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27 outubro 2010

Um mamaluco encantador























O escritor Luiz Roberto Guedes é uma das pessoas mais bem-humoradas e informadas que eu conheço. Nos encontramos com frequência na av. Paulista, eu saindo do trampo e ele indo pagar alguma conta, e os papos se estendem com fluência. Além de grande poeta e letrista, tem escrito prosa com grande pegada. Seu livro O Mamaluco Voador é uma delícia e deveria ter tido mais repercussão.

Outra noite, passamos horas preciosas em boa prosa (bebericando um ótimo vinho argentino) com o poeta Affonso Romano de Sant’Anna.


O livro com a capa acima, foi lançado por aqui em abril. Se ele houvesse chegado na vitrine das livrarias, agora já estaria escondido no fundo dela. Confira um dos contos do livro e saiba como adquiri-lo.
 
                                                  [Alô, Alessandra]

                                              por Luiz Roberto Guedes

    O céu escureceu ao meio-dia, tão de repente que os carros acenderam os faróis. O dilúvio castigou a cidade durante horas. Chovia sempre quando o pessoal abrigado na entrada do posto telefônico viu aquele homem gordo vindo pela calçada, enfrentando o aguaceiro com um guarda-chuva pequeno demais para seu diâmetro.
   Abriram alas para ele. O gordo mais gordo que qualquer um já tinha visto. Enorme, romboide, monumental. Com macacão de jeans, bolsa a tiracolo, sandália de franciscano. Ele olhou em volta e já fez cara de contrariado.
   Viu todos os telefones ocupados, a maioria por vendedores, gente que ficava horas papagaiando, empurrando plano de saúde, curso de inglês, loteamento, clube de campo e até jazigo perpétuo em “cemitério-jardim com qualidade de Primeiro Mundo, minha senhora”, ouviu o papo de um deles.

   Ficou rodeando, impaciente. Mal um sujeito desligou, deu o bote sobre o aparelho. Tirou uma agendinha do bolso da camisa, coçou seus três queixos e teclou.
   Alô, Alessandra! É o Alex, da Teatrupe. E aí, tudo bem? Cê sumiu, nunca mais pintou no teatro. Tá estudando inglês? Vai pra Londres? Quando? Então a gente precisa se ver, tô com saudade. Vou estrear minha peça no mês que vem, sabia? O Sequestro do Prefeito. Não, não é comédia, tá mais pra tragicomédia. Por que você não vem ver um ensaio da gente uma noite dessas? Ah, cê tem que estudar. E na semana que vem? Ah, é? Ah, tá, então tá. Ligo pra você outro dia. Vou te mandar convite pra estreia, hein? Quero te ver lá. Um superbeijo!
    Folheou rapidamente a agenda.
   Oi, Isabela, como vão as coisas?
   A mil por hora. No pique da grande agência de publicidade. Sem tempo nem pra dar um “treps”. Só bizness. Tinha que entrar em reunião agora, sem hora pra acabar, a gente marca um papo outra hora.
   Era a deixa para a sua última fala. Saiu de cena com classe:
   Grande Isa! Sucesso, moça. Superbeijo! Tchau.
   Ligou para Vera, ficou sabendo que ela estava em alto mar, trabalhando num navio, em cruzeiro pelo Caribe.
   Ela volta quando, vovó? Tá bom, eu ligo em dezembro. Um beijo pra senhora.
   Pescou no bolso do macacão uma caixinha de chiclete, despejou uma pastilha na boca. Mastigou, folheou, teclou.
   Alô, Mirella, tudo bem? É o Alex. Saudade...
  Com voz macia, convidou-a para um ensaio, filme novo do Almodóvar, peça de Mário Bortolotto, show de blues, um sarau na Casa das Rosas, mas Mirella já tinha programa para os próximos 52 fins de semana.
    Oi, Fabíola... É o Alex da Teatrupe, tudo bem?
   Falava como locutor de rádio. Carinhoso, meloso, pegajoso. Tremendo bico-doce. Ganhou a atenção de todos para sua campanha romântica – “preciso de alguém para amar no fim de semana”.
    Alô, Selma, Telma, Tamara, Rossana, Silvana, Valéria.
   Ligados na novela, ouvintes involuntários foram virando espectadores simpáticos, talvez solidários, quase desejando que uma Cidinha dissesse “sim”, uma Jandira desse um trato no cara, uma Zuleide fosse tarada por um gordão.
    Ele consultava a agenda, ponderando, batucando na mesa com o polegar robusto. No ar, um certo medo de um novo não.

