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02 março 2009

João Rasteiro à queima-roupa



O que é a poesia para você?

Na juventude era sobretudo estranhamento, depois passou a ser brincadeira e prosápia, só que agora é medo e sofrimento. Poderia talvez dizer que a poesia é. Talvez substanciá-la como espanto e descoberta, caos e criação, vida e morte, verbo e substantivo. Poderia até dizer que a poesia é o lugar mais recôndito e primordial da alucinada linguagem em seus mundos e corpus de perplexidade. Poderia talvez, como refere Herberto Helder, dizer que ela é “Esta mão que escreve a ardente melancolia//da idade//é a mesma que se move entre as nascenças da cabeça, //que à imagem do mundo aberta de têmpora//a têmpora//ateia a sumptuosidade do coração.”
Eu sei, eu estou também plenamente convencido de que hoje cada vez mais, quando olho Gaza, Darfur, Bagdá, ou Tibete, a poesia não serve para nada, como diz o poeta e amigo Ricardo Aleixo, “A poesia não serve para nada, não se compra pão com palavras, mas não se vive sem ela. O dizer poético é a dimensão amplificada da crise do humano. Não acalma. Ao contrário, nos mostra o quanto ao vivo é muito pior”. Eu sei, eu também ambiciono que cada vez mais a poesia seja acto e não produto. Agora, poesia?

Como comparou Samuel Johnson, “Senhor, o que é a poesia? – Bem, senhor, é muito mais fácil dizer o que não é. Todos nós sabemos o que é a luz, mas não é fácil dizer o que é.” Por isso, talvez como afiança Jean Cocteau, “A poesia é uma religião sem esperança”. E no entanto o mundo (os mundos) e a linguagem precisam agora mais do que nunca desta religião para ainda ter esperança.

O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de maneira?

Ousar pensar/sonhar a palavra outra, a transgressão outra, a linguagem outra. E naturalmente deverá ler, ler, ler – ler incessantemente. Depois, escrever, escrever, escrever – escrever/ver/reescrever/ser. Até se viciar no sabor do sangue entre carne e verbo. Por fim, avançar simplesmente, avançar com a expectativa de ser escutado e de se escutar. Ser escutado, mesmo se apenas por alguns – pois será inolvidável e mágico. Até porque, como refere o poeta norte-americano Charles Bernstein, “não interessa a quantidade ou mesmo serem lidos, a árvore não necessita obrigatoriamente de ter alguém debaixo dos ramos à sombra, mas se precisarem, a sombra está lá”.

Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que destas escolhas?

Afinal são duas perguntas numa só. Apontar três poetas é tão difícil como apontar um, seis ou até nove – Homero, Dante, Shakespeare, Camões, Rilk, Lorca, Pound, Breton ou Kavafis. E no entanto atrevo-me, embora por múltiplas e variadas razões, a apontar os seguintes poetas:

Herberto Helder, pelo terramoto que o seu acto criador, decorrente da transgressão que o seu fluxo verbal, respirando uma mitológica e mágica linguagem, carnal, quase animalesca, provocou na poesia portuguesa contemporânea e que nos impele para um poder encantatório e deslumbrante, sufocando-nos de uma emoção sublime. O corpo poético herbertiano mostra-se luminescente gerando luz própria (o que só acontece talvez na genialidade de alguma poesia) como as estrelas, conforme refere Maria Estela Guedes.

T.S.Eliot, possuidor de uma poesia da fragmentação e da desconstrução e uma das mais difíceis de ser criticada e analisada, em permanente questionamento, onde o retorno é uma inevitabilidade. Poesia a um só tempo clássica e moderna, revolucionária e subversiva e reaccionária, realista e metafísica, está na própria raiz que informa e conforma a mentalidade poética de nossos dias. Como nos mostra The Waste Land, o seu poema mais famoso, onde primam mudanças retóricas constantes e a justaposição de estilos contrastantes, a linguagem de Eliot rejeita a noção de poesia enquanto efusão individual e reabilita o quotidiano transcendendo-o brutalmente. É a poesia assente na permanente procura de uma linguagem nova, perturbadora e catalisadora do mundo e seus sonhos.

