04 fevereiro 2025

Vem aí: ZUMBILHÉU

  Antologia Poética de um Ilhéu Brasileiro




Nota de organização

 

Esta antologia percorre a poesia de Edson Cruz, desde seu primeiro livro de poemas Sortilégio (Demônio negro, 2007), passando por Sambaqui (Crisálida, 2011), Ilhéu (Patuá, 2013), Pandemônio (Kotter, 2020) até chegar ao, por ora, último livro de inéditos Negrura (Kotter, 2022).

Neste deslocar-se, uma trilha, que são muitas, se estende. E nela, estão presentes diálogos com algumas tradições. Chama a atenção determinada tradição de origem europeia que ora fornece instrumentos ora faz peso, sendo figurada a partir também de uma tensão. Outra presença marcante é a da cultura budista (e também taoísta) que ajuda essa poesia a varrer o terreno daquilo que atrapalha (“não desanimem, insistam /superem o limite do ego falastrão”). E, por fim, talvez a mais importante das presenças seja a da cultura negra em suas várias tradições e acentos.

Mas na poesia de Edson Cruz tais presenças não se dão necessariamente de forma isolada, cada uma no seu canto, mas sim formando uma simbiose tensa, rica, constitutiva. Por exemplo, é possível ver como se adensa, de livro a livro, a voz de um enunciador lírico negro. Isso se dá diante de todo um arcabouço que apaga tal presença, vindo de diversos lugares, entre eles, de determinada tradição poética. A presença do budismo aí é de grande importância, porque é ele quem ajuda a poesia de Edson a abrir espaço.

Nesse sentido, vale destacar como o poeta valoriza uma voz que seja legião. Essa multiplicidade tanto pode apontar para uma presença opressiva que pode silenciar, quanto para a reviravolta positiva de um sujeito constituído por uma memória pessoal que é coletiva e que incorpora, por exemplo, a experiência potente e plural de se dizer negro: “sou nós /sou voz”.

E tal experiência é uma construção discursiva, mostrando como a poesia é mesmo um dos lugares da cultura onde a voz se faz, e faz o sujeito. Nesse sentido, vale lembrar um poema de Adão Ventura que muda “eu-lírico” para “eu-zumbi”, operando deslocamentos que só a poesia pode fazer, mas que, depois de feitos, se expandem para outros campos discursivos. Vale também a lembrança de Arnaldo Xavier, poeta que, entre outras coisas, combinou a tradição iorubá dos orikis com a japonesa dos haicais e fez o “orikai”, compondo poemas que também abrem caminhos.

Mas é preciso ressaltar que nada na poesia de Edson é estanque, muito menos os processos de identidades operados nestes versos. Daí que o silêncio seja silenciamento, ou seja, resultado de violência, mas o silêncio também pode ser, nesses versos, um tipo de afirmação mais do que de condição. Ser negro também não se dá na direção de uma unidade absoluta, mas sim se dá como processo plural onde há espaço, no limite, para ser dito e desdito de uma só vez, ou seja, se complexificar.

Os poemas nesta Antologia poética foram escolhidos pensando um pouco nisso tudo. Mas também facilmente eles podem contradizer isso tudo. Porque às vezes, quando a gente acha que pegou o poema, ele mostra que já está mais lá na frente. Assim também com a poesia de Edson Cruz. É sem fim a conversa que ela pode estabelecer com leitores e leitoras.

 

 

Leonardo Gandolfi nasceu no Rio de Janeiro, e desde 2013 mora em São Paulo, onde é professor de literatura na Universidade Federal de São Paulo. Escreveu o ensaio Manuel António Pina, livro da coleção Ciranda de poesia (EdUerj, 2020). É autor de quatro livros de poemas, entre eles, Robinson Crusoé e seus amigos (editora 34, 2021).



OBS.: A obra será publicada no sistema de crowdfunding do Catarse. Confira e colabore: 
https://www.catarse.me/antologiaZumbilheu

03 janeiro 2024

VERBO NOVO



      escrever na areia

      o que me der na telha

      registrar no espaço-tempo

      do instante

      o que a onda lambe

      e o vento sorrateiro

      exangue.





