25 julho 2010
19 julho 2010
Carvalho à queima roupa
EC.: O que é poesia para você?
Paulo César de CARVALHO: Já que você pergunta assim de bate-pronto, como um direto de direita, quase sem chance pra respirar, a primeira referência que me vem é Santo Agostinho, que não era poeta. Interrogando-se em suas "Confissões" sobre o que é o tempo, o santo – que não era santo – dizia: quando não me perguntam o que é o tempo, eu sei o que é, eu o sinto. Mas quando me pedem para defini-lo... O que a reflexão do “santo” sugere é que o sujeito aí se divide em dois: o que existe no espaço-tempo e o que racionaliza no discurso. Isso para dizer que sua pergunta me cinde, colocando-me na mesma situação: ao mesmo tempo sou o sujeito que escreve o texto poético e o que é convocado a refletir sobre a cria.
Tomando essas noções como ponto de partida pra tentar te responder, quando leio ou escrevo poesia, sei o que é: estou dentro dela. Mas quando me pedem para defini-la... Falar sobre a poesia, nessa perspectiva, é estar fora dela. Isto é, falar de fora, enunciar a partir de outro lugar que não o do discurso poético. Por isso é que falar sobre ela – sobretudo na condição também de criador – dá a sensação, de certa forma, de matá-la, aprisioná-la como borboleta de colecionador em taxionomias críticas (como Wali Salomão dizia, sou míssil, não fóssil!), por-lhe rótulo, colocá-la numa embalagem. Quando se fala da poesia, ela não é: se o beija-flor parar para pensar porque beija a flor, cai...
Por isso prefiro a poesia ao discurso sobre a poesia: o bom texto poético fala por si, na sua própria “língua”, com o seu próprio código. Isso, aliás, me lembra Mallarmé, quando dizia que apresentar um objeto estético em sua imediata evidência é matar três quartos do prazer que reside na descoberta gradual de sua verdadeira natureza - sugerir, eis o sonho! E, por falar em sonho, sonho o sonho de Rimbaud (como um sonho dentro do outro, num discreto charme à Buñuel) para tentar te responder: queria um verbo alquímico acessível a todos os sentidos, para fixar as vertigens, anotar o inexprimível, dizer o inominável. Se fosse possível definir a poesia com a cor das vogais! Mas como traduzir isto que Octávio Paz chama de a mais fascinante orgia dos sentidos?
O discurso sobre a poesia, ao racionalizar procedimentos, revelar os andaimes da construção, mata a sugestão de que fala Mallarmé, enfraquece a potência do sonho: a reflexão sobre o objeto é como um beliscão que desperta o sonhador, leitor ou poeta. É que o discurso sobre a poesia, de certa forma, muitas vezes parece querer revelar a mágica.
Por isso gostaria de aproximar o sujeito que escreve poesia do sujeito que reflete sobre a escrita poética, para tentar alcançar o que Barthes chama de “ciência dramática”, território em que o rigor da reflexão se soma ao calor da emoção, em que a abordagem teórica, crítica, não aborta as subjetividades, não apaga o “eu” (em nome da pretensa objetividade do discurso científico – pelo qual, aliás, nutro grande respeito: os pensadores são fundamentais! Meu bode é contra os acadêmicos de seminários sem sêmen, os colecionadores de coleópteros literários!). Quem me dera alcançar a graça da dicção ensaística barthesiana, que faz poesia falando sobre poesia, diluindo as fronteiras entre os gêneros (sonho leminskiano: vai haver um dia em que tudo o que eu diga seja poesia!)...
Voltando à sua pergunta (divago, como diz Rosa, mas não disperso!): as definições teóricas do fazer poético – O QUE É POESIA? – em geral, em movimento pendular, alternam-se entre as noções de poesia como inspiração e poesia como construção: num lado do campo, a emoção; no outro, a razão. Reivindicando o Nietzsche do "nascimento da tragédia no espírito da música", podemos traduzir assim a questão: de um lado, há a chamada tradição estética dionisíaca, romântica, que defende a criação como um sopro das musas; de outro, a apolínea, clássica, que concebe a obra como um objeto de ourivesaria.
Os poetas, falando de seu ofício, parecem procurar um lugar em um ou outro nicho, aninhando-se deste ou daquele lado da fronteira: há os racionalistas de carteirinha, defensores de uma poesia cerebral, equilibrada, contida, sem emoção, e os subjetivistas descabelados, defensores de uma poética passional, exaltada, comportamental, cotidiana. De um lado, a poesia como construção; de outro, como inspiração. E os poetas se digladiando como numa espécie de guerra santa estética! Eu, de minha parte, prefiro abolir as fronteiras, transitar sem pedágio, devorar e digerir (como bom antropófago aluno de poesia de Oswald de Andrade) o que cada lado tem de interessante para oferecer – afinal, “só me interessa o que não é meu”.
Para ajudar a pensar o problema, lembro-me agora de outro Andrade, companheiro de viagem modernista: Mário de Andrade, em seu ensaio "A escrava que não é Isaura" (que ele apresentou na Semana de 22) tenta equacionar a questão, conjugando os contrários em nome da boa síntese dialética. Em outros termos, reflete tentando encontrar uma espécie de “caminho do meio” entre Apolo e Dionísio, entre a construção e a inspiração. Segundo o bardo modernista, a poesia é um telegrama cifrado que vem da atividade inconsciente para a atividade consciente traduzir. Ela não é só emoção; ela não é só razão. No processo complexo do fazer poético, a inspiração passa por um processo de construção, de elaboração crítico-criativa. Eu vou nessa mesma linha – eu acredito na poesia como inspiração e como construção: creio que esta vem lapidar aquela, matéria bruta; vem dar-lhe acabamento. Como Leminski, advogo a "pororoca", o encontro das águas, o tao do “caminho do meio”: o rigor & o vigor, os caprichos & os relaxos, a construção & a descontração.
