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09 dezembro 2009

Poesia Brasileira Hoje

[Carlos Felipe Moisés expõe sua reflexão sobre a poesia contemporânea brasileira, sob os olhares atentos e quase assustados de Márcio-André e Lúcia Santaella.]

Foto by Giorgio Rocha

Perto do final da primeira década do século xxi, a poesia brasileira vive um momento esplêndido, excepcional. Nos últimos 10, 15 anos surgiram no país mais poetas do que nos 30 ou 40 anteriores. Quantidade não é qualidade, sem dúvida, mas no caso creio que já é, em si, um dado relevante. A fartura de poetas em atividade, hoje, no país, é indício de uma efervescência, uma ebulição, uma sede, um apetite voraz por poesia, sem precedentes. E, na minha avaliação, a qualidade tem sido proporcional. Não tenho lembrança de outro momento em que houvesse, entre nós, tanta poesia de boa qualidade como nos anos recentes. Nossos poetas, hoje, já nascem maliciosos, já estreiam com um notável domínio de ofício, uma considerável bagagem literária.

Antes, prevalecia a figura do poeta ingênuo, falsamente ingênuo, que acreditava em inspiração ou no improviso mais ou menos lírico-sentimental. Hoje prevalece o poeta que sabe o que faz, e é capaz de defendê-lo, não com base no direito que cada um tem de dizer o que quer, mas com base em argumentos e exemplos concretos, extraídos de uma sólida tradição, já hoje, de 80 anos. Os poetas surgidos mais recentemente tomam como referência os grandes mestres do passado, para os quais poesia para valer é aquela que tem, entranhado nos próprios versos, o necessário espírito crítico, a consciência crítica da poesia como forma de conhecimento.

Antes, os poetas olhavam para trás e enxergavam outro poeta, algum que tivesse feito sucesso nos anos anteriores; hoje, enxergam toda a tradição que os precedeu, remontando aos pioneiros dos anos 20-30, que aí estão, presentes e vivos, como nunca. A poesia brasileira, hoje, é uma poesia que tem consciência de sua história, que até recentemente era uma história linear, feita de “ismos”, “gerações” ou grupos de pressão, que iam se justapondo, em sucessão cronológica, e cada qual dava por superado e obsoleto tudo o que tinha acontecido antes. Hoje, essa história é o que sempre foi: movimentos espiralados, que incessantemente retomam o ponto de partida, ou seja, os grandes veios abertos pelos pioneiros dos anos 20-30, cada vez mais atuais.

O resultado é a pluralidade, a convivência de tendências variadas, não em nome do protocolar “respeito” às diferenças, ou em nome do politicamente correto, mas em razão da efetiva diversidade das matrizes que formam a nossa tradição.

Antes, tínhamos dois ou três suplementos literários, duas ou três revistas, uma ou outra editora que publicava alguma poesia, de modo que era possível, de um lado, um grupo de pressão mais persistente impor o seu gosto aos demais; de outro, era possível acompanhar com segurança o que estava acontecendo – ou era possível fingir ou até mesmo achar que era isso era tudo.

Hoje, essa ilusão não é mais possível. Não porque já não se façam mais suplementos literários como antigamente, mas porque revistas, no papel ou na grande rede, agora temos dezenas, a cada ano; livros, centenas, a cada cinco ou seis anos. E já não temos mais como acompanhar o que está acontecendo. Hoje, poetas de todas as idades dependem muito mais uns dos outros, todos empenhados no propósito comum de levar adiante uma rica tradição em poesia que, finalmente, 80 anos depois, atinge a sua plena maturidade.

