Koellreutter chegou ao Brasil em 1937 e por aqui ficou, trazendo consigo uma formação tradicional européia. Foi aluno de Kurt Thomas e Hermann Scherchen e conseguiu aliar o rigor clássico de um Hindemith com as experimentações harmônicas e formais do dodecafonismo. Essas informações chegaram até mim aos poucos. No começo, eu só sabia que ele havia dado aulas para o Tom Jobim e para outro Tom, o Zé.
A lista dos músicos e compositores que foram seus alunos aumentou muito à medida que minhas informações musicais se solidificavam. O histórico grupo Música Viva, Guerra Peixe, Cláudio Santoro, Edino Krieger, Olivier Toni, Severino Araújo, Moacyr Santos, K-chimbinho, Cipó. Todos esses, e muitos mais, foram seus alunos. E agora eu estava ali na sua frente, meio penetra, meio sem saber direito o que estava buscando, muito menos o que iria encontrar. Estavam muitos na sala, mas o silêncio era reverencial.
As certezas que não deixei para trás, ao entrar naquela sala, seriam todas relativizadas pelo velhinho que já havia morado no Japão e na Índia. Da Índia ele contou que, após chegar com a esposa ao hotel, foi direto para uma apresentação de música clássica indiana. Era final de tarde e, depois de muitas horas no avião, ele estava muito cansado. Ouviu durante uma hora. A audiência quase que não se mexia, em transe. Ele não aguentou. Cochichou para a esposa que ia dormir. Ela ficou e só retornou ao hotel na manhã seguinte. O concerto durara a noite toda. Havia sido uma manifestação estética totalmente diferente daquela vivenciada por ela até então.
O primeiro conceito insinuava-se sutilmente: Estética: “Estética é uma parte da filosofia que estuda as condições e os efeitos das atividades artísticas. É um estudo racional e fenomenológico da expressão artística, quer eventuais possibilidades (estética objetiva); quer evento ou diversidade de emoções e sentimentos que suscita no homem (estética subjetiva)”. E complementou dizendo que não existiria uma objetividade absoluta; toda objetividade teria um mínimo de subjetividade.
Para Koellreuter havia dois tipos de estética: a estética relativista e a fenomenológica. Na relativista parte-se da premissa de que os componentes da composição artística não podem ser considerados independentes um do outro. Baseia-se no conceito da física de que o tempo e o espaço são grandezas inter-relativas. Na fenomenológica estuda-se a sensação causada no ouvinte por uma ocorrência musical (que é tudo o que ocorre numa partitura, até mesmo um ruído).
Concluiu o raciocínio dizendo que cada artista tem sua estética pessoal e com ela constrói seu estilo. Um artista que não tem estilo próprio não é um artista. O artista é um aventureiro.
O segundo toque também foi dado sutilmente. A noção de tempo é tudo e, também, não é absoluta. Paradoxal. Noção basilar na música, se ela mudar tudo mudará. O que mudará exatamente? A forma como será criado, como será executado e como será apreendido o discurso musical. Isso mesmo: discurso. Ele foi logo dizendo que embora se costume dizer que a música é uma linguagem, ela em essência não o é. Ela se serve de uma linguagem para criar o seu discurso. Para mim parecia ser a mesma coisa, mas ele insistia que não era.
Pediu para que anotássemos outra definição: “polissemia é um processo de multisignificação onde cada letra é um ícone intersemiótico que explode em inumeráveis significantes”. Falou pausadamente para que pudéssemos anotar. Ele parecia fazer questão de que anotássemos, sabendo que tantas informações que nos passaria necessitariam de tempo para serem digeridas.
Mas o que teria a ver esse conceito aparentemente linguístico com a música? Ele fez que não ouviu e continuou… a música é uma arte que faz uso de uma linguagem, disse, e tascou mais uma definição para ser anotada:
“Arte é a atividade que supõe a criação de sensações, emoções e estados de espírito, em geral de caráter estético, assim como processos sensoriais conscientes que proporcionam ao ser humano o conhecimento e a vivência do mundo externo.”
Ele ligava um conceito no outro. Pensava feito o desenho de um fractal.
Mas, professor, voltemos à linguagem. A música, então, não é uma linguagem? “Não”. E toma outra definição.
