22 fevereiro 2008

aurora

neste instante onde 
meu ser se compraz
ouve-se o marulho 
do tempo a tecer fios 
do carma em névoa  
sutis emaranhados
de causas e efeitos

sua voz suave a 
sibilar no ouvido 
dos seres a sussurrar 
que no espaço infindo 
desta hora
de hoje 
do amanhã
ou de outrora

há algo que quer
pode
deve
triunfar

17 fevereiro 2008

A casa do ser



sou a inescapável casa que habito
a fonte que busco iluminada
o paraíso eterno e impalpável
o eco que retorna após o grito

sou o lugar que tanto almejo
o instante que entoa o infinito
o estar na ação que se conclui
o bem que neste mundo entrevejo

sou aquele que é já se fazendo
partícula por quem o todo se apaixona
a vida que permeia o ambiente
sombra que acompanha o movimento

um bom lugar será que sou,
ou só preencho a casca que me restou?

13 fevereiro 2008

Coisas que aprendi com Koellreutter



Já contei em minha coluna no Cronópios como me enfiei numa sala de aula do flautista e professor alemão (ou será que era suíço?) - que morou até o fim de seus dias no Brasil ensinando e influenciando dezenas de músicos, compositores, maestros e professores – Hans-Joachim Koellreutter.

Era um velhinho muito inspirador, e insistia o tempo todo que precisávamos questionar a tudo e a todos: principalmente aos professores.

Ele dizia que a função do artista é transmitir, informar, através de sua arte, as grandes idéias do momento em que vive. E as grandes idéias, os pilares da cultura do nosso querido século 20 (aliás, as aulas anotadas aconteceram no século passado… he he), foram: o conceito de tempo; a superação do dualismo e a superação da causalidade.

Tempo, para ele, era a questão central. É fácil de entender o porquê, pois trata-se de um músico e na música esse é o xis da questão. Se o conceito de tempo muda, tudo mudará na música. E sabemos (ou pensamos que sabemos, mas não colocamos em nosso dia-a-dia) que depois de Einstein e de Niels Bohr a noção de tempo como um fluxo constante do passado infinito até o futuro infinito não existe mais.

O tempo deixa de ser um fator puramente físico para ser uma forma de percepção, ou seja, o tempo não pode ser critério de avaliação porque ele muda de pessoa para pessoa. Os fenômenos do tempo como os da cor dependem da percepção. Esse redimensionamento do conceito de tempo, para ele, é o tema da música da segunda metade do século 20.

A música reproduz a visão do novo mundo. E nesse novo mundo, com essa nova percepção de tempo, tudo é movimento. No universo não há referenciais fixos, portanto, não se pode querer uma percepção rigorosamente objetiva.

Por outro lado, fomos educados dualisticamente e a música composta na segunda metade do século 20 procura superar esses dualismos. O dualismo é consequência do dualismo que fazemos entre tempo e espaço. Na realidade não existe essa divisão e sim um continuum.

Na música tradicional, ou seja, em 99,999% do que ouvimos supõe-se a existência de consonância versus dissonância; tempo forte versus tempo fraco; modo maior versus modo menor. A nova música transcende esses dualismos. Os contrários são complementares.

Para Koellreutter, a superação dos contrários talvez seja um dos problemas mais urgentes para se construir uma cultura mais humanista. É difícil para nós, mas ainda chegará o momentuum onde não sentiremos mais diferença entre a vida e a morte, a melodia e o acorde, a tônica e a dominante, o bem e o mal, a transcendência e a imanência. Teremos uma forma de pensar e de agir que relacionará os contrários, na formação de um todo.

Na arte, a estética relativista será a base da criação e da fruição artística.

A estética relativista já é a base da composição musical contemporânea. Ela não considera, em princípio, alturas e intervalos absolutos, mas graduações e tendências. Não trata mais de acordes e sim de graus de densidade. Não trata de ritmos e andamentos determinados, mas de graus de velocidade. De mudanças de andamento, de tendências, enfim.

Mas o fato é que nossa cabeça e percepção ainda estão, e agem de acordo, em estágios bem anteriores a esses conhecimentos. Ainda pensamos e ouvimos de forma linear, com começo meio e fim. E ficamos incomodados quando nos é feita outra proposta. Inclusive pela arte, pela música. Ou deveria dizer, inclusive pela vida. Nos defendemos como podemos desses desconfortos. Por isso não ouvimos música contemporânea (que aliás já é música do século passado), ou pior, não sabemos como ouví-la. Não aprendemos. Não queremos.