* * *

Passados uns dias desse memorável encontro na Casa das Rosas, cuja tônica foi, na avaliação de todos, a tolerância entre facções outrora litigantes, ocorreu-me que eu poderia ter ido mais direto ao ponto se, em vez de optar por esse arrazoado mais ou menos impessoal, eu tivesse apelado, como diria Fernando Pessoa, para “a covardia do exemplo” (um só bastaria), acompanhado de um depoimento pessoal. O exemplo poderia ser este:

Ora, a alegria, este pavão vermelho, está morando em meu quintal agora. Vem pousar como um sol em meu joelho, quando é estridente em meu quintal a aurora. Clarim de lacre, este pavão vermelho sobrepuja os pavões que estão lá fora. É uma festa de púrpura, e o assemelho a uma chama do lábaro da aurora. É o próprio doge a se mirar no espelho. E a cor vermelha chega a ser sonora neste pavão pomposo e de chavelho. Pavões lilases possuí outrora. Depois que amei este pavão vermelho, os meus outros pavões foram-se embora.

A maioria dos presentes talvez não soubesse identificar o autor; muitos talvez não fizessem ideia de quem foi Sosígenes Costa (Belmonte, 1901 - Rio de Janeiro, 1968).

Idos de 70, tarde ensolarada – ao entrar no escritório que José Paulo Paes ocupava na sede da Editora Cultrix, que ele dirigia com mão de mestre, saudei-o, quase histriônico, com a primeira estrofe do soneto acima, o 29º dos “Sonetos pavônicos”, que sei de cor, desde que os li pela primeira vez, no início dos 60, na edição original da Obra poética, pela Editora Leitura. José Paulo ficou surpreso ao ver que um jovem poeta, em São Paulo, não só conhecia como admirava Sosígenes Costa, a ponto de sabê-lo de cor.

Conversamos longamente sobre poetas brasileiros miseravelmente esquecidos – alguns de vez em quando lembrados, outros esquecidos para sempre. Conversamos também sobre os que tiveram o seu momento de glória e logo migraram para o limbo dos que nunca existiram. Menos de vinte anos depois da auspiciosa e tardia estreia, em 1959, ali tínhamos Sosígenes Costa, outra vez, um ilustre desconhecido. Zé Paulo confidenciou-me estar pesquisando, fazia algum tempo, a obra invulgar do poeta de Belmonte. O resultado foi, uns anos depois, a reedição revista e ampliada de sua Obra poética, preparada por José Paulo Paes (Cultrix, 1978 – exatos dez anos após a morte de Sosígenes). O circuito dos admiradores do poeta baiano, então, ampliou-se consideravelmente, mas hoje, 2009, meros trinta anos depois, esgotada a reedição, morto há mais de dez anos o próprio Zé Paulo – o poeta da zona do cacau volta a ser deslembrado.

Mas continua a ser o meu exemplo, um dos muitos possíveis, de poesia brasileira, hoje. Exemplo de quê? De que todos podemos orgulhar-nos de uma das mais ricas, férteis e variadas tradições poéticas do Ocidente, no século xx. Tão rica e tão fértil que nos damos ao luxo de, periodicamente, esquecer alguns dos melhores – esquecimento coletivo, já se vê. Cada um de nós tem o seu deslembrado Sosígenes (são tantos!), mas coletivamente é que são elas. É que estamos todos tramados na irrisória concepção de história literária que arruma tudo em blocos ou “ismos” ou “gerações” – essa enganosa sucessão linear de falsos “programas”, onde os vários Sosígenes, conhecidos de todos, não têm lugar.

Não há como escapar: a situação “atual” da poesia brasileira (assim tem sido, há décadas) só poderá ser corretamente avaliada quando for, um dia, encarada à luz de um processo histórico, longo já de 80 anos, que tem pouco a ver com a linearidade dos “ismos” ou das doutrinas dominantes, artificialmente forjadas nos bastidores, mas incondizentes com a multifacetada riqueza dos versos propriamente ditos.

Então nos daremos conta do “coração selvagem” que pulsa no bojo da nossa tradição poética. A imagem aqui lembrada (essa do “coração selvagem”) rege toda a trajetória de Clarice Lispector, mas não diz respeito à poesia. Clarice nem de longe pensava no apagado e esquecido ofício de poetar. No entanto, diz.

Talvez seja o caso de perguntar: passaremos a vida, como Clarice, sempre “perto do coração selvagem”, acampados nas suas imediações? Ou ousaremos um dia entrar na sua posse, para que nossa poesia – coletivamente – ecoe o variado e heterogêneo batecum desse coração que desde sempre nos anima?