Explicando de outra maneira, quero dizer que no meu Panteão cabem vários deuses (mas defender a diversidade não é levantar a bandeira do relativismo - atenção!): não só amo a lição dos concretos, que me deram régua e compasso, ensinando-me que as palavras não são meros vasos para os conteúdos (como fala Augusto de Campos), chamando-me a atenção para a materialidade do signo linguístico, mas também amo a "várzea subdesenvolvida", a poesia marginal, as inscrições nas tabuletas, a poesia-grafite nos muros, as frases de camisetas, os slogans publicitários, as máximas de caminhão, os trocadilhos de mesa de bar, os recados de porta de banheiro...
Gosto mais da conjunção aditiva "e" do que da alternativa "ou": uma soma; a outra exclui. Isso significa que curto mais a adição do que a subtração. Sou da "ética da mistura" (na feliz expressão de Luiz Tatit), contra os valores assépticos da pureza: barroco pós-moderno, sou tropicália, não bossa nova! Acredito no Maiakóvski que fornece a divisa fundamental do concretismo: sem arte revolucionária não há arte revolucionária. Mas acredito também em Roberto Piva, que não acredita em artista experimental sem vida experimental. Não só não acredito na arte pela arte, como também não acredito no Ulisses Tavares que diz que poesia é questão de vida, não de linguagem. Acredito que poesia é questão de vida e de linguagem! Em matéria de poesia, a vida é uma questão de linguagem, e a linguagem é uma questão de vida! Ah, valha-me Torquato: a poesia é a mãe das manhas e das artimanhas! Não gosto de fronteiras, de guetos, de muros, de etiquetas, de fórmulas fixas, de escolas: com a bênção de Leminski (meu orixá, santo de cabeça fundamental, meu santo graal!), minha mente psicodélica salta dos trilhos; lógica aristotélica não legarei a meus filhos. Ah, valha-me também Novalis: não te sei o nome, flor azul, só sei que te amo! Enfim, só acredito em poesia de qualidade, qualquer que seja seu nome (com o perdão do pleonasmo: pois, se te chamo poesia, flor azul, é porque tem qualidade - é porque é flor!).
Lembro agora de uma síntese lapidar de Augusto de Campos, talvez a melhor e mais rápida resposta à sua pergunta: poesia/ a fazer/ afasia (com toda a carga de ambiguidade que faz a boa poesia: ela está entre o que o poeta fazia e o que está a fazer, entre a mudez afásica e o que vai dizer). A poesia está no intervalo. Aliás, como diz René Char (o poeta preferido de Picasso): nós não podemos viver a não ser no entreaberto, sobre a linha que separa a luz e a sombra. Poesia como luz & sombra...
Tentando, por minha vez, responder a poesia com poesia - para falar de dentro, não de fora (ou, melhor, no intervalo!)-, escrevi um poema sintomaticamente intitulado "Plural" (publicado em meu livro toque de letra – editora nhambiquara), espécie de declaração de princípios, epitáfio, testamento poético, que reverbera minha noção de “pororoca”, minha conjugação de vida & linguagem, minha enunciação marcada pela diversidade:
"meu lar/ em mil falares/ meu luar/ em mil lugares/ tenho um ar/ de muitos ares/ sou mar de muitos mares/ sou muitos/ - não repares!/ sou tantos/ - não compares!/ sou vários/ - não separes!/ sou par/ de muitos pares/ sem apesar/ nem pesares/ meus encantos/ em tantos cantares/ meus prantos/ em vários bares/ sou tantos/ quantos sonhares/ os contrários/ que encontrares/ todos os santos/ em meus altares/ em todos os cantos/ meus calcanhares/ - acredite!/ sou afrodite/ sou ares".
EC.: O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?
Paulo César de CARVALHO: Roger Laporte, num ensaio sobre “intertextualidade”, diz que antes da relação EU-ESCREVER-TEXTO há uma outra que a precede necessariamente: a relação EU-LER-TEXTO. Não acredito em abiogênese: as obras não nascem do nada. Como diz a Análise de Discurso de Pêcheux – conjugando Bakhtin, Freud e Marx –, todo dito se ancora num já-dito. Não tenho a ilusão adâmica da linguagem, a crença num grau zero da escritura. Todo texto brota da costela de outros textos. Creio, com Barthes, na espiral de vozes constitutiva do discurso: quando escrevo, outras vozes se cruzam com a minha, outras enunciações alimentam minha enunciação. A informação poética é fundamental para o fazer poético.
O conselho (como diz Mário, na conferência de 42 sobre a Semana de 22, se não sirvo de conselho, que sirva de lição!) que dou aos jovens poetas, assim, é ler muito: antes da escrita, durante a escrita, depois da escrita. Glosando Haroldo de Campos, o livro me alaga o livro me alarga o livro me alegra... O livro é um mosaico de rendas de ouro e ocelos de pavão... Ler milumapáginas em milumanoites... Ler para acabar com a escritura para começar com a escritura para acabarcomeçar com a escritura... Ler sobre o ler, ler sobre o escrever, escrever sobre o escrever, sobrescrever, escrever... Ler diferentes autores, diferentes escolas, diferentes estéticas. Ler entendendo as soluções procuradas pelas diferentes vozes poéticas. Ler entendendo cada proposta, sem exigir do poeta aquilo a que ele não se propôs. Ler sem preconceito, com os olhos livres. Ler como um antropófago, digerindo e excretando. Ler para encontrar sua própria dicção. Rilke, aliás, aconselhando seu jovem pupilo na travessia do fazer poético, fala da importância da autenticidade do enunciador, do encontro de uma dicção própria: o poeta deve escrever o que é ditado pela necessidade íntima, não pela exigência exterior. Escrever sem preocupação com modismos, com filiações a escolas, sem professar dogmas. Escrever com rigor & com vigor. Escrever conjugando vida & linguagem. Escrever construindo & descontraindo. Escrever nunca se traindo. Escrever porque não é possível não escrever... Não escrever quando é possível não escrever...