O que Koellreutter revelava é que os cientistas e os artistas deixaram de ser observadores do mundo e passaram a ser co-autores. E nesse processo de co-autoria a preparação dos espíritos e das mentes para a apreensão de um mundo novo (que alias é velhíssimo, sempre esteve aqui, nossa percepção e compreensão é que foram embotadas) é uma função importantíssima da arte e da ciência.

[Exemplos de escuta para assimilar as idéias de Koellreutter: “Pranam”, de Gacinto Scelsi; “Anaklasis”, de Penderecki; “Tschel”, para sax tenor, de Hespor; “Acronon”, de H. J. Koellreutter]

08 fevereiro 2008

Desfile das campeãs


tempo de carnança,
eis então minha ciranda
pra encantar mulher muzamba

o samba é nome angolês
mas, dizem, quem é bamba
canta até em tirolês

chega mais, vem ver a bagunça
vou mostrar a minha dança
rimar morte com criança

tranformar o que é binário
numa síncope sem lambança
valsa em compasso quaternário

é o jeitinho brasileiro
rolar na ginga
sentir o osso do ritmo

tudo no passo do batuque
regado a samboca, cachaça
rechaça de antigos problemas

baião vem lá de baiano
maculelê sei lá do que
o futuro vamos esquecer

começou a quaresma
somos pó, damos dó
e ao pó vamos voltar

05 fevereiro 2008

Para não esquecer


“Nada é mais importante do que a consciência, que se mantém alerta e proíbe o homem de se apoderar do que deseja da vida e depois acomodar-se, gordo e satisfeito.”

Essa frase é do cineasta russo, Tarkovski, que conheci e passei a amar graças a meu contato com o professor Ricardo Rizek. Lembro-me da primeira vez que o vi. Era a aula inaugural do curso de composição e regência da FAAM. Eu havia me preparado durante um ano para a prova teórica e prática. A prática foi a mais difícil, pois tive que tocar ao violão uma peça do século XVIII. Fiquei nervoso, toquei mal, mas passei. E o tão esperado e desejado curso que não sabia direito o que seria estava começando. Compositor? Regente? Eu? Sei lá, vamos ver...

Bem, mas a aula inaugural seria sobre musicologia, ou algo assim. Interessei-me. E ele começou a falar. Parecia o mago Merlin mais jovem, mas já grisalho e com o cabelo comprido preso para trás da cabeça. Quando terminou seu discurso inaugural eu tinha certeza que havia entrado naquela confusão musical toda só pra conhecê-lo. Não sabia explicar, mas cheguei junto, me apresentei e falei que queria estudar aquelas coisas com ele.

Ele me olhou meio desconfiado e convidou-me para algumas aulas extras que estava dando aos sábados. Compareci, e logo de cara vi que além de pouca gente, só havia alunos do terceiro, quarto anos, alguns já formados. De lá comecei a freqüentar algumas aulas de sexta-feira à noite nos fundos da casa da sua mãe. Chamava-se de Aulas de Estética. Ia até altas horas. Era um turbilhão de informações. Um misto de conhecimento musical, filosófico, tradições antigas, e sei lá mais o que. Tudo difícil de explicar. O homem tinha um carisma danado. Ficava falando, como que pensando em voz alta, e tragando seus intermináveis cigarros. Eu poderia ficar, e ficava, horas e horas ouvindo-o falar. Para acompanhar melhor aquele fluxo de pensamento lembro-me que passei a levar cigarros de cravo e ficava tragando enquanto ouvia aquelas coisas que para mim soavam como revelações.

Qual a relação da música de Bach com a arquitetura daquelas fantásticas catedrais góticas? Parecia loucura, mas ouvindo-o tudo fazia sentido. Como eu nunca ouvira falar antes daquelas relações? Lei áurea? Cacilda! Era um curso de matemática/filosofia e música avançada. Muito mais do que meus parcos conhecimentos poderiam acompanhar.

