é  

está só.







06 agosto 2020

05 agosto 2020

ASSOMBRO





     a hora já não é mais nossa agora

     uma nuvem lá fora encobre o sol

     que outrora ardera sem espanto.

 

     em todo canto não se ouve cantos

     só o gemer dolorido e sem descanso

     de um povo a arder de febre e pranto.












04 agosto 2020

DICOTOMIA





carro engolindo

a pista

 

paradoxo de Zenão

 

torres ficando

para trás

 

um motor em combustão

 

faísca iluminando

a infância

 

um ursinho bem bobão







[litografia Dia e Noite de Maurits Cornelis Escher]








03 agosto 2020

SAMBAQUI





aqui em meu samba

cabem todos os restos

recanto de desterros

chão de joão-ninguém

repositório de erros.

 

todos os ossos

sem nome

todos os nomes

sem boca

todas as bocas

à míngua.

 

o que fazer 

com as palavras?

depositá-las assim

vomitá-las

como se vomita

uma língua.