Nesta minha espécie de “carta a um jovem poeta”, lembro que o poeta-samurai Bashô também falava da importância dos mestres (ou seja, das leituras que nutrem a escrita) e da necessidade de sua superação, para a aquisição de uma voz poética própria. Duas máximas lapidares de sua pena-zen para a “cartilha” dos iniciantes: “não siga os mestres, procure o que eles procuraram”; “conheça as regras; depois, jogue-as para cima”. Em outros termos, é necessário descolar-se da foz para encontrar sua voz. Para nascer o escritor, enfim, é preciso sofrer a angústia da influência e libertar-se dela no gesto criador: reconhecer o pai e matá-lo. O poeta, ladrão do fogo, nasce quando devora a esfinge.
EC.: Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que estas escolhas?
Paulo César de CARVALHO: A primeira coisa que me chama a atenção em sua pergunta é o número 3: ancestral, mítico, arquetípico, cabalístico... O 3 da Santíssima Trindade; o 3 do céu, da terra e do inferno; o 3 de Hermes Tri Megisto e sua Tábua de Esmeralda; o 3 do ménage a trois; o 3 dos três triângulos; o 3 dos três reis magos; o 3 dos triunviratos; o 3 dos três patetas; o 3 dos três mosqueteiros; o 3 das três graças; o 3 das três parcas; o 3 das três fúrias; o três do power trio; o 3 do Trio Parada Dura; o 3 do Trio Mocotó; o 3 dos Tribalistas; o 3 dos três pedidos do gênio da lâmpada; o 3 do “tri-legal”; o 3 do trivial; o 3 dos “três tristes tigres” e seus “três pratos de trigo”...
O 3 também está na literatura: por exemplo, no ABC de Pound (já no título, sintomaticamente, 3 letras!). O 3 dos três tipos de poeta: o diluidor, o mestre e o inventor. O 3 das três poéticas: a fanopéia, a logopéia e a melopéia.
Você também faz 3 perguntas nesta enquete poética: e na terceira, como num efeito-bumerangue (que tem 3 lados!), volta ao três, pedindo 3 poetas e 3 textos... Ufa! (3 letras!).
Tanto 3, e três é tão pouco! Queria poder escolher 3 inventores (de quebra, 3 bons mestres; e chutar a bunda de 3 diluidores!). Queria poder escolher 3 poetas da melopéia, 3 poetas da fanopéia, 3 poetas da logopéia. 3 craques da poética do som; 3 artífices da poética da imagem; 3 arquitetos da poética do raciocínio. 3 franceses; 3 espanhóis, 3 americanos; 3 ingleses; 3 chilenos, 3 brasileiros. 3 em cascata; 3 em dízima periódica. 3+3+3+3... (as reticências têm três pontos!).
Mas ia ser muita gente, extrapolando muito o que você pede. Então, para chegar a um meio termo, vou escolher 3 brasileiros e 3 estrangeiros. Não os 3 que necessariamente considero os mais importantes, pensando na história da literatura. Não os 3 de que necessariamente gosto mais. Mas os 3 que funcionam como espécies de “santos de cabeça” da minha poética (que fica no intervalo entre a poesia e a letra de música, surfando na pororoca!). Se não são o Tejo, são o rio de minha aldeia... De cá, Oswald de Andrade, Augusto de Campos e Paulo Leminski. De lá (melhor, flexionando rosianamente o advérbio, de lás), Artur Rimbaud, Federico Garcia Lorca e Allen Ginsberg.
Começando pelos de cá, escolhi Oswald pelo “amor/humor”: depois do rio caudaloso do parnasianismo, da afetação neoclássica, do preciosismo vocabular, da restrição temática, uma poética da síntese, uma lição de economia de meios, a incorporação das variantes linguísticas populares (a “contribuição milionária de todos os erros”), a presença do bom humor, a ampliação do eixo temático (a poesia no amor, na dor, na flor, no elevador), a devoração antropofágica da tradição, a reinvenção do Brasil. Na música, Oswald volta, por exemplo, na trip tropicalista (além de influência literária, a capa do disco Tropicália – Panis et Circenses, por exemplo, faz alusão à celebre foto dos modernistas de 22 no Teatro Municipal). Cazuza, no disco Só se for a dois, grava uma adaptação do poema Balada do Esplanada. João Bosco, no disco Dá licença, meu senhor, compõe Pagodespell com trechos dos poemas Relicário e Escapulário. & etc.
Augusto porque “poesia é risco”: a ousadia de dinamitar o ciclo histórico do verso; de implodir a palavra; de propor (como queria Rimbaud) um verbo acessível a todos os sentidos (o “verbivocovisual” do Plano Piloto da Poesia Concreta); de mostrar a dimensão acústica, gráfica e semântica da palavra (Mallarmé, Apollinaire, Cummings...); de ensinar que em poesia o menos é mais (se Le Corbisier fosse poeta...); enfim, de experimentar o experimental (como diria Hélio Oiticica). A poesia de Augusto é um antídoto contra a vazia dicção grandiloquente da poesia bacharelesca (a “discurseira de arrastão” de que reclamava Mário de Andrade), é um dique para conter o blá retórico, um remédio contra o tédio declamatório... Augusto me dá régua e compasso (como aliás já disse a poeta Alice Ruiz, mais um de meus santos de cabeça para escrever/compor): ensina-me maiakovskmente que sem forma revolucionária não há arte revolucionária. Na música, está presente em Pulsar, na bela interpretação de Caetano (um dos textos referenciais para o meu trabalho, que traduz a cor das vogais em mil alturas e durações...), em Cademar, parceria com Tom Zé. & etc & tao. Curiosamente (mas não gratuitamente!), o “amor/humor” de Oswald é poema fundamental para Augusto (e os concretistas). Curiosamente (mas não gratuitamente!), Augusto é influência fundamental para as letras tropicalistas...