    Oi, Priscila, principiou sem esperança, sem vibração. Vai fazer o quê quarta-feira, sexta-feira, sábado, domingo, semana que vem? Ah, é? Ah, tá, ah, sei.
   E rugiu, áspero, amargo, indignado, quer dizer que quarta-feira você vai tingir o cabelo, sexta-feira vai buscar sua tia no aeroporto, sábado é o casamento da sua prima, domingo você vai visitar sua vovó que tá dodói, e na semana que vem também não pode? Então me diz quando é que você pode! Diz, Priscila! Quando é que você vai ter tempo? Fala, Priscila! O quê? Ah, vai tomar no teu cu!
  Bateu o telefone, pegou suas coisas e arrancou para a porta. Foi embora tomando chuva na cabeça, guarda-chuva fechado debaixo do braço.
   Houve um silêncio que não foi preenchido por qualquer comentário, e logo cada um voltou a cuidar da própria vida, ou apenas continuou esperando a chuva passar.


[In Alguém para amar no fim de semana, contos [e] editorial \ Annablume, 2010]

Para saber mais sobre o livro: www.annablume.com.br

Para ler a resposta do Guedes sobre “O que é poesia”.

13 julho 2009

Luiz Roberto Guedes à queima-roupa


[foto: Akira Nishimura]


1) O que é poesia para você?

Poesia é certamente uma forma de conhecimento do mundo e da psique. É memória mágica da humanidade, um rito persistente na tentativa da arte de reencantar o mundo. Serve para celebrar os nomes de divindades extintas e majestades desaparecidas, ou para assinalar experiências sensoriais, como aquele simples e misterioso “gole de água bebido no escuro”, por exemplo, de que fala Mário Quintana num poema.


2) O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?

Eu creio que esse iniciante deve se esforçar para ler o maior número possível de poetas, de todos os séculos e culturas, para poder captar o espírito poético através das épocas e a vibração do poeta vivente em seu momento sob o sol. Creio que é simplesmente fundamental que a poesia diga algo e que, essencialmente, diga respeito à vida. Em meados dos anos 90, um tanto desapontado com a poesia norte-americana naquela altura, Lawrence Ferlinghetti recomendava aos poetas que fossem para a rua e fizessem “novas e frescas observações” da realidade ou do cotidiano.

3) Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que destas escolhas?

Em termos de iniciação e formação, em minha adolescência, os numinosos Bandeira, Drummond e Jorge de Lima. Em Bandeira, o dizer exato e simples e a revolta contra “a vida que podia ter sido e que não foi”, mais a contínua evasão para Pasárgada, onde “tem prostitutas bonitas para a gente namorar”. Na cordilheira mineira de Drummond, sua investigação no reino obscuro das palavras, sua profundeza e seus calculados delírios, como aquela celebração de uma Fulana que “é toda dinâmica/tem um motor na barriga/suas unhas são elétricas/seus beijos refrigerados”. Em Jorge de Lima, essa catedral fantástica que é Invenção de Orfeu, que nos revela, por exemplo, a divindade como um cacho de faces, concepção surpreendente para um poeta confessadamente católico. Claro que Mário de Andrade e Oswald são santos no meu altar. Preciso acrescentar ao rol o buleversante Murilo Mendes e o poeta José Paulo Paes, por sua fina lição de concisão e humor. Das pessoas do Pessoa, talvez a poesia de Alberto Caeiro tenha se sedimentado mais, em mim. Naturalmente, outras influências se somam e se entrelaçam, como a práxis concretista, a poética beat, a música popular etc. Ou se faz magia... ou se faz mélange.


Luiz Roberto Guedes é paulistano, poeta, escritor e tradutor. Publicou, entre outros, Calendário Lunático/Erotografia de Ana K (Ciência do Acidente, 2000) e organizou Paixão por São Paulo – antologia poética paulistana (Editora Terceiro Nome, 2004). Lançou a aventura juvenil Armadilha para lobisomem (Cortez Editora, 2005) e a novela O Mamaluco Voador, pela Travessa dos Editores, de Curitiba. É, também, letrista de música popular sob o pseudônimo de Paulo Flexa. E-mail: lrguedes@hotmail.com