05 abril 2022

ÓPIO

 



    Odo Nnyew Fie Kwan: “O amor sempre acha o caminho de casa”.

                               

 

apesar de tudo

o cultivo do amor

nos aperfeiçoa

inventa saídas

reordena os dias

recria papoulas

nos jardins pisoteados

da vida.

 

apesar de tudo

o amor

como planta em busca

do sol

besouro a procura

do escol 

sempre acha o caminho

de casa.






[Poema do novo livro O Caminho de Casa, no prelo]




 

20 agosto 2021

CONFRARIA DA PALAVRA

 



O próximo convidado da CONFRARIA DA PALAVRA é o romancista, contista, antologista e poeta NELSON DE OLIVEIRA, ou LUIZ BRAS, ou VALÉRIO OLIVEIRA, como você preferir.

Nelson cursou artes plásticas na Universidade Mackenzie e foi diretor de arte em diversas editoras. Em 1989, depois de uma oficina literária com João Silvério Trevisan, escreve o livro de contos Fábulas, premiado com o Casa de las Américas, que se desdobra no Brasil em quatro títulos: Os Saltitantes Seres da Lua, 1997; Naquela Época Tínhamos um Gato, 1998; Treze, 1999 e Algum Lugar em Parte Alguma, 2005.

Em 2001, organiza a famosa antologia Geração 90: Manuscritos de Computador que reuniu os principais prosadores brasileiros do final do século 20 e, em 2003, Os trangressores.

Com o pseudônimo Luiz Bras, é escritor infantojuvenil e pós-cyberpunk, navegando entre a ficção científica e a ficção literária; e, como Valério Oliveira, é poeta.

Além da produção literária, é professor de oficinas de escrita criativa.


Link: https://www.youtube.com/watch?v=JbYQhsduGC4





16 junho 2021

DE TOCAIA

 













   meu espírito é uma pintura

   de um tempo sem início.

   voa fora da asa sem restrições

   pelo espaço-tempo

   da eternidade.

   é chama que inspira

   o coração renitente dos seres.

   aguarda o tempo-agora

   tocaiando o amadurecer

   das horas.







22 janeiro 2021

CRÍTICA DA RAZÃO IMPURA

 













o pensamento move

o mundo.

leva pela mão

a minha e a tua alma

impune.

evita que ela fique

confinada

ao corpo e ao planeta

que definham.

no instante

em que imaginas,

pareces eterno.

ao entrares em ação,

vês que és um simples 

mortal.

do velho mouro

te esqueces inconteste.

o mundo ainda ruge

e não basta que apenas

o interpretes.

urge que o possas

transformá-lo

e com pressa.






Imagem: o velho mouro (Karl Marx) ainda jovem.











16 janeiro 2021

PATRIMÔNIO

 

















  o desastre parece não ter fim.

  o fatídico dos dias se espraia

  e não se consuma.

 

  vivemos no país do sol

  em calendário de contenda

  com a noite.

 

  a esperança se esfuma

  em seu perfil de âncora

  como um carvão a perfilar

  os seus cristais de bruma.

 

  uma oração ressoa

  entre a hora do boi e a do tigre.*

 

  garatujas 

  de futuros impossíveis. 

  esboços

  de tempos vindouros.

 

  a ação 

  como se o sonho 

  se impusesse 

  duradouro

  e a fé cintilasse 

  como um tesouro.

 

 



 

 

*Período entre 1 hora e 5 horas, considerado no budismo como um intervalo crucial em que, de acordo com uma antiga crença chinesa, a vida se move do ciclo negativo (yin) para o ciclo positivo (yang), do sono para o despertar, ou da morte para a vida.


















07 janeiro 2021

ALVEJAR

 












balas desviam

lábeis

perdidas

e adestradas

a eleger hábeis

certeiras

alvos

que sestram

em peles

que não são

alvas.