Leminski porque “é preciso colocar a poesia numa aventura de massa” (aliás, Oswald, nesta barthesiana “espiral de vozes”, dizia: “a massa ainda vai comer o biscoito fino que fabrico”): o “kamiquase” fez seu primeiro caderno de poesia (para lembrar de novo de Oswald) a partir das lições dos concretos (ele, aliás, se dizia mais concreto do que os concretos, já que havia nascido concreto, e eles se tornaram depois). Mas, além do experimentalismo na poesia, foi poeta experimental na vida, trazendo em seu couro poético as marcas da existência: sua poesia falava da vida, do comportamento, do sexo, das drogas, do rock’n’roll (“tudo o que li me irrita/ quando ouço rita lee”). Isso o aproxima também da dita “poesia marginal” da dita “geração mimeógrafo” (vide seu livro artesanal “não fosse isso era menos / não fosse tanto era quase”). Leminski realiza como ninguém a síntese forma (herança concreta)/ conteúdo (pulsão marginal), numa pororoca entre caprichos & relaxos (título de uma obra que é uma espécie de divisa de seu fazer poético). A sacada que me interessa bem de perto é colocar a poesia numa aventura de massa: para o poeta-samurai, isso se daria por meio das letras de música. E Leminski (que tocava violão) foi gravado por Caetano Veloso (Verdura), por Paulinho Boca de Cantor (Valeu e Se houver céu), pela Cor do Som (Razão)... Foi parceiro de Itamar Assumpção (Custa nada sonhar, Dor elegante, etc), de Arnaldo Antunes (Além alma e UTI), de Carlos Careqa (Alles Plastik), de José Miguel Wisnik, de Edvaldo Santana, de Moraes Moreira. & etc.
Ah, a ditadura do espaço, as inevitáveis coerções da edição, o imperativo moderno da brevidade: só três! Mas meu trabalho também sofre influência de Torquato Neto, de Caetano Veloso, de Alice Ruiz, de Walter Franco, de Arnaldo Antunes...
Bom, vamos agora aos 3 de lá. Rimbaud eu escolhi porque falta “música sábia aos vossos sentidos”: o anjo no exílio (como lhe chamava Verlaine, que, aliás, faz um elogio à música, torcendo o pescoço da eloquência, em seu “Arte Poética” – a propósito, um dos textos referenciais para meu trabalho: “música, acima de tudo música”) transitava da poesia clássica à poesia das tabuletas, dos livros infantis, dos diários... Foi o grande mago visionário da “Alquimia do Verbo” (outro texto referencial para o meu trabalho), que ambicionava um verbo poético para anotar o inexprimível, para fixar as vertigens, traduzindo a cor das vogais (outro texto seu que gostaria de que fosse meu...). Nosso poeta-letrista Vinícius de Moraes o considerava o maior da lírica moderna. Não à toa, na canção Carta ao tom 74, diz “é preciso inventar de novo o amor”, citando o “l’amour est pour reinventé” do “vagabundo genial” (como Mário de Andrade se refere a Rimbaud em A escrava que não é Isaura).
Lorca porque “há um cão no coração” que não pode deixar de ganir: um de seus trabalhos de que mais gosto é o Poeta em Nova Iorque, que para alguns críticos chega a superar os surrealistas. Mas, para minha poesia-letra, para minha poesia-canção, estão mais presentes textos como Bodas de Sangue – escrito para o teatro, adaptado por Carlos Saura para o cinema, entremeado por trechos de canções populares (“a noiva, a branca noiva, hoje donzela, amanhã senhora...”), Romanceiro Gitano (dá quase para ouvir o violão “flamenco” de Paco de Lucia...)... Tocam-me particularmente (“tocar”, verbo musical...) os poemas do Diván del Tamarit: “diván” é uma palavra de origem persa que significa “conjunto de poesias líricas”, em geral de amor (um de meus temas preferidos, apesar de um dos mais batidos, talvez por isso dos mais desafiadores, já que fica mais difícil fugir do lugar-comum. Como diz Caio Fernando Abreu – que, aliás, na chácara de Hilda Hilst, acreditou em trip espírita ter incorporado Lorca –, “o bicho homem não faz outra coisa a não ser pensar no amor”). Neste trabalho, o poeta-cigano experimenta formas poéticas bem musicais, como a casida, um tipo de poesia árabe com uma só rima e métrica (a tradição árabe chegou ao nosso nordeste com os portugueses, influenciando a poesia popular das feiras...), e o gazel, poema curto usado na poesia persa, que tem entre quatro e quinze dísticos, com retorno frequente a um refrão e exigência de rima dos versos do primeiro dístico entre si, e, depois, com o segundo verso dos outros dísticos, numa estrutura também marcada pela musicalidade.
