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24 janeiro 2010

Um disco raro: Clube da Esquina 2



Corria o ano de 1978. Um ano que também não terminou. Milton Nascimento arregimenta seu time de amigos e parceiros, organiza o lado musical e, com a produção de Ronaldo Bastos, presenteia-nos com mais um disco histórico: o Clube da Esquina 2. Diferentemente do trabalho coletivo realizado no Clube da Esquina, que podemos considerar como um projeto marginal e alternativo, feito em parceria com o jovem Lô Borges e a liberdade criativa de músicos e letristas amigos, o Clube 2 foi um álbum inteiramente idealizado e concebido por Milton. A EMI ODEON deu carta branca e o nosso Bituca fez o disco como bem quis. O resultado firmou de vez Milton e seus confrades talentosos no primeiro time do caudaloso rio da Música Popular Brasileira. A essa altura do campeonato o som nutrido e sintetizado por Milton e seus parceiros entre as montanhas maviosas de Minas tinha gerado afluentes que entraram de vez na corrente sanguínea da música mundial.

Nesse disco duplo, produção muito difícil de ser repetida nos dias bicudos do mercado fonográfico atual, um verdadeiro rosário de belas e marcantes canções, parcerias cristalizadas, novos talentos e grandes nomes da MPB se fizeram presentes — Chico Buarque de Hollanda, Elis Regina e Gonzaguinha, entre outros. Como esquecer de “Nascente” — uma das músicas mais tocadas do disco —, parceria de Flávio Venturini e Murilo Antunes, uma pequena pérola da música popular brasileira de todos os tempos? E o que falar da música “Cancion por la unidad de Latino América”, composição de Pablo Milanês adaptada por Chico, cantada por Milton e o próprio Chico Buarque no disco?

Vivíamos no país um momento de esperança pelo que ficou conhecido de “distensão lenta e gradual” de um regime que havia paralisado a todos e a tudo. Era o momento de, por um lado, fazer um balanço das vivências e ganhos até então e, por outro, abrir-se a novos caminhos que exigiam serem percorridos.

Milton chamou seus dois principais letristas, Fernando Brant e Márcio Borges, e os instruiu a contabilizar em cima de uma mesma melodia tudo o que eles haviam vivenciado desde o Clube da Esquina inaugural. O resultado é a música, com duas letras, “O que foi feito devera/O que foi feito de Vera”. O que havia sido feito de nós? O que havia sido feito do Brasil? O que havia sido feito de nossos sonhos de meninos? De certa forma o disco todo é uma resposta abrangente para essas perguntas. Uma resposta que apontava para a certeza de que “outros outubros virão, outras manhãs plenas de sol e de luz”.


[Texto para edição especial do site do Museu Clube da Esquina. Confira fotos e depoimentos sobre o disco em
http://www.museudapessoa.net/clube/expo_clube2/]

21 dezembro 2009

A música é a musa de todos nós

Podemos ter uma ideia do caráter de um povo, de um momento histórico e de um ser humano pela música que ele pratica e ouve. A música não só revela os sentimentos e emoções íntimas do ser humano, mas também os gera e os transforma.

Neste sentido torna-se valioso o conhecimento do material utilizado pelos músicos e compositores, mesmo que não o manipulemos como músicos; pois certamente somos mais influenciados pelas sonoridades que nos cercam do que gostaríamos de admitir.

A música pode nos levar a possibilidades de experiências jamais tentadas. Em todas as culturas antigas do mundo, a música existiu em função do ritual, do serviço a alguma divindade, da expansão da consciência e das mais profundas experiências humanas. Os ritos e cultos xamanísticos, os rituais da África ou da América do Sul, do Extremo Oriente, trabalham com um conhecimento - que podemos chamar de inconsciente - de uma força primordial, ou lei, desencadeada através de manifestações sonoras e rítmicas.

Esse conhecimento, por si só, já seria interessante para nós ocidentais ou ocidentalizados. Poderíamos, e isso só cabe a nós, não só deixar essa energia agir de forma mágica, mas também experimentá-la conscientemente, tornando-a mais presente, a nosso dispor e com isso tornando-nos seres mais perfeitos, íntegros. Em suma, mais seres humanos.

Nas civilizações da antiguidade, o som organizado inteligentemente representava a mais elevada de todas as artes, e a música, a mais importante das ciências, o caminho mais poderoso à iluminação religiosa e a base de um governo estável e harmonioso. A música vigorosamente agia sobre o caráter do homem.

Hoje, nós modernos ou pós-modernos, pós-tudo, ex-tudo (como diz Augusto de Campos), não estudamos, não mudamos, emudecemos e o pior: ficamos surdos.

quando não ouvimos

a própria voz

desafinamos.

Não consideramos mais o som audível um reflexo terreno de uma atividade vibratória, que se dá além do mundo físico, mais fundamental e mais próximo do âmago das coisas.

Inaudível ao ouvido humano, essa atividade vibratória cósmica é a origem e a base de tudo que foi e continua a ser gerado no universo.

Além da música, a expressão do discurso era considerada um reflexo no mundo da matéria dos tons cósmicos. Esses tons cósmicos eram chamados pelos egípcios de «o verbo» ou «o verbo dos deuses»; pelos gregos de «a música das esferas».

As palavras, ouvidas por este diapasão, possuem um poder encantatório imenso. Já disse Louis F. Céline que o trabalho com as palavras pode matar um homem. Se pode matá-lo pode também salvá-lo, digo. Os arranjos são infinitos, aprendamos a escolher.

No princípio, então, sempre esteve o som, o verbo, a palavra, o ritmo, o logos. Como na música, assim na vida, já ouvimos. Diga-me qual a palavra e te direi quem és.

Os poetas, a meu ver, têm a função de recuperar este poder encantatório das palavras, tão corroídas pelos clichês. A função do músico, por outro lado, é colocar ordem no caos. Os ruídos são muitos e a afinação e a harmonia (esta deusa/ artesã que cria as formas mortais) parecem ser as buscas mais adequadas para o momento histórico que vivemos, depois de termos sido estilhaçados por duas guerras mundiais, duas bombas atômicas e experiências estéticas que reverberaram o caos e a desordem.

De partes bem ajustadas assenhora-se o sábio do Todo.

Os ouvidos não têm pálpebras.

Conta-se que Villa-Lobos, quando questionado sobre como conseguia compor com tantos ruídos externos (janela aberta aos sons da urbe ensandecida), respondeu com simplicidade: «meu filho, o ouvido externo não tem nada a ver com o ouvido interno».

É nosso ouvido interno que urge ser aprimorado e utilizado para a reconstrução do mundo e de uma vida mais plena. Tarefa difícil, mas necessária. Precisaremos de cardumes de bons músicos e poetas.