31 agosto 2020

DESPERTAR

 











A busca principia

e se finda no coração.

Na longa jornada

dia a dia se oficia.

No limite, nos brinda

com a iluminação.

O ser na aurora do dia.









30 agosto 2020

POESIA

 












A dança das imagens entre as palavras.

A viagem de volta ao desconhecido.

Aquilo que concerne ao cerne do ser.

A linguagem dos pássaros sem voz.

A hesitação sem a redenção do êxito.

O enunciado do ser travestido em vocábulos.

A ordem do ente na desordem dos seres.

Emoção recuperada no deserto da história.

A ação e o efeito de fingir-se sendo.

Parcas arrependidas uivando pela vida.

Desígnio de deuses esquecidos.

A pureza selvagem do espúrio.

Tudo o que se perde com a conceituação.








29 agosto 2020

NÉVOA

 












Névoa no campo-santo.

Os que se despedem

dos que partem

quanto tempo ainda

viverão?

 

 

[lendo o Diálogo entre um Venerável e um Homem Não Iluminado do buda Nichiren Daishonin, séc. 13]







28 agosto 2020

BENESSE

 










Não me venha com essa

de que o tempo passa

depressa.

 

A beleza não tem pressa,

ela súbito graça

e aparece.

 

 



  [O poeta Manoel de Barros na ‘Toca do Poeta’, em busca das miudezas e infinitudes da memória]









27 agosto 2020

INTERJEIÇÃO

 




 




















eu silencio

o sibilino

e silente

cio.

 

psiu!

 

o silente

cio

do sibilino

e silencioso

eu.








26 agosto 2020

CAMPANHA PUBLICITÁRIA

 














no começo foi a roda
uma, duas, três e quatro
virou carro, virou moda
e viralizou em cova.

****

carro
caro
car
ar
a...
...
...

cadê o ar?










25 agosto 2020

MAL TEMPERADO

 


     








          quando não ouvimos

          a própria voz,

          desafinamos.









24 agosto 2020

VESTAIS



um coro de virgens

em uníssono:

só aqueles que mantêm

completa inocência                                          

podem gozar o fogo

sagrado de meu altar.

que venham Bispos

do Rosário

em cardumes.








23 agosto 2020

22 agosto 2020

21 agosto 2020

PRÉSTITO NEGRO

 












o Carnaval acabou

ou será que nunca houve?

mas o desfile continua.

nada para essa gente

nem Covid nem indigentes.

a morte sempre chega

não é mesmo?

e daí? segue o coro

dos contentes.

 

ela vem mansa e nua

com seus macios passos

de porta-bandeira

a equilibrar o mastro

em suas ancas de ossos

carcomidos

devorados pelos olhos

vorazes da avenida

Brasil, 

corsos ensandecidos.







20 agosto 2020

SIM

 









um poema de amor

poderia assim

começar

amo a pressentir

o fim

gotas a marejar.





19 agosto 2020

18 agosto 2020

ENCAIXES

 













o animal vegeta

feito planta

 

a planta se anima

ao ouvir música

 

a música preenche

o silêncio dos entes

 

o silêncio distingue

o ser solitário

 

o ser acaricia

o todo quando canta

 

o todo permeia

tudo a seu modo.




[Escultura by Susan Beatrice]







17 agosto 2020

LÁGRIMAS

 











Ano Bom Arzila Ormuz Azamor

Ceuta Flores Agadir Safim

Tanger Acra Angola Mogador

 

Aguz Cabinda Cabo Verde Arguim

São Jorge da Mina Fernando Pó

Costa do Ouro Portuguesa Zanzibar

 

Melinde Mombaça Moçambique    

Guiné Portuguesa Macassar

Quíloa São Tomé e Príncipe Mascate

 

Fortaleza de São João Baptista de Ajudá

Socotorá Ziguinchor Bahrain Paliacate

Alcácer-Ceguer Bandar Abbas Cisplatina

 

Ceilão Laquedivas Maldivas Baçaim

Calecute Cananor Chaul Chittagong

Cochim Cranganor Damão Bombaim

 

Dadrá e Nagar-Aveli Damão Mangalore

Diu Goa Hughli Nagapattinam

Coulão Thoothukudi Salsette Masulipatão

 

Surate Nagasaki Timor-Leste

São Tomé de Meliapore Mazagão

Malaca Molucas Guiana Francesa

 

Nova Colónia do Sacramento Bante

Macau

Brasil

 

Portugal

Oh sal que corrói a pele de nossas almas.






16 agosto 2020

DEVIR

 











nem branco, nem negro

nem verde ou amarelo

o ser derradeiro

‘inda está no prelo.







15 agosto 2020

TEMPLO

 















lá em casa

o menino Jesus

 

com os meninos

tinha caso

 

com as meninas

engatinhava

 

o menino Jesus

lá em casa.










14 agosto 2020

13 agosto 2020

BIBLIOTECAS

 



A biblioteca do pai de Borges
foi o fato capital de sua vida.
Ele nunca saiu dela, disse.

Em minha casa nunca tive livros.
O fato capital de minha vida
é não ter tido pai.

Minha mãe foi minha biblioteca.
Ensinou-me tudo.
Nunca saí dela.
Era analfabeta e deveria
ter se chamado Alexandria.




[Imagem: Biblioteca Nacional da República Tcheca]








12 agosto 2020

EPÍGRAFE

 

















Um ilhéu

fazendo a travessia.

Acima dele o céu.

Abaixo, a maresia.

Entre os fios de seu enleio,

a vida fugidia.




[O menino grapiúna by Casa de Jorge Amado]