25 junho 2009

Um poeta de olho no Irã



Ter ido ao Irã em 2004, ter visto as ruínas do império persa de Dario e Ciro lá em Persépolis e Pasárgada, e ter ouvido e visto a opressão atual do regime dos aiatolás narrada por intelectuais, artistas e gente do povo nos jantares, ruas e praças, me põe mobilizado, sobretudo diante dessas fotos atrozes em que soldados de motocicletas espancam mulheres e jovens que protestam contra a discutível eleição desse insano radical chamado Ahmadinejad. Claro, ele não está só, é cão de guarda do sacerdote que acima dele se julga dono dos corpos e mentes dos iranianos.

Essa ferocidade toda esbarra por outro lado num dos aspectos mais delicados da alma persa e iraniana. No meio dessas notícias desoladoras desponta um fato que reafirma coisas que ali vi: a ligação do povo iraniano com a poesia de ontem e hoje. No meio do tumulto dos protestos, diz o correspondente do "Independent" Robert Fisk: "Um estudante de engenharia química da Universidade de Teerã, que andava junto a mim na multidão, cantava em farsi, em plena chuva. Pedi que traduzisse (para o inglês) o que dizia."É um poema de Sohrab Sepheri, um de nossos poetas modernos"- disse ele. Me pergunto se isso era realmente verdade. Estaria ele cantando um poema em meio a uma manifestação em Teerã que estava tentando mudar a História? Era isso sim. Eis o que dizia o poema:

'Devemos seguir sob a chuva,
devemos lavar nossos olhos,
devemos ver o mundo de um jeito diferente'
".

Quando li isto procurei saber mais sobre esse poeta. Encontrei coisas e acabei traduzindo e botando outro poema dele em meu site/blog. O poema se chama "Do verde ao verde", foi publicado no "Volume Verde", editado no mítico ano de 1968, e, por coincidência, a cor verde é a cor da campanha dos opositores de Ahmadinejad.

Ah, se esses abutres religiosos com suas almas pretas e tenebrosas deixassem a alma desse povo se abrir e respirar! Me lembro das lindas mulheres iranianas ensaiando sua liberação, usando roupas mais claras, mostrando o rosto, o cabelo já tingido, a maquiagem; me lembro até delas comprando roupas intimas em algumas lojas, começando a soltar a eroticidade reprimida. Para mim elas pareciam borboletas tentando sair da escura crisálida para abrir asas multicoloridas.

Quando lá estive, era primavera. E a primavera tinha duplo sentido. Olhava as neves nas montanhas de Alborz ao redor da cidade. Estavam começando se derreter. E esperava-se também o degelo do regime trazido por Khomeini. Regime, que ao surgir nos anos 70, vejam que paradoxo, foi louvado por vários intelectuais franceses. Esses franceses são meio alucinados. Na década anterior muitos deles louvavam Mao Tse Tung.

Esperando a volta progressiva à democracia, impressionou-me no museu de Esfahan um raro objeto chamado "coletor de lágrimas". Era uma espécie de ampola que servia para as mulheres recolherem suas lágrimas. Asssim os maridos poderiam medir a quantidade de lágrimas vertidas por elas, como medida de seu amor.

Já lhes contei que no Irã recentemente houve um terremoto que destruiu toda a cidade de Bann. Vários dias de busca de sobreviventes até que os soldados acharam uma velhinha de 97 anos, que ao sair dos destroços declamou um poema de louvor à vida. A poesia, contraparte da violência, faz parte da alma humana. E no Irã, poetas de há mil anos como Hafez, Saadi, Ferdowsi, Omar Hhayyam continuam vivos na boca do povo.

A alma iraniana está fazendo tudo para sair da escuridão dessas roupas, da ideologia tenebrosa desse regime. As borboletas querem abrir as asas. Ou como diz Sepehri Sohrab, no poema "Do verde ao verde":

Dentro desta escuridão
eu sonho com um cordeiro luminoso
que virá pastar a erva de minha fadiga
.

Verde é a cor da renovação no Irã, é a cor do opositor Mir Houssein Moussavi.

Que o verde sobreviva.



SOBRE OS TELHADOS DO IRA
Affonso Romano de Sant'Anna

Sobre os telhados da noite, no Irã
ecoa a voz agônica
dos que querem
se expressar.

Não é a ladainha dos Moezins
e suas preces monótonas
-conformadas

é o canto verde rasgando
o negro manto dos aiatolás
como se do alto das casas
fosse possível antecipar
-o parto de luz
que sangra na madrugada.



TOIT' IRAN
Affonso Romano de Sant'Anna (Trad. Serge Bourjea)

Sur les terrasses de la nuit, en Iran
eclate la voix agonisante
de ceux qui exigent
d’exister.

Ce n’est pas la litanie des Muezzins
et leurs prières monotones
– conformées.

C’est le chant vert, déchirant
le manteau noir des Ayatollahs,
comme si, du haut des maisons,
se pouvait anticiper
– la naissance de la lumière
sanglante du matin."



Affonso Romano de Sant’Anna é poeta, cronista, professor, administrador cultural e jornalista. Tem mais de 40 livros publicados, ensinou em universidades estrangeiras e nacionais e, à frente da Biblioteca Nacional (1990-1996), criou o Proler, o Sistema Nacional de Bibliotecas e programas de exportação da cultura brasileira. Os textos acima foram cedidos de seu site/blog http://www.affonsoromano.com.br/ E-mail: santanna@novanet.com.br

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