07 dezembro 2020

TROPEL

 












manipular os mitos deixando

que eles nos refaçam impermanentes

na conflagração de formas

e tramas.

lidar com o inconsciente informe

dos seres que se camuflam

nos sonhos.

enfrentar a surda batalha

com as palavras que copulam

com o silêncio.

recuperar aquele Egito

de uma imaginação em chamas

ou o mar da cor de vinho

ofertado por Homero.

videntes dentro da neblina.

aquele que faz chorar os cavalos

de Aquiles.

o poeta é um historiador

do tropel de sonhos incontidos.






03 dezembro 2020

ESPECULAR

 




 









voltar a ler o que parece

ser chuva e desejos

oblíquos.

traduzir o poema da vida

com a linguagem diáfana

do ser.

ações do espírito a refletir

semelhanças

de uma poética original.

com o reflexo e seu acentos

de luz e sombra

apreender o que nasce

do espelho.

escritura invertida do ser

na luz especular 

que volta a ser 

pelo ser

capturada.







[Pintura Chuva Oblíqua, de Gonçalo Ivo, 2001]






 


26 novembro 2020

TULIPAS










as palavras não deixam na mão

a casta dos que amam.

assim como parece ser em vão

dar um basta ao sofrimento

que nos imanta.

o aprendizado do amor

aperfeiçoa a razão

e começamos a inventar

saídas para a desordem

dos dias.

a recriar tulipas

nos jardins abandonados

da imaginação.










19 novembro 2020

INSIGHT

 











a luz toca os sentidos 

antes que possamos 

percebê-la.


antes da escrita do poema

a poesia nos apalpa 

com seus dedos de aurora.


um arco-íris se ergue

luminoso

na atmosfera do espírito.


um poema se oferece

teimoso

como um anjo decaído.






[Ilustração de Milton Mastabi]









17 novembro 2020

PINTURA RUPESTRE

 












o discurso da vida deve ser inscrito

como um poema.

o povo é sempre o grande artífice

de uma grande arte.

poeta é quem restaura a consciência

do povo pela linguagem.

o poema gesta verdades que o coração

é capaz de tocar.

a imaginação nos acrescenta mais

do que a verdade nos impõe.

o real que vale a pena ser cantado

é aquele que foi absorvido pelo sonho.

escrever é sempre fugir do eu-lugar.

debaixo da pele do silêncio e das palavras

se instaura o abismo do poético.

criar é educar o ser para a linguagem.

na complexidade das coisas simples

pode-se ouvir o rumor de uma Lei

e o pensamento de um deus

absorto.













16 novembro 2020

AFIRMATIVO

 











sim, negritude é uma manifestação cultural

e política mobilizadora.

os argumentos que livram o negro das armadilhas

do discurso colonial tornam-se novas formas

de idealização do negro.

escritor negro, literatura negra, 

literatura afro-brasileira podem

aprisionar, mas o debate é salutar.

o critério para definir o que é negro deve ser cultural.

a perspectiva mais ampla sobre essas questões deveria 

ser a dos negros.

a cultura é uma teia de significados tecidos

ao redor de nós mesmos.

urge captar a densidade simbólica

das coisas.

miscigenação cultural pode provocar mudanças

em determinadas etnias.

o oponente não é o brasileiro branco

e sim o brasileiro racista.

identidade nacional coesa é papinho

de redação de vestibular.

afrodescendente é o resgate de uma descendência

diluída nas miscigenações.

o branqueamento produz escrituras esquecidas

das desigualdades.

além da mimese das formas europeias,

sob a melodia das flautas pan

subsiste os ritmos africanos sufocados.

somos um país de mestiços

e isso não quer dizer que antecipamos

um mundo sem raças.

temos que ser afirmativos.

os signos devem ser postos novamente

em movimento.

Machado, Castro Alves e Cruz e Souza

sempre foram negros.

somos todos exilados de nós mesmos.

somos todos negros cravados

de escravidão.

sim, homens e mulheres brancos já falaram

demais.