1) O que é poesia para você?
Tenho pensado na poesia como um lugar (ou não-lugar) de sentidos incessantes, palimpsestos do sensível na frincha da significação, um lugar em que a poesia resiste independentemente do “poético”, do “poema” e do “poeta”. Poesia furtada da literatura, não figurada, mas que assume o seu sentido de ‘poesia’ como um sentido sempre por fazer. Esse lugar é antes da própria poesia, sem sê-lo propriamente poesia, mas distendido em todas as artes. Um lugar de tartamudez e prenhe de silêncios, na fresta da língua: ali, aqui...
2) O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?
Bashô disse algo sobre isso (veio-me isso, aceito e cito de memória): procure o que os mais velhos não encontraram.
3) Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que destas escolhas?
Hoje (também no sentido de “agora”) uma resposta para essa pergunta:
1) Arturo Carrera (poeta argentino), por causa do seu escrito con un nictógrafo, poema-livro que se compõe na escuridão para o leitor e deseja oferecer-lhe instantes luminosos, iniciando-se com uma entrega: “el escriba ha desaparecido”. Desorbitado, no lugar em que a linguagem está para todos, lugar vazio, no qual também estão as palavras, talvez distraídas, talvez atentas, mas na sua condição ante todos nós, na inadequação permanente entre significado e significante, no embaraço quando se quer atribuir significado ao desconhecido, conforme Lévi-Strauss: “o universo significou bem antes que se começasse saber o que ele significava...”.
2) Édouard Glissant, poeta, antropólogo e filósofo antilhano, autor de um livro-conferência bastante intrigante chamado Introdução a uma poética da diversidade (o único com tradução brasileira, feita por Enilce Albergaria Rocha) e, principalmente, Poétique de la Relation. Glissant, autor que discutimos muito esse ano em aulas instigantes com o professor e tradutor Maurício Mendonça Cardozo. Glissant põe em jogo muitas questões, mas o que mais repercutiu no meu trabalho poético, talvez pelo livro que escrevo no momento, foram suas idéias em relação ao épico. Ajudaram-me a concluir que pode ser possível escrever um épico hoje, mas não um épico no seu formato clássico, cujo movimento, segundo Glissant, movimento auto-afirmativo de culturas e línguas que apreendeu (cooptou) e, portanto, centralizou nesta forma quase todas as expressões e gêneros da antiguidade. Pode-se com isso perceber esta formação “atávica” das culturas, ao lado de procedimentos que levaram ao aniquilamento das línguas, por exemplo. E hoje, em meio à multiplicidade, à diversidade de expressões e formas, fora o que isso tenha de simulacro, de mentira, de ninho de nadas, e por isso, só por isso, tem que ser dito com cautela o que disse em relação ao épico, pois faz parte da formação histórica das culturas, mas, enfim, quero dizer que hoje não faz mais sentido um épico clássico, a feitura de um épico clássico, e abandonemo-lo à legitimidade histórica. Um épico contemporâneo, no meu entender, só pode ser de força centrífuga, num movimento para o fora, para o depois dos gêneros e da unidade, um épico fractal, feito de múltiplas implosões descentralizadoras – talvez eu o chamasse épico por amor ao épico clássico.
3) Raul Bopp, certamente um precursor da etnopoesia no mundo, lançou mão de procedimentos que merecem estudo mais cuidadoso, verdadeiras filigranas da fala. Bopp era um mestre na seqüência de imagens, espécie de orquestração imagética que propicia o clima ideal para o ouvido pensante, tanto na oralidade imagética de “Cobranorato” quanto na genialidade dos jogos sonoros em poemas de menor fôlego. Basta ver/ouvir “Caboclo”: (...) “O escuro apaga as árvores / Fogo desanimou na cozinha / Mia um gatinho magro no terreiro: M-i-s-é-r-i-a” (...). A sugestão da onomatopéia (“miau”) da voz do gato, mas não inscrita, revela a cena cabocla miserável. É a semântica do som. E som é para ouvir.
Dia 24/06, domingo, das 16h às 18h:
RICARDO CORONA
Ricardo Corona atua
nos seguintes campos: poesia contemporânea brasileira e
hispano-americana, estudos de relação entre as áreas artísticas
(performance, poesia sonora, artes visuais), tradução, linguagem e
cultura. É autor dos livros ¿Ahn? (Madri, Poetas de Cabra, 2012), Ahn?
(Jaraguá do Sul, Editora da Casa, 2012), Curare (Iluminuras, 2011 –
Premio Petrobras), Amphibia (Portugal, Cosmorama, 2009), Corpo sutil
(2005), Tortografia, com Eliana Borges (2003) e Cinemaginário (1999),
publicados pela Editora Iluminuras. Na área de poesia sonora, gravou o
CD Ladrão de fogo (2001, Medusa) e o livro-disco Sonorizador
(Iluminuras, 2007). Organizou a antologia bilíngue (português-inglês) de
poesia Outras praias / Other Shores (Iluminuras, 1997). Com Joca Wolff,
traduziu o livro-dobrável aA Momento de simetria (Medusa, 2005) e a
coletânea Máscara âmbar (Lumme, 2008), de Arturo Carrera (com posfácio
de Raúl Antelo) e, esparsamente, publicou traduções de Henry Michaux,
Gary Snyder e William Carlos Williams. Com Mario Cámara, Daniel Link,
Reinaldo Laddaga, Romina Freschi, Nora Domínguez, entre outros
estudiosos da literatura hispano-americana, participa do livro La poesía
de Arturo Carrera – Antología de la obra y la crítica, organizado por
Nancy Fernández e Juan Duchesne Winter (Instituto Internacional de
Literatura Iberoamericana/Universidade de Pittsburgh, 2010). Tem ensaios
e poemas publicados nas revistas Poiésis (Brasil), Tsé-tsé (Argentina),
Rattapallax (USA), Caligramme (França), Separata (México) e nos jornais
Suplemento Literário de Minas Gerais (Brasil) e caderno Mais! (Folha de
S. Paulo). Com Eliana Borges criou as revistas de poesia e arte Medusa
(1998-2000) e Oroboro (2004-2006) e com Joana Corona o jornal Vagau
(2011). Desde 1996, apresenta trabalhos performativos que envolvem
música eletroacústica, artes visuais e poesia sonora, dos quais,
destacam-se Carretel curare (2011) e as parcerias com Eliana Borges,
Tsantsa (2011), Alfabeto móvel (2010), Nomos (2009), Tambaka (2008) e
Jolifanto (2007).