Eu que pensava que um acorde básico era o que era: a tônica, a terça e a quinta. Não, não! A tríade significa muito mais do que isso, remete-nos a conhecimentos da Ciência Sagrada, a ensinamentos de uma ordem tradicional que o Rizek destrinchava e atualizava de maneira ímpar, mesmo que ancorado nos estudos de René Guénon e outros mestres que não me lembro agora. Para Rizek a tradição era um resíduo não documentário que permeava a tudo e estava velado por nossa pressa e incapacidade contemporânea de mergulhar ativamente no significado profundo das coisas.

Fiquei tão intelectualmente excitado em conhecê-lo que fiz questão de levar meus amigos mais chegados a conhecê-lo. Eu não poderia compartilhar aquilo sozinho. Alguns riram depois e me diziam: você está louco? Aquilo é um conhecimento iniciático, parece mais uma igreja.

Bem... o que fazer? Continuei a ouvi-lo falar sobre a imaginação criativa ativa. Aquilo me fascinava.

Uma vez perguntaram para ele: você tem certeza que o artista pensou em tudo isso, que você detalhou, quando criou a obra? E ele, sabiamente, respondeu: não importa. O que interessa é que tudo isso está lá.

Bingo!

Era essa a chave. Era o que me atraía. Como exercitar a imaginação criativa no dia a dia? Comecei a perseguir esse conhecimento.

Ele claramente distinguia a imaginação ativa da passiva. Na passiva a sensação vinha até você e os dados do sentido eram recolhidos. Na ativa exigia uma elaboração, uma forja. Você se dirigia até a sensação. Era um misto de razão e sensibilidade.

Para quem estava chegando, e suas aulas abertas constantemente abrigavam alunos novos (havia alunos que o acompanhavam há 12 anos), pensamentos como “as musas modularão os padrões cósmicos guardados pela mnemosine”, ou, “o fígado é o órgão que representa o olho imaginativo, e se relaciona com sagitário” eram herméticas ou nebulosas demais. Para mim tudo fazia sentido. Pelo menos assim eu achava naquelas noites.

É impossível reproduzir o que foram aqueles anos de convívio. Fuçando agora em minhas anotações vejo que tenho um roteiro, ainda não totalmente explorado por mim, de intuições e reflexões que precisam ser confirmadas e avalizadas por meu ser. Aquelas aulas eram explanações, reflexões, como deviam fazer os antigos que iam falando, andando e pensando. Articulando o pensamento ali, remexendo acolá. Um pensamento que buscava a reconciliação entre o sensual e o espiritual.

Ele dizia que era a afirmação dentro de si que poderia corrigir a desafinação que imperava na natureza. E este era o papel do homem: ordenar o caos. E não era tarefa só do músico, não. Era de todos e foi perseguida por muitos antigos. O calendário criado pelo homem era uma tentativa de fazer essa correção. Mecânica, mas uma tentativa. Assim como o Cravo Bem Temperado de Bach foi uma tentativa de ordenar o caos criativo da natureza. Tirar proveito da série harmônica, organizar o que na natureza se repete já modificado.

O homem é um vaso receptor de uma natureza naturante, ou seja, uma natureza que dá natureza. Entendeu? Tudo bem, eu também não.

A última das virtudes divinas é a primeira das virtudes divinas.

Em quantas camadas podemos separar e definir, hierarquicamente, a razão? Qualquer dúvida, consultar o “Timeu” de Platão. Só merece ser chamado de pensamento aquilo que atinge nossos sentidos juntamente com seus contrários. O homem, então, é um mediador. É aquele que medita entre esses contrários. A razão só trabalha a posteriori com os dados dos sentidos. Intuição intelectual é igual a intuição espiritual. Intuição, no sentido de ir para dentro, in-tuir, contemplar o interior. O mesmo que conhecimento direto. A sensibilidade não julga, conhece.

No início era o Logos, a razão universal. Agora, bem, agora é o caos. Por isso precisamos de músicos, ou melhor, por isso precisamos da música.

Qual a função da arte: Através das formas resgatar as pistas de um anjo. Anjo aqui, como um ângulo de Deus.

Mil existências e uma existência carregam a mesma questão. Então vamos resolver essa.

O amor é o ato de existenciar o que sempre ainda não é, no amado. É como ouvir música.

Depois de um tempo tive que me afastar para deglutir tudo o que ouvira e anotara. Entre os alunos de música corria o boato, meio difamatório, de que quem estudava com o Rizek acabava não compondo nada. Só analisando, pensando, divagando. Era uma bobagem, claro. Uma defesa medíocre devido a incapacidade de se aproximar daquele conhecimento primacial.

