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16 julho 2009

Joana Ruas à queima-roupa



1) O que é poesia para você?

A Poesia deve ao poeta alemão Novalis a sua melhor definição. Grata pela oportunidade de a recordar, num tributo à sua memória, aqui a deixo:
«A poesia é representação da alma, representação do mundo interior na sua totalidade. Os seus intermediários, as palavras, já o indicam, pois elas são a manifestação exterior deste reino profundo. O sentido poético tem muitos pontos comuns com o sentido místico. Trata-se do sentido de tudo aquilo que é particular, pessoal, desconhecido, misterioso, de tudo o que deve ser revelado, de tudo o que é ao mesmo tempo necessidade e acaso. O sentido poético representa o irrepresentável. Ele vê o invisível, sente o insensível... A crítica da poesia é um absurdo: já é difícil de dizer se uma coisa é poesia ou não, e isto é ainda a única distinção possível. O poeta é literalmente insensato, e, por outro lado, tudo se passa nele. Ele é, ao pé da letra, sujeito e objecto ao mesmo tempo, alma e universo. Daí o carácter infinito e eterno de um bom poema.
A poesia é o real absoluto. Quanto mais uma coisa é poética, mais ela é verdadeira.»

2) O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?

Deve conviver com a poesia de outros poetas, adquirir o sentido da forma e partir, infinitamente partir para tudo o que o possa exprimir na sua singularidade e experiência pessoal.

3) Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que destas escolhas?

Ao longo dos anos o meu contacto com as obras dos vários poetas de que tive conhecimento ajudou-me a progredir mental e moralmente. Através de uns encaminhei-me para outros que, na altura me pareceram mais próximos da minha própria demanda ou ainda, porque notava a existência entre nós de uma afinidade electiva. Sem esquecer a minha dívida para com todos eles, portugueses e estrangeiros, neste momento a minha escolha vai para Rimbaud, Bashô e José Ángel Leyva.

Rimbaud, inventou Khenghavar, um país mítico de uma geografia apócrifa , um país plein de lourds cieles ocreux et de fouet de fleurs en chair. Khenghavar era o país mítico onde todos os lugares eram poéticos, onde todas as viagens se faziam de homem para homem, de povo para povo. Para salvar a própria pele ,Rimbaud enterra a sua inspiração poética no negócio de marfim e peles de leopardo, de tigres e cabras, negócios baseados em ofícios sangrentos de matar, arrancar presas, esfolar animais. Estuda aGramática Somali e o Corão de que faz uma tradução bilingue, francês e árabe. Segundo escreveu, depois de abandonar a poesia, cumpriu a existência e, se condenado a viver durante bastante tempo ainda em França, não passaria ali de um estrangeiro.

L´Éternité

Elle est retrouvée.
Quoi? — L´éternité.
C’est la mer allée
Avec le soleil.
(do livro Une Saison en Enfer)

Matsuo Bashô
Este poeta japonês do século XVII escreveu num dos seus Diários:« Estou só e escrevo para minha alegria». Para mim, ele, perante as atribulações da sua existência de peregrino, alcança a sua maravilhosa serenidade através da sua arte, isto é, a arte do equilíbrio na desilusão.

Ervas do estio
Eis o que resta
Da ambição dos guerreiros

do livro O Gosto Solitário do Orvalho)

José Ángel Leyva, que só agora estou descobrindo, impressionou-me pelo seu dom de uma expressão directa que reflecte, não só o Real como a sua realidade subjectiva. O seu poema Marcha fúnebre para um anjinho narra a caminhada do indecifrável para o mundo do Humano tornado familiar pela acção de o nomear.

Marcha fúnebre para um anjinho

Assim que alce a escotilha
E veja o meu sangue exaltado
Fazendo remoinhos no crânio
Terei a infância à minha mercê
Poderei tocar-lhe com a mão
Reviverei ossaturas
Falarei com meus irmãos
De tantas coisas esquecidas
Sairemos a passear pelos campos
Um bosque de pinheiros e de fetos
Se abrirá como casca de árvore
Veremos regressar as chuvas
Com sol e num descampado
Resgataremos o véu dos nomes
A pedra permanecerá livre e será pedra
O musgo e o orvalho arroios
E ser e estar na estação do ano
O soçobro da água e das folhas
Quando abrir a escotilha da minha casa
Um menino como eu terá morrido
Não temerá a obscuridade a sua cara de anjo
Não hesitará em mostrar-me as cavidades
Comuns dos olhos
O seu verdadeiro rosto
assomará por essa porta

(do livro Duranguraños)


Finalmente, alguns haiku da minha autoria

Camélia

Camélia branca
Sorriso de névoa
Na milenar rocha
Da saudade


Carta

Verde, a folha
Voa
Por oceanos de Tempo
Para o Amado


Poente

Com raro esplendor
Qual taça de vinho quente
Ergue-se a frésia vermelha
Ao doirado sol do poente


Joana Ruas publicou os seguintes romances: Corpo Colonial, Centelha, Coimbra, 1981; O Claro Vento do Mar, Bertrand Editora, Lisboa, 1996; A Pele dos Séculos, Editorial Caminho, Lisboa, 2001; A Batalha das Lágrimas, Editora Calendário,2008. Em prosa publicou Na Guiné com o PAIGC, reportagem escrita nas zonas libertadas e Zona (ficção). Escreveu os ensaios: Amar a Uma só Voz, Colóquio Rilke, Edições Colibri, Lisboa, 1997; A Amante Judia de Stendhal e E Matilde Dembowski, e A Guerra Colonial e a Memória do Futuro, comunicação apresentada no Congresso Internacional sobre a Guerra Colonial. Participou na 8ª Bienal Internacional do Livro do Ceará onde proferiu uma palestra intitulada Aproximar o Distante, Do Estranho ao Familiar — duas experiências: Timor-Leste e Guiné-Bissau. A sua poesia encontra-se dispersa por publicações como NOVA 2 (1975), um magazine dirigido por Herberto Helder; o seu poema Primavera e Sono com música de Paulo Brandão foi incluído, pelo compositor Jorge Peixinho, no 5º Encontro de Música Contemporânea promovido pela Fundação Gulbenkian; Cartas a Ninguém de Lisa Flores e Ingrid Bloser Martins, Vega. Participou nas antologias: Antologia da Poesia Erótica, Universitária Editora; Na Liberdade, Garça Editores; Mulher e Um Poema para Fiama, Editora Labirinto. E-mail: joanaruas@sapo.pt