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02 março 2010

Os caminhos da poesia: como chegar efetivamente ao leitor?


[Karla Melo (Calibán), Antonio Cicero, Márcio-André (Confraria), André Vallias e Patrícia (Calibán)]

A questão acima foi o mote para o diálogo em torno do lançamento na Livraria Travessa. O texto enviado pelo Affonso Romano de Sant’Anna, e lido por mim, foi uma instigante isca mordida por quase todos os presentes, o que tornou o ausente Affonso mais onipresente do que ele poderia imaginar. Ele foi, inclusive, chamado “jocosamente” de Santo Romano pelo brilhante e hilário Tavinho Paes – que, depois de responder a cada item levantado por Affonso, me pediu uma cópia do texto.

Aos poucos irei me lembrando dos comentários feitos por cada um dos poetas convidados. No momento, basta dizer que o único que trouxe um texto pronto e, portanto, não entrou no mérito das questões levantadas pelo Affonso foi o mais que lúcido poeta André Vallias.

André leu o texto abaixo e terminou recitando sua resposta/poema presente no livro, que por sinal é um show de síntese, informação e erudição. Vale conferir.


***

"É um prazer poder estar aqui, entre poetas ilustres, numa tradicional livraria carioca, para o lançamento de um livro que nasceu de uma bem-sucedida ação na Internet. Agradeço a Edson Cruz, idealizador da ação e do livro, às editoras Confraria do Vento e Calibán pelo convite.

Devo confessar, todavia, que recebi com ceticismo a idéia do Edson de passar para as páginas de papel a iniciativa que se realizava com tanto sucesso em seu blog Sambaquis.

Quando ele, entusiasmado com a variedade e qualidade das respostas que estava recebendo para o questionário que enviara aos poetas, perguntou-me sobre o que achava do projeto de se fazer um livro com o conteúdo, desaconselhei categoricamente e sugeri que fizesse um site, com uma estrutura de banco-de-dados mais eficiente do que a de um blog comum, que facilitasse ao internauta a visualização dos poetas, que não o limitasse em quantidade de páginas, etc.

Vícios do meu ofício de desenhar sites. Idiossincrasias de um poeta cuja primeira publicação não se deu através de um livro, mas por meio de uma exposição, não muito longe daqui, por sinal, na Galeria Macunaíma/FUNARTE, que pela primeira vez abria espaço para a chamada “poesia visual”.

Constato agora que estava errado. Dificilmente Edson alcançaria repercussão igual àquela que está atingindo com o lançamento deste livro, se tivesse dado ouvidos a este desastrado conselheiro digital. Um claro e irrefutável atestado de que o livro, apesar de morto, continua muito vivo!

Mas me pediram para falar sobre “Os caminhos da poesia: como chegar efetivamente ao leitor?”

Não posso ver ou ouvir a palavra “caminho” sem que não me venha à lembrança os versos do admirável poeta espanhol Antonio Machado. Alguns de seus “Proverbios y Cantares”, do livro “Campos de Castilla”, reunindo poemas escritos entre 1907 e 1917, contêm algumas das mais belas e concisas reflexões poéticas sobre o tema. Tomo a liberdade de ler dois dos 53 que compõe este primeiro ciclo de provérbios e cantares: o de número 29, o mais conhecido deles, e o de número 44:

XXIX

Caminante, son tus huellas
el camino, y nada más;
caminante, no hay camino:
se hace camino al andar.
Al andar se hace camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante, no hay camino,
sino estelas en la mar. .

XLIV

Todo pasa y todo queda;
pero lo nuestro es pasar,
pasar haciendo caminos,
caminos sobre la mar.

Incrível a simplicidade, a força, a profundidade desses poemas. E, no entanto, por mais admiráveis que os ache, assusta-me a inexorabilidade de suas imagens.

Quando reuni, em 1997, uma primeira coletânea de poemas na Internet – ou melhor dizendo, quando criei, há 13 anos, um poema-site que coligia de forma não-linear adaptações para web de poemas compostos desde 1988 no computador, e alguns concebidos originalmente para os recursos interativos e multimídia então disponíveis na Internet, dei-lhe o título “A leer – Antilogia Laboríntica”.

A obra foi inaugurada numa exposição de “Arte e Tecnologia” em São Paulo. Entre os textos que distribuí pelas telas de navegação, para orientar/instigar o percurso por demais enigmático para os padrões usuais, o seguinte, que remete à inusitada homografia entre as palavras de dois idiomas – “leer” (infinitivo do verbo “ler” em espanhol) e o adjetivo alemão “leer” (= vazio) – e termina com uma citação de Otavio Paz, extraída de seu ensaio “El Mono Gramático”:

para se ler ou talvez
leer (de laere, lari)
no alemão = vazio:
etimologicamente, aquilo
que de um campo ceifado
pode ser ainda recolhido
(aufgelesen): de lesen
= catar, separar,
ler... ou talvez
“caminar: leer un trozo
de terreno, descifrar
un pedazo de mundo.
la lectura considerada
como un camino hacia...”

Numa outra tela, os versos do poeta judeu-romeno de língua alemã Paul Celan:

lies nicht mehr – schau! não leias mais – vê!
schau nicht mehr – geh! não vejas mais – vá!

Mais adiante, uma referência à homofonia entre a expressão “a leer” (para se ler) com o verbo francês “aller” (= ir). (Mais adiante ou anteriormente, pois como a navegação do site ocorre de modo “não-linear”, não há como determinar de antemão o que vem antes ou depois). O termo “não-linear”, aliás, talvez indusa a um equívoco: de que se trate de algo que prescinda ou renuncie ao “linear”, quando o que se dá é, mais precisamente, uma pluralidade de trajetos.

Talvez devessemos falar de pluri- ou multi-linearidade.

Há uma palavra que define melhor o campo de múltiplos trajetos, de pluri-linearidade de uma obra dita “não-linear”: “circuito” que vem do latim “circuire”, andar em círculos, uma palavra que foi apropriada pela engenharia elétrica e de computação, embora a usemos sem desconforto na expressão “circuito cultural”.

É curioso como a civilização ocidental cultivou um preconceito em relação à circularidade: fala-se em “círculo vicioso” sem jamais se mencionar a perversidade de uma única reta; perdidos numa floresta, que sensação mais dramática do que constatarmos que estamos andando em círculos?; sem falar no implacável “circulando, circulando” que uma autoridade policial costuma dirigir aos desocupados, com aquela fatalista certeza de que todos voltarão para importunar a ordem pública…

Suspeito que isso decorra da extrema aceleração do processo de leitura propiciada pela disseminação do alfabeto fonético – essa impressionante criação de mercadores fenícios de 3 mil anos atrás –, alavancada pelo aprimoramento da tecnologia da impressão – os tipos móveis de Gutenberg, há 570 anos –, etc. etc.

Nos tornamos leitores compulsivos e silenciosos, obcecados por chegar ao fim da frase, ao fim do parágrafo, ao fim da página, ao fim do capítulo, ao fim do livro.

Acredito que a poesia, aquém e além de qualquer procedimento tecnológico, aquém e além de qualquer literatura – porque os circunda e permeia – seja uma eterna resistente ao inexorável “sempre em frente” da linha reta…

Nessa altura, vocês já devem ter percebido que dei voltas e mais voltas sem chegar ao tema deste debate. Assim é:

“Caminante, no hay camino:
se hace camino al andar.”

Passo agora à leitura de minha contribuição ao livro, ou melhor, à resposta que dei à primeira pergunta de Edson Cruz: aquela que deu título ao livro cujo lançamento motivou este prazeiroso encontro."