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20 março 2009
Marcos Siscar à queima-roupa
1) O que é poesia para você?
Há um certo desconforto dos poetas em responder à questão “o que é poesia?”. A pergunta não é mais complicada do que outras. O problema é que a poesia não gosta muito de definições, e isso tem a ver com a história de sua constituição como discurso e como saber sobre o mundo, de modo distinto da filosofia, da religião ou, mais recentemente, da ciência.
Por isso, respostas especulativas, místicas ou sistêmicas, por mais interessantes que possam parecer, soam sempre como meia-verdade. Comento os paralelos, arriscando algumas hipóteses sobre o modo como a poesia reivindica sua diferença:
- Gosto de imaginar, dentro da formulação filosófica do problema, que a poesia é a tentativa de manter o paradoxo, ou seja, aquilo que a filosofia tenta resolver a todo custo. O papel básico do filósofo é evitar o paradoxo, é dar um sentido coerente para aquilo que se apresenta contraditoriamente. Saber que não se sabe (Platão) é apenas uma estratégia do saber e, no fundo, um problema que a filosofia tem o cuidado de justificar, de manter sob controle. Para o poeta, o paradoxo não traz inconveniente (Octavio Paz). É possível dizer que a ambição da poesia é manter o paradoxo como tal, dando-lhe forma e formulação.
- Já o discurso religioso valoriza o mistério, verticaliza a vertigem do conhecimento permanecendo, via de regra, dogmático. Se a poesia se aproxima da reivindicação do mistério, rejeita claramente o dogmatismo. O poeta é mais comumente agnóstico (Drummond), ou inicialmente profanador (Baudelaire). Mantendo o “mistério” (hoje diríamos a alteridade), mas recusando a necessidade de dar-lhe um fundamento, subvertendo o que foi separado e trazendo-o para o uso do profano (Agamben), a poesia seria um tipo de “profanação”.
- Com a poesia sobre a mesa de dissecação, pode-se chegar a algumas conclusões em relação aos seus “dispositivos”. A herança científica nos legou uma visão do poético que passa sobretudo pela via da lingüística (Jakobson, formalistas russos) e é capaz de nos oferecer definições de procedimentos e mecânicas poéticas. Como toda fonte de definições, ela vale tanto pelo que descreve quanto pelo que acaba por normatizar. Daí a idéia pedagógica que lhe é associada (por exemplo, nos discursos do make it new). Entretanto, a poesia resiste à idéia de reiteração de formas e valores, valoriza a experiência única.
É difícil responder “o que é poesia?” sem constatar essa disputa entre discursos. Acho que dá para dizer que discurso poético aspira ao paradoxo do conhecimento da ignorância, que não deixa de estar ligado com a pulsão da alteridade (acaso, mistério, etc.). Essa experiência de constituição de identidade não deixa de ter sintonia com o modo pelo qual a poesia aborda questões psicológicas (“afeto”), cosmológicas (ou “ecológicas”) e sociológicas (“comunidade”).
2) O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?
Se aceitamos essa perspectiva do discurso poético, então o poeta só se realiza plenamente se levar o mais longe possível os seus pontos de partida, ou seja, os dados de sua própria experiência: o que sabe, o que faz, o que lê, o que deseja. Até o ponto em que essas coisas mostram seus pontos cegos, suas contradições. Há muitos tipos de prática de poesia, mas a que mais me interessa é essa radicalidade, essa capacidade de assumir a dificuldade, ainda que por meio da formulação mais simples.
Um poeta iniciante é sempre um poeta inteiro já que, como todo poeta ele ainda está por vir, por reconhecer-se. Ele está sempre em processo e isso significa, no fundo, que sua tarefa é a incessante transformação do lugar de onde vem.
Acho que o maior perigo hoje para um poeta é acreditar no marketing, no estilo de fachada, no reconhecimento vazio, como algo que substitui a tarefa de fazer-se poeta. Claro, o marketing existe, sempre existiu. Mas o pior dos mundos, para a poesia, é aquele em que o marketing encontra em si mesmo sua justificativa.
3) Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que destas escolhas?
Tomando um atalho, eu citaria três autores que estão destacados em epígrafe no meu próximo livro de poemas.
Carlos Drummond de Andrade. Trata-se de um poeta que fica mais interessante se lido fora da habitual ortodoxia crítica. Claro Enigma (1951) é um dos pontos altos da fragilidade e da irritação da poesia de Drummond. Esses dois “defeitos”, aliás contraditórios, são combinados e se tornam qualidades poéticas.
Haroldo de Campos. Para mim, Galáxias (1984) é um livro de grande liberdade de linguagem e de “respiração”, que negocia de modo muito pessoal com os excessos joyceanos, sem o engessamento de escola que o temperamento “aventureiro” de Haroldo ajudou a evitar.
Michel Deguy. Gisants (1985). Os “jacentes” do título são ao mesmo tempo figura do humano, da história, da poesia. É um ponto alto da poesia de Deguy, do modo espantosamente coerente e sensível com que flagra a metafísica nos gestos mais simples do cotidiano, dando-lhes sentido histórico.
Marcos Siscar é poeta, tradutor e professor de literatura na Unesp. Publicou os livros de poemas Não se Diz (1999), Tome seu café e saia (2001), Metade da Arte (2003, finalista do Jabuti) e O Roubo do Silêncio (2006, prêmio Goyaz e finalista do Portugal Telecom). Tem livros traduzidos na Argentina (No se Dice, 2003) e na França (Le Rapt du Silence, 2007, e a antologia Prends ton café et va-t-em, a ser lançada em 2009). É tradutor de Tristan Corbière, Michel Deguy, Jacques Roubaud, entre outros. Em 2005, foi poeta residente em La Rochelle, França. Prepara atualmente a edição de seu próximo livro Interior via Satélite, pela Ateliê Editorial. E-mail: siscar@ibilce.unesp.br
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