05 outubro 2020

VASSOURA-DE-BRUXA

 




 






Aquelas águas-vivas

envolvidas em algas e sargaços

brilhavam na areia da praia

feito diamantes não lapidados.

 

Traziam a memória de um tempo

sem começo.

Uma infância irrealizada

entre as praias e a brisa

de Ilhéus.

 

Um menino arrancado

de seu berço de sal e sol

atirado sem dó,

           sem nota

qualquer

no abraço concreto

das noites do sul.

 

Um cacau tomado

pelo fungo.

 

O exílio em outras terras

do sem fim.

 

 

 




 


02 outubro 2020

NA RODA

 











Pra encantar mulher

muzamba

 

eis aqui outra ciranda.

 

Samba

é nome angolês

 

mas quem é bamba

 

canta

até em tirolês.







Imagem: Ciranda dos Meninos, MATIZES DUMONT (bordados contemporâneos).











01 outubro 2020

EPITÁFIO

 



     






     pode crer, rapaz

     no dia de minha morte

     se eu tiver sorte

     vou estar em La Paz.








30 setembro 2020

EM PRIPYAT

 











      para Márcio-André



Enquanto o sol irradia

e a manhã nos impulsiona

sôfregos à procura

da paz

da plenitude da vida

da realização efetiva

de uma recepção ideal.

 

Um poeta revisita

corajoso

o lugar mais pacífico

do mundo

- sim, Freud, um poeta

sempre chega antes.

 

Com sua poesia,

em voz alta,

contamina o silêncio

petrificado – quase

absoluto - do local

radioativo.

 

Lá, a paz se fez

plena.

Lá, tudo conspira

a uma digna exaltação

da vida.


O poeta constata

com inapta resignação

que o coração humano

é realmente mais complexo

do que a fissão 

de um átomo.


 



[Foto da abandonada Pripyat, cidade fantasma do norte da Ucrânia. Ela ficava bem próxima à central nuclear de Chernobil, onde ocorreu o maior acidente nuclear da história]













29 setembro 2020

SEM TÍTULO

 















O rio continua fluindo.

O pássaro-preto bicando a porta.

O relógio tiquetaqueando.

E as perguntas, ainda sem respostas.










28 setembro 2020

RUÍDO BRANCO

 











Uma árvore não faz

barulho

ao cair sozinha

na floresta.

 

Na solidão, morremos todos

sem alarde.









27 setembro 2020

MÍNIMA ÉTICA

 












é preciso ser verdadeiro

para entrar em contato

com a verdade.

 

não nos é permitido

tomar o céu

de assalto.







26 setembro 2020

ουτοπία

 













tudo o que ainda

não tem cerca

nem muros

o que nos cerca

até um monturo

tem vida mesmo

que moribunda.

 

muito dos mundos

por nós criados

já foram há muito

devorados.

resta-nos a tarefa

imensurável

não de explicá-los,

mas de reconfigurá-los.








25 setembro 2020

OUVIDO ABSOLUTO

 



Amar é como ouvir

música.

Intuir a frequência

de ondas

fundamentais.

Existenciar

o que ainda não é

no ser

amado.








24 setembro 2020

MORADA DO ESPÍRITO

 












Um gesto move o universo

inteiro.

Elimina o tempo. Reinventa 

o espaço.

 

Hong Yan e seu nome

perderam-se nas dobras

da história.


Mas seu gesto continua

em minha gesta.

 

Seu mestre morto

na batalha

não podia ser profanado.

 

Hong Yan rasga

o próprio ventre

e nele assenta o fígado 

do mestre.

 

A desonra assim foi evitada.

A morada do espírito manteve-se

intacta.

 

As gestas se desdobram.







No séc. 13, o buda Nichiren Daishonin louva seu discípulo Shijo Kingo dizendo: “O senhor acompanhou Nichiren, jurando dar sua vida como um devoto do Sutra do Lótus. Essa sua atitude é cem, mil, dez mil vezes superior a de Hong Yan, que abriu o próprio ventre para inserir o fígado de seu senhor falecido, o duque de Yi [a fim de salvá-lo da desonra e humilhação]”.











23 setembro 2020

RECOLHOS

 











Ouvir o repuxo das baleias.


Enfileirar todas as conchas

retiradas das areias que pisei.

Nomear cada uma 

com os medos que superei.

 

Jogá-las de volta ao mar

como contas de um rosário.

O mar - lugar de onde nunca

deveriam ter saído.

 

Expelir a água salgada

pelos poros.

Rabiscar na areia um novo

escapulário: sou feliz 

e não me arrependo de nada.







22 setembro 2020

21 setembro 2020

BATEIA DE CLICHÊS

 












O seio da face

é a maça do rosto.

 

O que é do gosto

regala a vida.

 

Mais vale a lida

que o fácil gozo.

 

Em todo ovo

labuta o novo.





20 setembro 2020

O MECANISMO





Aqui jaz meu poema

fazendo-se de morto

na página que há pouco

já foi alva

feito um teorema

que não se pode refutar.

 

Até que você o leia

insufle a vida

que lhe falta

e o transforme

em delicado mecanismo

que venha habilmente atingir

o desejado alvo.

 

        Touché? 









18 setembro 2020

RELÓGIO DE AREIA

 













Meu filho de onze anos

adora manipular ampulhetas.

Observa atentamente o relógio

de areia

como quem assiste à dissolução

de um império.

Ele é o senhor do tempo

e nem imagina o quanto

me faz barganhar

com Tânatos.









17 setembro 2020

JAPÃO ETERNO

 





O olhar de Jimmu

delineia

um panorama.

 

Libélulas ligadas

pela cauda.

 

Ah, Akitsushima, Akitsushima...

 

Os jardins do Imperador

são meus 

sonhos anotados em uma lauda.

 

Acima de tudo

- impassível –

o Monte Fuji.







Jimmu foi o primeiro Imperador do Japão. A casa imperial do Japão baseia-se nos descendentes diretos de Jimmu.

Akitsushima é um dos nomes antigos do Japão e significa “Ilha das libélulas”.












16 setembro 2020

FRÊMITO

 













Seus olhos

– na fluídica noite

da ausência –

me assombram.

 

Peixes centelham

em ardentia

de cardumes.

 

Células flageladas

– calcinadas –

com o desprezo.





[Foto by Felipe Cretella]










15 setembro 2020

ENGENHO

 










A função da arte

é resgatar com o siso

de suas formas

as pistas

de um anjo.

 

A legião de daimones

dentro de mim

abre um sorriso

de arcanjos

decaídos.