Por fim, Ginsberg porque “esteja eu louco ou frio/ obcecado por anjos/ ou por máquinas/ o último desejo é o amor”: estes fragmentos constam do poema intitulado sintomaticamente de Canção – caro para mim, que persigo justamente o poema-canção. O bardo beat, herdeiro de Walt Whitman, é o poeta dos “pulmões épicos”, que escrevia ao sabor do jazz uma poesia fortemente marcada pela oralidade (a musicalidade da fala, a descoberta do rap): seu torrencial Uivo, título que remete à musicalidade do grito, foi declamado no famoso recital da Galeria Six, em 1955 (aliás, no “eterno retorno” da “espiral de vozes” desta nossa entrevista, no poema Um supermercado na Califórnia há uma referência a Lorca: “e você, Garcia Lorca, o que fazia lá, no meio das melancias?”). O poema Kaddish também traz a marca da música: dedicado à mãe, é um lamento fúnebre, um canto aos mortos na tradição judaica. Mas a música esteve presente não só na poesia, como também na vida de Ginsberg: no seu aniversário de 50 anos, uma homenagem do The Clash; os 60 comemorou com as dissonâncias do Sonic Youth... Isso sem falar da influência sobre dois dos maiores nomes do poema-canção norte-americano: Lou Reed e seu gutural canto “uivado” (a figura, a propósito, sempre se vestiu de preto – como a Janis Joplin antes de chegar a São Francisco –, reverberando à moda americana o tédio existencialista francês, bem traduzido pelos escritores da trupe de Ginsberg) é autor de canções “beats” como Walk on the Wild Side, crônica sobre a América anti-sonho americano, sobre o fracasso do american way of life, sobre traficantes, drogados, travestis e outros personagens naufragados. Bob Dylan também carrega em suas composições a herança beatnik, como na letra de Desolation Row, por exemplo (Ginsberg e ele deixaram um texto para Kerouac no enterro do autor de On the Road; Ginsberg era louco para transar com Dylan...). Isso sem falar da influência também sobre Jim Morrison, do The Doors, que era pirado também em Rimbaud, como Ginsberg... Só pra terminar a “quadrilha” – pra não dizer que não falamos de Drummond... Só pra não falar também que eu não queria falar também de Joan Brossa, de Boris Vian, de Fernando & outras pessoas...
Paulo César de Carvalho é mais conhecido como Carvalho. Vocalista e letrista da banda Os Babilaques. Bacharel em Direito e mestre em Linguística pela USP, professor de Gramática, Interpretação de Texto e Redação do curso Anglo Vestibulares e do CPC-Marcato, co-autor do material de Língua Portuguesa do Sistema Anglo de Ensino, autor dos livros Tópicos de Gramática e Tópicos de Interpretação de Texto e Redação (Editora CPC – www.cpc.adv.br ou livraria@cpc.adv.br). Foi editor do boletim Texto & Cultura, com o ex-correspondente da Folha de S.Paulo e editor de Política Internacional José Arbex Júnior. Colaborador das revistas Discutindo Língua Portuguesa, Discutindo Literatura, Arte & Informação, Livro Aberto e Libertárias e consultor da TV FUTURA no programa Tá Ligado?. Curador da exposição Linguaviagem: em Português nos entendemos, organizada pelo Museu da Língua Portuguesa para o Itamaraty, a propósito do Congresso dos Países Lusófonos, realizado em Brasília em março de 2010. Tem poemas publicados no livro Na virada do século – poesia de invenção no Brasil (Landy Editora) e na antologia portuguesa Poezz (Almedina). Em 2009, publicouo Toque de Letra (poesia, Editora Nhambiquara). E-mail: carvalho70@gmail.com
07 julho 2010
A importância das revistas literárias em papel
Há quem acredite serem as revistas literárias tão importantes quanto as obras-primas de uma determinada literatura. Se isso for verdade, é mais do que oportuno pensar e questionar o papel das mesmas no contexto de nossa literatura através da história, e mais ainda, a sua importância na literatura contemporânea.
As revistas, pelo que podemos observar, sempre foram um pólo aglutinador de criadores e pensadores das questões que permeavam a produção e a recepção das obras literárias. Quase todo grande movimento literário digno de nota gerou, e nas primeiras horas sustentou-se numa revista que lhe servia de porta-voz e por meio da qual se articulavam manifestos, poemas, contos, ensaios críticos no calor da hora, fragmentos de romances, etc.
Não haverá como, nesta pequena introdução à questão, analisar os vários períodos históricos de nossa literatura tupiniquim e suas respectivas publicações de luta e afirmação [como vem fazendo de forma sistemática o Luiz Ruffato no jornal Rascunho. Confira]. Basta lembrarmos que o modernismo brasileiro seria impensável sem as publicações das revistas Klaxon (1922-1923); Revista Verde (1928); Revista de Antropofagia (1928-1929); Festa (1927-1929 e 1934-1935); e, mais recentemente, fundamentando o plano piloto do movimento de poesia concreta, as revistas Noigandres (1952-1958) e a Invenção (1962-1964).
Convém ressaltar que estas revistas tinham um engajamento quase que “romântico”, no sentido de que eram feitas na “raça” e “às próprias custas”, sem o benefício das leis de incentivo e de verbas governamentais que hoje custeam grande parte das revistas literárias que conseguem se manter por mais de um ano.
O que gostaríamos de avaliar, nesta reflexão, é como se dá o funcionamento das revistas literárias contemporâneas tendo em vista a imbricação triádica complexa que são as relações entre o autor, a obra e o público?
Por uma questão de foco, centrei-me em duas revistas contemporâneas que são aparentemente distantes uma da outra, tanto em seu projeto editorial e gráfico, quanto em seu posicionamento geopolítico e estético. Digo aparentemente, pois não estou certo de que seus projetos sejam tão díspares assim, mas através delas me foi possível refletir sobre algumas questões.
Falo da revista carioca “Inimigo Rumor” e da cearense “Arraia Pajéurbe” [as duas haviam morrido, mas parece que irão ressuscitar].
