Uma vez, na França, na cidade de Dijon, em 1951, tentaram acabar com o mito do Papai Noel. As autoridades eclesiásticas acharam que o velhinho estava muito comercial. Convocaram 250 crianças para enforcá-lo em praça pública. O resultado foi, ao contrário, uma verdadeira rebelião. A população ressuscitou Noel entronizando-o no imaginário popular. O antropólogo Lévi-Strauss chegou até a escrever um ensaio sobre esse episódio. Se um dos maiores pensadores do nosso tempo se deteve a analisar isto, é sinal que a figura de Noel deve ter alguma importância.
Há duas origens do mito do Papai Noel. A mais conhecida a gente sabe: está ligada a São Nicolau, um santo de origem grega, que salvou marinheiros na tempestade, libertou moças prisioneiras e ficou famoso por ressuscitar crianças. Sua imagem de bom velhinho vem daí. A célebre obra “A lenda dourada”, que conta a vidas dos primeiros santos da igreja, dedica-lhe várias páginas.
Mas há uma outra origem dessa figura, que antecede ao cristianismo e que escapou ao próprio Lévi-Strauss. E aí o Papai Noel não é nada bonzinho. O mito do velhinho que, em pleno inverno europeu, gratifica as crianças trazendo presentes em um saco às costas é, na verdade, a forma como o imaginário cristão resolveu reformular um mito arcaico que era o avesso do Papai Noel.
Trata-se de um personagem que tinha também o nome de Nicolas. Ele vinha `a frente de uma horda de mascarados estalando seu chicote, fazendo soar os sinos dependurados em sua roupa e, assim, iam assaltando povoados e obrigando os moradores a celebrarem com eles suas orgias. Traziam consigo também sacos para o sequestro de crianças. Isto ocorria exatamente no solstício de inverno, época que a igreja, posteriormente, escolheu para fixar o nascimento de Cristo.
Há na memória, tanto dos povos nórdicos quanto dos franceses, belgas e alemães, referências à essa horda de cavaleiros perversos. Na região de Lorraine, existe a figura do Pai com Chicote que, ambiguamente, remete tanto ao bárbaro que vinha chicoteando seus cavalos, quanto ao Papai Noel que vem docemente “chicoteando” suas renas. Coincidentemente, na biografia de São Nicolau o chicote também aparece, mas de forma invertida, pois ele que é martirizado com um chicote. Na Alemanha, a figura do “Klaubauf” - um velho com um saco para recolher crianças - remete ambiguamente para a mesma lenda. E, na Inglaterra, esse vestígio da figura pré-cristã de Nicolau, aparece no nome do diabo que é chamado de “velho Nick”.
É fascinante como o imaginário acomoda nossos temores e expectativas elaborando personagens que podem ter até suas qualidade trocadas. Assim como na tradição cristã se construía igrejas com nomes de santos, onde antes havia um templo a Apolo, Minerva etc., também as lendas de outra época passaram por um tratamento ideológico.
Ainda bem que Papai Noel se transformou em algo bom. Já chega sermos vitimados o ano inteiro por uma série variada de saqueadores que não vêm de fora, mas que vivem no mesmo país que a gente.
[Crônica de Natal enviada por Affonso Romano de Sant'Anna]