18 novembro 2008

Sopa de Poesia

Gustavo Felicíssimo - O que o contato com a música traz de relevante para a sua poesia?

Edson Cruz – O contato com a música para mim foi a própria abertura para a poesia e para a vida. Com ela (a música) apurei meus sentidos, meu ouvido, minha sensibilidade em relação às palavras e aos sentidos. Como já disse Shakespeare em O mercador de Veneza, “Todo homem que em si não traga música... É de traições, pilhagens, armadilhas. ... Não se confie em homem tal...”.

Por outro lado, embora saibamos que o isomorfismo entre o som e o signo tenha limites, não podemos desconsiderar o fato de que a própria comunicação através de palavras começou com onomatopéias, gestos vocais imitando a natureza das coisas, etc.

O psicólogo Wolfgang Köhler fez aquela famosa experiência para descobrir se ocorria para as pessoas uma ligação entre algumas formas visuais e certos sons. Inventou as palavras “takete” e “maluma”, que são foneticamente opostas, e apresentou-as a indivíduos de línguas diferentes com duas figuras geometricamente opostas. Uma figura era angulosa (parecia uma estrela), a outra curvilínea (como círculos concêntricos). A pergunta fatal era: qual das figuras poderia ser chamada “takete” e qual “maluma”? A maior parte das pessoas inquiridas (embora falassem línguas totalmente diferentes) associou a palavra “takete” à figura angulosa, estrelada e “maluma” à figura curvilínea. Coincidência? Não, de forma (de som) alguma (algum).

O que eu quero dizer com isso? Simples. A musicalidade é tudo em poesia. Se não houver ritmo, sonoridades encantatórias permeando o texto poético, poderá até haver tema, discurso, sentido, mas sempre faltará alguma coisa, a música, que para mim tende ao essencial. Isso não quer dizer que precisemos, necessariamente, de rimas.

Aquelas categorias aventadas por Ezra Pound são importantes: o enfoque nas imagens (a fanopéia), nas idéias (a logopéia) e nos sons (a melopéia). Um poema que permanecerá, em minha opinião, deverá ter os três elementos dialogando entre si. Mas há grandes poemas que privilegiam aspectos de um dos três enfoques. Agora, o poema pode até não contemplar as imagens, ou as idéias, mas, para mim, se não tiver melopéia, meu ser simplesmente o rejeita. É instintivo.

Isso, que não é nenhuma novidade desde os gregos, foi a maior influência que a música teve sobre mim e sobre a minha poesia — se é que eu a tenho.



GF – Você vê o poeta como um ser deslocado perante a sociedade prática em que vivemos?

EC – De certa forma isso já se tornou um clichê, e também deve ser combatido, como todos os clichês. O poeta, e todos os seres criativos, terão que desenvolver as habilidades necessárias para interferir e alterar o estado das coisas, gerado pelas pessoas que se dizem práticas e pragmáticas. Ele não deve aceitar passivamente ser colocado (ou colocar-se, o que é pior...) de escanteio no jogo da vida com a desculpa de que não sabe lidar com as coisas práticas do mundo. O poema de Baudelaire O Albatroz é lindo. Constata uma verdade que se relacionava ao mundo romântico.

...O Poeta se compara ao príncipe da altura [ao Albatroz] / Que habita os vendavais e ri da seta no ar; / Exilado no chão, em meio à turba obscura, / As asas de gigante impedem-no de andar. [em tradução de Ivan Junqueira]

É uma verdade relativa que não nos cabe mais. O mundo precisa ser transformado e não será com uma atitude “canhestra e envergonhada”, digna de um monarca em meio à turba obscura, que faremos a diferença.

É justamente por estarmos nessa sociedade pragmática, egoísta e desumana, que o poeta deve recolocar-se com voz e atitude dignas. Com consistência do princípio ao fim. Levar o potencial revolucionário da poesia para as coisas práticas da vida.

GF – Que sentido você atribui a esses seus versos: “o que não sei/ eu intuo/ o que sei/ é entulho”?

EC – Esse é um dos grandes trunfos/triunfos da poesia. Poder dizer em poucas palavras, com certa graça, o que de outra forma seria necessário um tratado, uma tese, uma dissertação. E há, com certeza, inúmeros textos, tanto na tradição oriental quanto na ocidental, que buscam esclarecer o que tento dizer com estes quatros versos: o excesso de conhecimento, de informação, não é sabedoria. Esse acúmulo de pretensos saberes, nas horas cruciais podem muitas vezes atrapalhar, mais do que ajudar. A intuição é o que nos salva, se ela não for completamente obliterada pela pretensa erudição.

Na hora em que você for atacado por uma onça, ou estiver na iminência de ser atropelado, ou de se apaixonar, se parar para pensar, já era. E muitos já foram salvos (ou criaram coisas novas, inovaram, atingiram a iluminação, acertaram na mega-sena, conquistam o amor) justamente porque deixaram a massa de informação de lado e permitiram que outra coisa atuasse. É como se deixar levar pela música. Não dá pra pensar muito em qual seria o próximo passo. Tem que se entregar e, de repente, surge uma estrela cintilante, um gesto, um passo jamais realizado, o poema, a dança, a saída, a resolução do problema, a beleza, enfim, a vida.


[Publicado no blog de Gustavo Felicíssimo, http://sopadepoesia.zip.net/]

Um comentário:


  1. Essa é uma das raras leituras que faço com as quais concordo com absolutamente tudo, tanto que não pude deixar de fazer esse comentário.

    Tbm tenho uma ligação forte com a música, o que fez e faz diferença na minha vida, em todos os campos que alguém possa imaginar. Gosto de entender a língua de um povo, estudando sobre sua geografia (entre outras coisas).

    Ah, não vou comentar tudo, senão... rs

    Mas, digo, esse seu olhar sobre as coisas, sua percepção, que me chega através dessa entrevista, fez com que eu ficasse entusiasmada.

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