As revistas literárias, a meu ver, são um campo privilegiado para a reflexão do fazer literário, no sentido de que - a margem do mercado – podem (e normalmente o fazem) abrir espaço para novos poetas, e para os já estabelecidos, mostrarem seus trabalhos e avaliarem a sua receptividade, pois como disse Valéry, “o homem dificilmente está sozinho”, e de alguma forma estará sempre “mais ou menos consciente do efeito que será produzido” pela sua obra no público leitor ou “consumidor”, para adotarmos a designação emprestada da Economia por Valéry.
Dizem por aí que “há um público cada vez menor de leitores de poesia”. Se há dúvidas de que esta assertiva seja correta, o que nos parece mais evidente é que as editoras bem estabelecidas publicam cada vez menos poesia. O que poderia nos levar a concluir (creio que erroneamente) que há um desinteresse pela produção poética por parte do grande público. Erroneamente, penso eu, pois os autores já estabelecidos pela ‘tradição’ ou pela academia, ou pela crítica literária, continuam a serem reeditados, lidos, comentados, revisados. “Afortunados”, diria eu.
Ou seja, há sim um público leitor de poesia. O que não há é um público de leitores da poesia que se está fazendo hoje com toda a diversidade de dicções e motivações apresentadas.
Passado o momento heróico do estabelecimento do plano piloto da poesia concreta, onde buscava-se “novas condições para novas estruturações da linguagem” chegando-se ao que foi denominado pelos seus engendradores como uma conquista da relação dos “elementos verbivocovisuais”, no dizer de Décio Pignatari, e passado também seu momento de diluição na prática dos novos criadores influenciados por este programa importantíssimo, o que se observa nas revistas contemporâneas mencionadas (entre tantas outras) é a retomada e a eleição do verso como forma predominante da construção poética. De maneira geral, o verso livre -devemos ressaltar -, mas ainda assim o verso.
Ou seja, tal adoção de procedimentos demonstra que o projeto concretista, embora seja notória sua presença e influência na propaganda, na paginação das revistas e de jornais, nas diagramações dos livros, nos ‘slogans’ da TV, veio mais para sanear e “higienizar” as práticas literárias que eram feitas até então, colocando outras idéias e autores em discussão, do que para estabelecer-se como uma nova forma a ser adotada a partir de então. Algo que não foi mantido nem pelos seus próprios criadores.
Porém, temos que concordar com Augusto de Campos em sua introdução à 1ª edição da Teoria da poesia concreta, quando diz:
“O movimento de poesia concreta alterou profundamente o contexto da poesia brasileira. Pôs idéias e autores em circulação. Procedeu a revisões do nosso passado literário. Colocou problemas e propôs opções.
No plano nacional, retomou o diálogo com 22, interrompido por uma contra-reforma convencionalizante e floral. Surgiu com um projeto geral de nova informação estética, inscrito em cheio no horizonte de nossa civilização técnica, situado em nosso tempo, humana e vivencialmente presente. Ofereceu, pela primeira vez, uma totalização crítica da experiência poética estante, armando-se de uma visada e de um propósito coletivos. Enfrentou a questão participante, mostrando que alistamento não significa alienação dos problemas da criação, que conteúdo ideológico revolucionário só redunda em poesia válida quando é veiculado sob forma também revolucionária. Pensou o nacional não em termos exóticos, mas em dimensão crítica.”[1]
Em outras palavras, o movimento concretista nos educou a todos. Mesmo os que se posicionaram diferentemente ou reativamente, adotando outras práticas ou “práxis”, tiveram que, de certa forma, perder a ingenuidade e colocar-se com mais consciência, historicidade e criticidade em seu fazer poético.
Antes de mostrarmos o “plano piloto” das duas publicações em questão, vale citar as reflexões feitas no ‘calor do momento’ em que vivemos, por Nelson de Oliveira em seu livro de 2003, Verdades provisórias. Ao analisar as revistas literárias atuais, em relação às de nosso passado próximo, ele se ressente de um excesso de crítica e ensaios, em detrimento da “criação” propriamente dita.
“A julgar pelo que se vê hoje em dia, a função de uma publicação literária qualquer é basicamente a de criticar e avaliar a produção poética e ficcional. Criticar e avaliar — mais do que apresentar amostras desta produção: contos, poemas, trechos de romance etc.”
Em outro momento ele analisa:
“Dá-se no Brasil do pós-Segunda Guerra o momento áureo das revistas literárias, que durou mais ou menos trinta anos e ocorreu lado a lado com o auge do modernismo tardio tanto na prosa quanto na poesia. Coincidência? Momentos de pico da criatividade literária viriam necessariamente acompanhados de boas publicações críticas, destinadas ao amplo público? Ou uma coisa não tem nada a ver com a outra? Tendo a acatar esta segunda opção: a homologia não é obrigatória. Grandes críticos literários — e grandes publicações literárias — podem existir mesmo quando não há nenhum grande escritor em atividade, e vice-versa. Como disse Anelito de Oliveira, editor do Suplemento Literário de Minas Gerais, resumindo a questão: “Ausência de literatura é notícia tanto quanto presença de literatura”. § A crítica literária está vivendo, no Brasil, um momento relativamente esquizofrênico. Por um lado, muitos escritores estreantes — entre eles o pernambucano Marcelino Freire, o gaúcho Altair Martins, o carioca Carlito Azevedo e o mineiro Fabrício Marques — têm sido recebidos com salva de palmas por resenhistas e leitores de todos os níveis, dentro e fora das redações, dentro e fora das universidades. Por outro lado, até agora não surgiu ninguém disposto a fazer o balanço do que foi, por exemplo, a literatura brasileira na última década, muito menos uma voz que reunisse e resumisse todas essas salvas de palmas numa fórmula matemática clara, cuja decodificação provasse por A mais B que a literatura brasileira recente vai de vento em popa. O que se ouve, da parte da crítica, é o veredito mais ou menos unânime de que a literatura brasileira nunca esteve tão ruim das pernas. Noutras palavras, continua sendo consensual a afirmação de que depois da geração de prosadores que estourou na década de 70 e dos poetas da geração do mimeógrafo, nada de muito instigante tem acontecido nas letras produzidas neste torrão do Ocidente. Se torcermos um pouco o rumo da discussão, daremos de cara com a seguinte pergunta: E quanto às revistas literárias?”