“Entende-se por linguagem um sistema de signos estabelecidos naturalmente ou por convenção, que transmite informações ou mensagens de um sistema cibernético (sistemas cibernéticos podem ser orgânicos, sociais, sociológicos, técnicos, ecológicos). Por exemplo, a linguagem dos animais; dos computadores; dos sinais de trânsito; linguagem científica, artística e outras.”
Cacilda, sistema cibernético?
Ele estava dizendo (eu acho) que a música usava um idioma, o idioma musical, e que os idiomas musicais são linguagens específicas. Na estética musical o idioma usa um vocabulário e uma sintaxe. O vocabulário chama-se repertório. E a sintaxe? Não perguntei... me empedrei.
Os idiomas são abraçados pelo o que ele chamou de estilo. Continuou o raciocínio, para mim um tanto nebuloso, dizendo que os estilos se caracterizam pelos idiomas que utilizam. Mas o que seriam estilos? Claro que ele não iria deixar passar um conceito sem destrinchá-lo. Esta, notei, era uma característica de sua forma de pensar e de ensinar. Partia sempre do conceito, fazia um raio-X dele e depois tirava suas consequências lógicas (e ilógicas). Bem alemão, pensei comigo.
Lembrei de uma definição de Hitchcock sobre estilo que não me atrevi a falar em voz alta: “Estilo é plagiar a si mesmo”. Se essa definição fosse verdadeira, então, Jorge Benjor seria o mestre do estilo. Seria um verdadeiro artista. E realmente ele o era, pensei comigo, mas continuei calado.
O velhinho tinha me fisgado e o melhor a fazer era continuar a ouvi-lo. E ele já estava definindo o que seria estilo:
“Entende-se por estilo, um conjunto de características que une e ao mesmo tempo separa a produção artística de países ou e artistas (que são personalidades individuais). Une e separa ao mesmo tempo.”
Para ele havia dois tipos de estilos. Os inovadores e os restauradores. Nesse momento fez questão de frisar que gêneros não devem ser confundidos com estilos. Por exemplo os gêneros da música clássica e da música popular não deveriam ser confundidos com estilos. Agora ele parecia um Ezra Pound pensando a música.
Os estilos inovadores apresentavam sempre um novo repertório e uma nova sintaxe, um novo repertório de signos e sinais. Mas o que era sintaxe, mesmo? E lá vai ele definindo o que é signo e o que é sinal. Eu cansei de anotar. Deixei pra lá…
Os estilos restauradores ou restaurativos eram aqueles que revalorizavam o idioma e a sintaxe tradicionais.
Já era quase meia-noite e o velhinho não parava. Alguém veio lhe avisar que já estavam para apagar as luzes. Ele ficou decepcionado, mas conformou-se. Continuaríamos na próxima semana. E não se esqueçam, disse, questionem tudo, tudo. Ele gostava mesmo desse exercício.
Fui pra casa naquela noite pensando em frases e conceitos enunciados com um sotaque arrastado nos erres. Tudo bem, eu teria uma semana pra digeri-los.
“Não existe erro absoluto em música. Pode haver erro relativo ao estilo da época.”
“Aprendemos as regras tradicionais para poder transgredir ou contrariá-las.”
“Devemos aprender a questionar tudo, até nossas próprias opiniões.”
“O artista deve abrir caminhos e novos modos de pensar.”
“Ao se criar uma obra de arte muda-se o modo de ver toda a sequência da arte até aquele momento.”
Depois dessa aula inaugural, acompanhei seu curso por mais um mês. Ouvi suas composições e o assisti regendo várias de suas peças no auditório do Masp. Em uma delas, a partitura do pianista era uma esfera transparente que carregava algumas sequências de símbolos coloridos, triângulos ou círculos que se mesclavam com outros entrevistos na curva da esfera. Uma loucura.
Eu, que sempre havia sido fascinado pelas melodias, ouvi estarrecido de Koellreuter que nós vivíamos em uma ditadura da melodia.
A rádio Cultura, lembro, fez alguns programas sobre ele que são históricos. Tenho tudo gravado.
Koellreuter faleceu em setembro de 2005 e, hoje, quase não ouvimos mais falar dele. Em época de muita confusão conceitual e sonora como a que vivemos, seu método de ver as coisas e de ensinar faz muita falta:
“1) não há valores absolutos, só relativos;
2) não há coisa errada em arte; o importante é inventar o novo;
3) não acredite em nada que o professor disser, em nada que você ler e em nada que você pensar; pergunte sempre o por quê."