22 julho 2020

OVO















       Como voltar a um lar
       que nem sequer existiu.

       Fazer o movimento pendular.

       Recuperar a mãe
       que me pariu?






[Canal do Arruda no Recife. Foto by Diego Nigro]















21 julho 2020

APOLOS












Nenhum pássaro canta
o sofrimento.

Os homens, sim.

Os cisnes cantam maravilhosamente
antes de morrer.

Os homens berram e choram,
mesmo que tenha sido o bode.


Estamos mais próximos dos bodes
do que dos pássaros.

Somos rascunhos esquecidos
dos hiperbóreos.






20 julho 2020

OLVIDO
















Somos mortais esquecidos
de si.

Gurdieff colocava despertadores
espalhados pela casa.
Tocavam em horários diferentes
e ele se lembrava que os havia
colocado para não esquecer.

Depois, esquecia-se de tudo
até o próximo alarme.

Só os imortais não se esquecem.
São os mais infelizes dos seres.



[Relógio, by Vladimir Kush]










19 julho 2020

DOMINGO DE 1964
















Naqueles dias
a paisagem gritava
silenciosa.

Um câncer feroz
dilacerava minha infância
mas eu não fazia ideia
ainda.

Só a ausência
me carregava
pela mão.

A avenida Tiradentes faiscava.
Quartel de um lado,
tropas a descansar
de outro.

No meio de tudo,
um menino atento
ao mundo seguia
mudo.

O silêncio de minha mãe
era meu único amigo.
Ouriço encravado
doía, fundo.








[Avenida Tiradentes, foto do Acervo/Estadão]



















18 julho 2020

EPIFANIA
















   um girassol ilumina
   o silêncio

   das coisas sem voz
   dos seres sem vez

   de tudo que nunca
   veio a ser




[Imagem: Sunflowers, Vincent van Gogh (Metropolitan Museum of Art)]













17 julho 2020

ARABESCOS
















crianças equilibram borboletas
e planetas.

os homens enxugam copos
com sua dor.

mulheres geram bentos
e arrebentos.

os gafanhotos devoram os verdes
da paisagem.

profetas desenham desígnios
no deserto.

os bêbados balbuciam coerências
borrachudas.

poetas cadenciam tudo
o que tocam.

a natureza redesenha o mundo
em fractais.






16 julho 2020

MELANCHOLIA




















A criação de Homero.
A eloquência ágrafa
de Sócrates.
Os desenhos de Leonardo.

As suítes sublimes de Bach.
Os píncaros de Beethoven
e seus quartetos de corda.
O spleen e seus poetas visionários.

A viagem babélica de Joyce.
Os múltiplos sentires de Pessoa.
O Grande Sertão de Guimarães.
As obras-primas de Tarkovski.

Podem significar pouco.

Uma criança esquálida tomba
neste instante
feito árvore na floresta.

Não existe mais.
Nunca existiu.

Nenhuma arte a tocou.
Nem o corvo do Alan Poe.

Só ela que me toca
faz toc-toc
mostra os dentes
neste poema quase
transcendente.



[Gravura Melancolia I by Albrecht Dürer, 1514]








15 julho 2020

GONFOTÉRIOS NA PAULISTA
















quando os helicópteros tomarem os céus
de assalto e não houver espaço para mais arranha-céus
arranharem a nervura dos pés de Júpiter

sairei pela Paulista nu e mijarei na vitrine de todas
as lojas de roupas masculinas.

quando Hollywood invadir a tela
de meu micro e não houver mais tempo para que o ouvido
escute o soar das libélulas em cópula

me tornarei um vírus paraguaio e sedento a infectar
jovens virgens e sardentas.

quando tudo que criamos der em nada
e meus sonhos mais malucos couberem num grão
de chip Made in India

vestirei minha máscara de gonfotério e sairei
por aí a procurar alfaces cultivados em bacias d’água.

tudo isso farei ao som de um mantra tão exótico
que a solidão dos seres vibrará em uníssono supersônico
e arrasará o que ainda restar de escombros e sonidos.







14 julho 2020

KOAN

























A palavra escrita é o túmulo
da palavra
(f)alada.

A palavra dita é uma súmula
da palavra
pe(n)sada.





[Black Koan, 1990 – by Liliane Lijn]












13 julho 2020

ZOOM

















        Carpe diem.
        A vida é
        curta.

        Carpas riem.
        O azul do dia
        zune.

        O céu refletido
        nas águas.
        Lume.






12 julho 2020

INSÍGNIA



























    habito
    este mundo

    ave do paraíso
    sem pernas

    rascunho
    que não pousa

    nunca












11 julho 2020

PALIMPSESTO














          toda poesia já
          escrita

          não se equipara
          a toda poesia

          inscrita
          a poesia jaz






Imagem:  “Palimpsesto”, de Denis Brown - acrílico sobre papel, 1993 (British Library).








10 julho 2020

O MITO






Quando a noite vem cobrir
o pensamento
feito um urso polar a abraçar
a sua amada
agradeço à dádiva absurda
de ainda estar vivo.

Lembro-me da rara insensatez
dos Gregos
ao postularem que seus homens
mortos ainda jovens
seriam mais amados
pelos deuses.

O fato é que não 
escolhemos como morrer
nem os deuses que porventura
virão a nos receber.

O que nos cabe - se formos
sábios - é não aspirar
à vida imortal
e, como Píndaro, esgotar
o campo do possível.
Viver o instante que nos redime
e glorifica.


O agora, a mãe
geradora de todos
os futuros
impossíveis.





[Imagem: poema de Augusto de Campos]