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13 novembro 2010

A Luz da Fonia



Não sou tão velho assim como para me lembrar de coisas que eu não disse, mas lembro-me perfeitamente de duas de que eu falei: dos sonhos colectivos que me habitam, entre eles, uma idéia de sermos um só pela língua, e de ter dito em Brasília que a CPLP não funciona para a cultura. Dizer em foro adequado que algo não funciona é porque queremos que funcione, porque uma maneira de fazer com que as coisas não funcionem é dizer que elas funcionam quando não. Sabendo que a Lusofonia é uma realidade feita de vários sonhos, mas não tanto assim o inverso, isto é, a Lusofonia é um sonho feito de escassas realidades, de parcas coisas que acontecem, antes que eu me esqueça, dou fé aqui de que algo mudou e de algo que está a acontecer, ou já aconteceu. O que presenciei há poucos dias no Rio de Janeiro fez-me crer que a língua, que não é palpável senão na boca e no papel, bem pode ser um enorme campo de abraços. A nossa língua precisava de luz própria, e esta se fez, como a queria Goethe. Para já, que um evento se chame Encontros Culturais de Língua Portuguesa, foi um achado. O fenômeno contém tanta alegria e futuro em si, que, agora, impõe uma serena reflexão. Tudo porque o sucedido nesses encontros nos ultrapassou, e nos ultrapassou porque o resultado foi imprevisível. Os ECLP, finalmente, por aquilo que vi e ouvi, têm um quê de grandeza que vai além da política, da diplomacia, dos interesses, dos países e das nações, para entrar no domínio do humano, essa coisa perene que se crê eterno quando chega ao poder e quando exerce o poder sobre o seu semelhante. Eu vi humano que quer ser humano como outro humano qualquer desconhecido, desparecido, sendo apenas humano porque fala. Esses Encontros fizeram-me perceber aquilo que todos nós sabemos, mas que, estranhamente, ninguém tinha percebido até hoje, isto é, que o humano fala porque tem uma coisa que todos os animais têm, mas não a usa como nós, a língua. Até hoje, sempre quando se falou da língua e da fala e da Comunidade da Língua Portuguesa, viu-se muitos tratados e artigos, muita boa intenção, inclusive, mas não se deu importância a um músculo flexível e gorducho e por causa da qual a gente diz que namora, a língua. Quando uma pessoa diz que namora, está a dizer nada mais nada menos que ela é humana, de certeza. O resto é conversa, diz-se no Brasil. O resto é história, diz-se em Portugal. O resto é cantiga, diz-se por aí. Nesses Encontros também, A língua, iluminadamente, veio precedida de duas palavras, e que palavras: Encontro e Cultura. Ora, não sou tão velho assim, mas lembro-me perfeitamente de ter dito que a idéia de uma Comunidade de Países devia ficar pelos sapatos e delegar a Cultura e os Encontros à sua independência de gestão informal e periférica, simplesmente. Aconteceu. Os ECLP, que tiveram lugar no Rio de Janeiro em Novembro de 2010 é o tal evento que não é vento, como se costuma dizer: vi gente, simplesmente gente, sendo, simplesmente, porque era e porque o outro também era. Vi um babel de diferenças, de pessoas felizes só porque não precisavam de intérpretes para dizer o que todo o mortal deve dizer ao menos uma vez na vida, eu te amo. As línguas português, assim, sem erro de ortografia, são a razão da Lusofonia. Mas a Lusofonia tem sido um projecto político baseado no idioma. Está certo, mas nós, de Cabinda a Lisboa, da Amazônia à ilha do Sal, temos todos juntos uma constelação de mais de quatrocentos idiomas, porém uma língua comum em cada lugar, o português, que perfaz o universo das línguas português, diverso no seu sotaque e múltiplo na sua semiótica. Hão de compreender, então, o meu fascínio pelo podermos dizer eu te amo e sermos correspondidos sem outro intermediário que não seja a língua? Aconteceu, e aconteceu porque, pela primeira vez (falando dos nossos Estados), o centro não era a mesa e o tecto, mas o palco e o chão. E aconteceu porque o assunto público foi absolutamente privado, (isto é, os casacos e as gravatas ficaram em casa, a rotatividade e as presidências também, e só os povos saíram à rua para linguajar, ah como é preciso), numa altura em que vários eventos privados clamam para serem declarados de utilidade pública (o Teatro tem sido a mãe desses exemplos). Encontro e Cultura, caramba, finalmente junto e a sós. Se isso for investido, institucionalizado, como oficialmente se diz, a língua, que já foi pátria, está prenhe de vir a ser humanidade. E espero não ser suficientemente velho como para não a ver e me retrair.

Mário Lúcio




Mário Lúcio Sousa nasceu no Tarrafal, na Ilha de Santiago, Cabo Verde, em 21 de Outubro de 1964. É músico que você pode conferir em http://www.mariolucio.com/ e autor das seguintes obras: Nascimento de Um Mundo (poesia, 1990); Sob os Signos da Luz (poesia, 1992), Para Nunca Mais Falarmos de Amor (poesia, 1999), Os Trinta Dias do Homem mais Pobre do Mundo (Ficção, 2000 – prémio do Fundo Bibliográfico da Língua Portuguesa, 1ª edição), Adão e As Sete Pretas de Fuligem (teatro, 2001), Vidas Paralelas (romance, 2004). É também autor de diversas peças de teatro encenadas em Cabo Verde e no estrangeiro.
http://www.myspace.com/marioluciosousa