Não posso deixar de encerrar essas minhas palavras confusas e emocionadas pelas lembranças, sem citar as experiências estéticas que foram assistir as suas análises de filmes. Eram um acontecimento.
Jamais vou esquecer o que senti ao assistir com ele “O Sacrifício” de Tarkovski.

Lembro-me que era um sábado e cheguei no local da análise às 15h. A sessão do filme com a análise acabou às 21h. Saí de lá suando frio, com tremedeira e chegando em casa tive que ir direto pra cama dormir. Dormi 12 horas seguidas. Foi tanta informação, revelação, conhecimento tão vital que eu passara mal. O que era aquilo? Será que era assim que se estudava na Idade Média. O Trívium; o Quadrivium? Não. Não havia cinema, nem videocassete para parar as cenas e mostrar o que ninguém vira antes.

Termino com o poema de Arseni Tarkovski, pai de Andrei Tarkovski, que jamais poderá ser lido por mim sem que a lembrança de Ricardo Rikek aflore. Sim, tem de haver mais.

Agora o verão se foi
E poderia nunca ter vindo.
No sol está quente.
Mas tem de haver mais.

Tudo aconteceu,
Tudo caiu em minhas mãos
Como uma folha de cinco pontas,
Mas tem de haver mais.

A vida me recolheu
À segurança de suas asas,
Minha sorte nunca falhou,
Mas tem de haver mais.

Nem uma folha queimada,
Nem um graveto partido.
Claro como um vidro é o dia,
Mas tem de haver mais.

02 fevereiro 2008

OROBORO


Palavra bonita essa. Quase perfeita, sonora. Cheia de ‘o’, a revelar o oco escuro do universo. Começa e termina com O. No centro uma labial B. ORO nas duas pontas. Palavra palíndromo de significados múltiplos.

A imagem alquímica e simbólica de tal palavra delimita a permanente e necessária mutação que preside todos os elementos do universo, e claro, a linguagem não ficaria de fora. Nem quando, ela própria, cria um ou mais universos paralelos.

A poesia é muito bem representada por esta palavra mágica.
Nas palavras do poeta português Herberto Helder resume-se a importância do labor poético em qualquer época, em qualquer suporte:

“A transmutação é o fundamento geral e universal do mundo. Alcança as coisas, os animais e o homem como o seu corpo e a sua linguagem. Trabalhar na transmutação, na transformação, na metamorfose, é obra própria nossa. (...) o poema é o corpo da transmutação, a árvore do ouro, vida transformada: a obra.”
(O Corpo O Luxo A Obra, 1977)

“Trabalha naquilo antigo enquanto o mundo se move
para o centro de si mesmo,
como se todos os pontos em que trabalhas fossem o centro do mundo.”
(Do Mundo [1994] Poesia Toda: 614)

“Penso que deve existir para cada um
uma só palavra que a inspiração dos povos deixasse
virgem de sentido e que,
vinda de um ponto fogoso da treva, batesse
como um raio
nos telhados de uma vida, e o céu
com águas e astros
caísse sobre esse rosto dormente, essa fechada
exaltação. Que palavra seria, ignoro. O nome talvez
de um instrumento antigo, um nome ligado
à morte – veneno, punhal, rio
bárbaro onde
os afogados aparecem cegamente abraçados a enormes
luas impassíveis. Um abstracto nome de mulher ou pássaro.
Quem sabe? – Espelho, Cotovia, ou a desconhecida
palavra Amor.”
(“Poema”, III, A Colher na Boca [1960], Poesia Toda: 30- 32)

Quem sabe a palavra procurada por Helder não fosse OROBORO? Palavra esta que bem poderia sintetizar sua obra, ou busca poética. Oroboro, ou aquele/aquilo/aquela que já carrega o fim em seu começo: a finalidade de sua tessitura. O fazer poético e artístico de vários povos. Devora o rabo e regurgita o ovo, pois se nada há de novo é necessário chocá-lo, vitalizá-lo.
A etimologia do fazer poético. Poiesis.

Oros, em grego, pode ser várias coisas: termo, limite, meta, regra ou definição. Boros, pode ser traduzido por boca, ou voracidade. Oroboro ou aquilo que se delimita ou se atinge pela boca, ou aquilo que se define pela própria função que realiza.

...
[Ilustração de M. C. Escher, Smaller and Smaller 1956 ]