Fernando Pessoa, poética também da fragmentação, onde se pretende um percurso que conduza a uma profunda reflexão sobre a relação entre verdade, existência e identidade. Poesia que mesmo com algumas contradições, possui uma visão simultaneamente múltipla e unitária da vida. É sem dúvida uma poesia que pode ser encarada como um paradigma da poiésis, quer seja ao nível da poesia como da arte em geral. Poética que é acima de tudo um acto demolidor, desmistificador e psicologicamente, como disse Jorge de Sena, um "indisciplinador de almas", eu digo da linguagem, do mundo(s), do acto de ser corpus de linguagem viva.

Relativamente aos textos, mais uma vez transgrido e aponto cinco textos poético - ensaísticos: A Poética de Aristóteles, Bíblia (com predominância para o Cântico dos Cânticos), A Divina Comédia, de Dante Alighieri, toda a obra de Shakespeare (“o pequeno irmão de deus”, como o apelidou Schwanitz) e A-Poética, de Charles Bernstein, até como contraponto e /ou complemento da Poética de Aristóteles.




João Rasteiro (Coimbra - Portugal, 1965). Poeta e ensaísta. É sócio da Associação Portuguesa de Escritores, membro do Conselho de Redacção da Revista Oficina de Poesia e do Conselho Editorial da revista brasileira Confraria do Vento. Tem poemas publicados em várias Revistas e Antologias em Portugal, Brasil, Colômbia, Itália e Espanha e possui poemas traduzidos para o Espanhol, Italiano, Inglês, Francês e Finlandês. Publicou os livros de poesia, A Respiração das Vértebras (Sagesse, 2001), No Centro do Arco (Palimage, 2003), Os Cílios Maternos (Palimage, 2005) e O Búzio de Istambul (Palimage, 2008). Obteve vários prémios, nomeadamente a Segnalazione di Merito no Concurso Internacionale de Poesia: Publio Virgilio Marone(Itália-2003) e o 1º prémio no Concurso de Poesia e Conto: Cinco Povos Cinco Nações, 2004. Em 2005 integrou a antologia: “Cânticos da Fronteira/Cánticos de la Frontera (Trilce Ediciones – Salamanca). Em 2007 foi um dos poetas participantes nos VI Encontros Internacionais de Poetas de Coimbra, F.L.U.C. - Universidade de Coimbra. Em 2007 integrou a antologia: “Transnatural” (projecto multidisciplinar que tem como tema o Jardim Botânico da Universidade de Coimbra), Editora Artez. Em 2008 participou na exposição e antologia “O Reverso do Olhar” – exposição internacional do surrealismo actual. Em 2009 integrará a antologia: “Portuguesia: Minas entre os povos da mesma língua – antropologia de uma poética”, organizada pelo poeta brasileiro Wilmar Silva e que engloba poéticas de Portugal, Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique São Tomé e Príncipe, Timor-leste, Goa, Macau e Galiza. Em 2009 a revista “Arquitrave” da Colômbia editará um número especial dedicado à “Nova Poesia Portuguesa”, do qual será o responsável. Em 2001 englobou um conjunto de pessoas de várias áreas artísticas, nomeadamente a poesia, música, dança, pintura, teatro, etc., em BELGAIS (Centro para o estudo das artes, dirigido pela pianista Maria João Pires) trabalhando com crianças das aldeias limítrofes. Prepara-se para editar um novo livro, que se chamará: “Diacrítico”.Vive e trabalha em Coimbra. Mantém em permanente irrupção o fulgor do blogue: http://www.nocentrodoarco.blogspot.com/ Email: rasteiro.j@gmail.com