Nelson segue sua análise da importância das revistas literárias para a literatura, concluindo melancolicamente:
“De tudo isso, o que parece ficar é a esquizofrenia mencionada no início deste artigo. Vencida a péssima fase econômica dos anos 80, a quantidade de publicações especializadas cresce a cada dia. É prematuro ser categórico quanto a isso, mas tudo indica que o tempo da hegemonia da criação, nas grandes publicações literárias, parece que já passou. Até na Internet, onde proliferam as páginas de jovens prosadores e poetas ávidos por mostrar seu trabalho, o número de páginas destinadas à resenha e ao ensaio não é nem um pouco desprezível. Agora é a hora da crítica nas publicações de grande circulação, que estão levando ao pequeno Brasil que as consome ensaios de veteranos como João Alexandre Barbosa e Ivan Teixeira, e da nova geração de críticos, composta por nomes como José Castello e Miguel Sanches Neto.”
Se o que diz Nelson de Oliveira for verdade, encontraremos nas revistas mais textos analíticos e críticos do que a produção dos autores contemporâneos, desconhecidos ou não.
Sua análise certamente é verdadeira em relação às quase inexistentes revistas “literárias” de grande circulação, aquelas que foram encampadas por editoras e vendem em bancas de jornais com distribuição nacional. Se o modelo a ser questionado, então, for o da “Cult” ou da “Bravo” seu raciocínio é totalmente verdadeiro, pois estas revistas dedicam ínfimas páginas à criação.
Seu raciocínio, porém, não é verdadeiro se nos debruçarmos sobre as revistas literárias de circulação e tiragem restrita: as chamadas “nanicas”. Mesmo no caso daquelas que possuem uma boa distribuição garantida (ou mesmo a edição, como se dá com a Inimigo Rumor) por editoras estabelecidas, não é isso que observamos em suas páginas.
No caso das duas revistas que escolhemos para cotejar, a porcentagem de ensaios e de crítica é muito inferior a porcentagem de criação, seja ela poesia, prosa ficcional, “poema em prosa” (que por sinal teve uma edição especialmente dedicada a esta forma criativa, na revista Inimigo Rumor de nº 14), ou mesmo a fotografia que permeia e dialoga o tempo todo nas edições da revista Arraia Pajéurbe.
No começo de meus questionamentos ressaltei a possível disparidade entre estas duas publicações: a carioca Inimigo Rumor e a cearense Arraia Pajéurbe. Ao nos depararmos com as duas revistas essa possível disparidade salta aos olhos devido, inicialmente, ao projeto gráfico tão diferenciado de ambas.
A Inimigo Rumor, que nasceu em 1997 e estacionou no número 20, tem seu projeto gráfico mais associado (até onde tive acesso aos números mais antigos) ao formato livro. Desde o começo, seu projeto já estava ligado a editora 7Letras. A partir do momento que foi encampada, também, pela editora Cosac & Naify, o seu ‘anseio em se tornar um livro’ (vamos colocar desta forma) tornou-se visualmente mais explícito. Seu formato brochura ganhou uma capa dura, a qualidade do papel melhorou e ampliou sua distribuição, chegando a ter uma edição em Portugal que não coincide integralmente com a edição brasileira.
Poderíamos deduzir desta escolha do formato livro, embora se intitulando de revista, uma busca de receptividade mais específica nas camadas leitoras que atribuem um maior “valor” a este formato, em detrimento do formato revista (aquele que é passível de se encontrar em bancas de jornais) que traria consigo, por adequação semântica e estética, um “valor” menos nobre, atribuído também ao conteúdo que o formato abraça.
Em sua edição de nº 16, comemorativa de oito anos de existência, ressalta-se em seu editorial o fato de ter-se mantido fiel, neste tempo todo, às propostas iniciais de seu projeto, a saber:
1) “Abrir espaço para os poetas estreantes” (ou seja, estreantes recém publicados em primeiro livro, ou nunca publicados). A revista durante seus anos de existência publicou mais de cinquenta poetas estreantes.
2) “Divulgar material inédito de poetas e ensaístas brasileiros já estabelecidos” (neste quesito a revista confessa ter assumido “sem qualquer estardalhaço teórico ou qualquer sentimento de culpa, a herança modernista recente, incorporando os poetas concretos, os marginais dos anos 70 (Francisco Alvim, Zuca Sardan, Ana Cristina César, Eudoro Augusto e Cacaso, em especial), além de autores independentes como Ferreira Gullar e Sebastião Uchoa Leite”.)
3) “Disponibilizar poemas e ensaios estrangeiros que aumentem nosso repertório de poesia e crítica em português”.
A proposta consistiria em provocar “turbulências” na “pacificada produção poética brasileira” com o contato/atrito com experiências poéticas estrangeiras.
Neste aspecto, em nenhum momento a revista explicita quais, e de que tipo, seriam estas experiências poéticas estrangeiras. E deixa claro que, num tempo em que, segundo ela, estaríamos distantes “da era das vanguardas e seu dogmatismo doutrinário”, pretende com o amplo espectro de vozes que abriga, manter o “poder de impacto” que seria característico das revistas literárias.