 

 

[Depoimento de Carlos Felipe Moisés no debate coordenado por Edson Cruz (São Paulo, Casa das Rosas5/12/2009), que contou com a participação dos poetas Affonso Romano de Sant’Anna, Carlito Azevedo, Márcio-André, Nicolas Behr e Ricardo Silvestrin.]




12 janeiro 2009

Carlos Felipe Moisés à queima-roupa



No dia de meu aniversário dou-lhes de presente as generosas respostas do poeta e professor Carlos Felipe Moisés às perguntas:

1) O que é poesia para você?
No começo, aos 13-14 anos, era só uma brincadeira. No colégio onde estudei, poesia era praticamente sinônimo de “rima”, e havia uma tal de “métrica”, esse negócio de contar as sílabas, umas fortes, outras fracas, e por aí vai (ou melhor, ia). Então, eu achei divertidíssimo brincar de procurar rimas, contar as sílabas nos dedos, para ver se eu tinha um decassílabo, um alexandrino ou um redondilho. Achei, desde o começo, que isso era tão divertido quanto fazer palavras cruzadas, colecionar figurinhas, jogar bola na rua, empinar papagaio, chocar traseira de caminhão, paquerar as meninas etc. Não era nada que eu levasse a sério. E ainda bem... Nessa idade, não acho saudável levar a sério seja lá o que for. Aconteceu que, lá pelos 16-17, eu li por acaso uns poetas modernos, quer dizer, do início do século XX, e de repente descobri que a poesia é a expressão mais apurada, mais densa, mais inquietante e mais verdadeira que o ser humano é capaz de dar ao seu “sentimento do mundo”, como diz Carlos Drummond de Andrade. Passei a encarar a poesia como uma espécie de síntese superior de tudo quanto você for capaz de pensar e sentir, sobre a vida, a natureza, o amor e a morte, o destino, a amizade e assim por diante. Desde essa época, a poesia me acompanha, como uma espécie de cúmplice imprescindível. Escrever os meus poemas tem-me ajudado a ir filtrando aquilo que vale a pena ser lembrado, tem-me ajudado a ir deixando no papel umas imagens, umas cenas, umas impressões, que me dão a certeza de algo afinal tão banal, que é simplesmente estar vivo. Mas estar vivo como alguém que vai deixando o seu testemunho, e não como alguém que apenas sobrevive e vê o tempo passar. O que é poesia para mim? Começou como brincadeira, depois foi-se tornando a representação simbólica do sentido (possível) da minha existência, aquela atividade sem a qual a (minha) vida não faria sentido. E, pensando bem, nunca deixou de ser, de um modo ou de outro, uma espécie de brincadeira, embora eu nunca mais me preocupasse com as rimas e com as sílabas contadas nas pontas dos dedos.


2) O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?
Apesar dos vários livros publicados, alguns premiados, ou justamente por isso, não me sinto em condições de dar conselho a ninguém. Ainda que seja um “iniciante”? Ainda assim. Iniciante, na verdade, é exatamente como eu próprio me sinto, com toda a suposta “experiência” acumulada em tantos anos. Cada livro, cada poema, é aquela mesma angústia, aquela mesma dúvida dos primeiros: será que eu vou ser capaz? Será que vale a pena tentar escrever sobre isto? E, depois de escrito: será que funcionou, será que eu acertei a mão? É sempre como se eu estivesse começando tudo de novo. Com o iniciante não é assim mesmo? Conselhos eu recebi muitos, e sou grato a todos: os que eu acatei e deram certo, os que eu acatei e não deram certo, os que eu rejeitei e poderiam ter dado certo (mas eu não tenho mais como saber) e os que eu rejeitei porque eram pura besteira. O que o iniciante deve perseguir? A sua verdade. Se ainda não tem uma, vá atrás dela. Ainda que não a encontre, valerá a pena procurar. E não acredite em nenhum conselho que lhe diga (em matéria de poesia ou outra matéria qualquer): aqui está a verdade. Mais conselhos (só para confirmar que eu sou mesmo contraditório): não acredite muito em elogios, prefira sempre ficar com as críticas, se elas forem inteligentes e honestas. Com os elogios excessivos, a sua busca da verdade se interrompe, você dá um suspiro de alívio e fica achando, bestamente, que já chegou lá. Com as críticas, as boas, você cresce, você se supera, e segue em frente. Como distinguir as boas das más críticas? Ah! Só você vai ser capaz de distinguir. Por fim, por melhor que seja o poema que você acabou de escrever (na sua opinião e na de “todo mundo”), ache, sempre, que você pode escrever outro ainda melhor.


3) Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que destas escolhas?
Retomando o que eu já comentei na primeira pergunta, os poetas modernos (não foram só três, mas vou ficar com “os três mais”) que me marcaram para sempre, que me ajudaram a encontrar o que talvez seja uma vocação, que me revelaram o que há de verdadeiramente humano na poesia foram: Mário de Andrade, Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade. Quando li esses poetas pela primeira vez, lá pelos 16-17 anos, a sensação foi uma só: eu tinha acabado de levar uma descomunal porrada, ao mesmo tempo na boca do estômago, no meio da cara e no fundo da alma. Minha vida, minha visão de mundo, nunca mais foram as mesmas. Então decidi: um dia eu vou escrever um poema, um só, do jeito deles, quem sabe misturando um pouco do jeito de cada um. Ainda não consegui, mas continuo tentando. Naquela idade, e depois, não tive pejo nenhum: vou imitar esses poetas. E imitei mesmo, e segui imitando, embora sempre tentando disfarçar, isto é, acrescentando à imitação alguma coisa própria. E acho (sinto) que deu mais ou menos certo: hoje não imito mais, mas não saberia dizer a partir de que momento o disfarce passou a prevalecer. Bem, os três poetas são esses, embora eu pudesse acrescentar mais alguns. Três poemas? Quer dizer, um de cada? Aí já fica mais difícil. Mas posso tentar: do Mário, a Paulicéia Desvairada, inteira, especialmente a série com o título “Paisagem” e a “Ode ao burguês”; do Pessoa, a dificuldade aumenta, mas digamos que o Alberto Caeiro e o Álvaro de Campos, inteiros, especialmente o “Há metafísica bastante em não pensar em nada”, do primeiro, e a “Tabacaria”, do segundo; do Drummond, a dificuldade é a mesma, mas vou destacar o Sentimento do mundo, A rosa do povo e o Claro enigma, inteiros, especialmente, na ordem, “Mãos dadas”, “Procura da poesia” e “A máquina do mundo”. Escolhas? A impressão que tenho, tantos anos depois, tanto tempo de convívio, é que eu não os escolhi, eles é que me escolheram. Ou o acaso se incumbiu de tudo.




Carlos Felipe Moisés nasceu em São Paulo, SP (1942). É formado em Letras pela USP, onde lecionou, assim como em várias outras universidades, no Brasil e nos Estados Unidos. Estreou em 1960, como poeta (A poliflauta), e publicou até hoje nove livros de poesia (o mais recente, Noite nula, 2008). Publicou vários livros de crítica literária (como Poética da rebeldia, 1983; O desconcerto do mundo, 2001; Poesia e utopia, 2007) e de literatura infanto-juvenil (O livro da fortuna, 1992; A deusa da minha rua, 1996; Conversa com Fernando Pessoa, 2007 – entre outros). É tradutor de Sartre (O que é a literatura?), Joseph Campbell (O poder do mito), Marshall Berman (Tudo o que é sólido), Proust (Alta traição – uma coletânea, que reúne vários poetas) etc. Desde que se aposentou pela USP(1991), coordena oficinas de criação literária, dá umas palestras de vez em quando, colabora esporadicamente na imprensa ou com editoras e dedica o tempo que sobra (pouco) a escrever. E-mail: carlos_moises@uol.com.br