Me parece, nesta questão, que o grande “poder de impacto” das revistas literárias do passado era, mais do que possibilitar um amplo espectro de vozes, conseguir alinhar em suas fileiras vozes afinadas a um projeto estético claro e definido. Neste sentido, as revistas atuais – e isso vale para as duas cotejadas para este texto – seriam somente uma antologia de vozes sem dicção e projeto estético definido.
Por outro lado, a Inimigo Rumor, de maneira geral, cumpre bem o que se propôs. É inegável a amplitude e a qualidade dos textos que abrigou (e abriga) em suas edições. De Glauco Mattoso a Jacques Roubaud, passando pelos concretistas, pelos já citados herdeiros modernistas (o que precisaria ser mais aprofundado e esclarecido, mas que não conseguirei fazer aqui), até aos poetas contemporâneos franceses, argentinos e espanhóis. Em duas edições, pelo menos, a revista disponibilizou, em formato menor e anexo, livros na íntegra de autores não editados ainda por aqui: Tamara Kamenszain, poeta argentina e Leopoldo María Panero, poeta espanhol.
Suas edições, sem dúvida, contribuem para aumentar nosso repertório poético contemporâneo, o que, talvez, seja algo por demais importante de ser feito neste momento chamado por muitos de pós-modernista e pós-utópico.
Já a revista cearense Arraia Pajéurbe, com apenas três números editados, e ainda desconhecida do público consumidor de poesia e de projetos literários veiculados pelas revistas, explicita a intenção de seu projeto editorial (seu plano piloto) da seguinte forma:
“Os artistas brasileiros, os escritores brasileiros, seus poetas de todos os âmbitos e artes estamos mesmo aparentemente por baixo. Fomos postos para fora do proscênio, da assembléia dita democrática. Mas queremos é mesmo estar fora do círculo pois saltamos, com esta revista, dessa geometria. Estamos fora de todos os lados, da esquerda, da direita, do centro e de suas mais que maquiavélicas misturas. Estamos resolutamente de fora. ... Precisamos, portanto, emanar o ímpeto do sonho, fazê-lo matéria e matérias do espírito. Reportagens poéticas, sutis curvaturas de sentido, a foto de ângulo impossível: rediagramar as páginas e as coisas. Transmitir o que está acontecendo e fazer aquilo que não ia acontecer, acontecer no delírio prático da arte. Criticar a ausência e o afastamento da mídia, geral, imposto, tiranizante de toda a literatura, arte e cultura brasileiras. Abrir uma nova fronteira a partir de Fortaleza, Ceará, Nordeste, Brasil, América Latina. De forma nenhuma aderir aos já totalmente desmoralizados padrões e conteúdos da arte, da literatura que se julga dominante. ...”
O projeto foi levado a sério, diria que, quase até as últimas consequências. Embora seja uma revista notoriamente de literatura, abriu-se para outras artes, principalmente a fotografia e a elaboração gráfica.
A partir de um formato cheio de arestas, triangular, a simular uma vela de Mucuripe, torna-se efetivamente uma revista-objeto, com toda materialidade explicitada, da qual não sabemos direito nem como abri-la, muito menos por onde começar a lê-la.
A diagramação inusitada de suas páginas, aliada a profusão de cores e os ângulos improváveis de suas fotos, tornam a leitura dos textos um exercício de superação, como se o tempo todo ela nos dissesse: “se você acha a leitura de poesia difícil, vamos ver como você se vira agora”.
Em alguns momentos, a meu ver, aquela “estrutura” buscada no plano piloto da poesia concreta se revela, como a apreensão de um ideograma. No processo de composição das páginas, as várias coisas, imagens, textos, reunidos, não produzem uma terceira ou quarta coisa, mas sugerem uma relação fundamental entre elas: o caos magnífico. Aquele tipo de caos, citado por Niestzche, onde podemos perceber uma ‘estrela cintilante’.
É um projeto de exuberância neobarroca (para usar uma palavra do momento), onde as “noções tradicionais de princípio-meio-fim, silogismo” tendem a desaparecer e são superadas por uma outra organização, como queria a poesia concreta, “poético-gestaltiana”, visual e táctil. Não estou querendo dizer com isso que a revista ‘concretize’, ou se paute, pelos anseios da vanguarda concretista, e sim que em muitos momentos a resultante oferecida pela revista soa-me como o mais próximo da vanguarda entre as revistas literárias disponíveis.
Mas, no que se refere aos textos poéticos apresentados pela revista, os versos são mantidos (versos brancos, mas ainda versos), os textos não são explodidos em suas formas, diria, mais convencionais. A inovação na revista se dá, a meu ver, mais no campo gráfico, espacial e visual, do que propriamente literário. Mas, isso não é pouco, pois uma revista que se produz como uma obra (com a força criativa que ela ostenta) gerada fora dos grandes centros de produção, tanto econômico quanto estético, deve ser celebrada e, no caso, relembrada.
Há poesia e há prosa em suas páginas, de autores que não trafegam (em sua grande maioria) no circuito editorial do ‘sul-maravilha’, e brasileiros em ampla maioria.
Para concluir acrescento que, pelos exemplos tomados neste questionamento, devemos assumir que o papel do leitor enquanto consumidor, embora ativo e produtor de sentidos, é sempre mediado pela possibilidade de acesso a obra, e quando o acesso se dá, a boa recepção -ou não- da mesma é sempre colorido, e matizado, pelo repertório acumulado pelo leitor/consumidor.
E se já não estamos mais em época de vanguardas, e seus doutrinamentos, torna-se mais importante ainda a proliferação deste campo privilegiado para reflexões e criações literárias e estéticas que são as revistas.
[1] Campos, A., Campos H., Pignatari, D. “Plano piloto para poesia concreta”. In: Teoria da poesia concreta. São Paulo: duas Cidades, 1975. Pág. 7
05 julho 2010
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