A gente diz o que a língua permite. E ela permite pouco quando o ser bebe do absoluto. O que diria Deus se percebesse que já não o era mais? O que diria um mortal comum se compreendesse que ainda é Deus? O que dizer quando um escritor nos revela como deixou de ser Deus? Espanto. As palavras atrapalham-nos, pois quando a alma fala já não é ela quem diz. A língua é sempre fascista se queremos nomear o mundo. A visão absoluta é a cegueira. O exagero é a expressão do moderno. O gêneros foram estilhaçados. Graças a Deus. Ou melhor, graças a escritores que deixaram de ser Deus. Schlegel já provou que só se apreende o todo no fragmento. “A minha ambição é dizer em dez frases o que qualquer outro diz em um livro — o que qualquer outro ‘não’ diz em um livro.’, escreve Pedro Maciel. E consegue. Seu livro pode ser lido de olhos fechados e torna-nos um autor amplificado. Nietzsche dizia que seus aforismos eram a pura filosofia. Filosofia à golpes de martelo. Pedro Maciel tece sua escritura numericamente estilhaçada e diz que é um “romance”. Esses caras vieram para nos confundir. E conseguem. São deuses caídos. Ou serão anjos?
Trechos do livro:
21
(...): não me importo com as coisas perdidas mas com o tempo perdido. O vento nunca devolveu o meu tempo.
28
: pelo amor de Deus se vai ao inferno. Deus é um bom Diabo.
35
O espírito permanece no tempo e não no espaço. Jamais tive outro cárcere além do meu corpo.
37
O pensamento está sempre além do corpo. A linguagem é a máscara do pensamento.
40
(...): ele reparava atentamente em todo relâmpago que mergulhava no lago; fazia questão de medir a extensão dos raios para desvendar com quantos espelhos se esclarece uma noite. A hora dele não é deste tempo. Ontem ele deu um perdido no passado e correu para se adiantar mas não parou lá adiante como se fosse um antes. Continuou percorrendo, correndo, vivendo e morrendo todo dia. Todo dia é uma memória.
43
(...): se não há sonho, há muitas realidades a serem realizadas. O pesadelo é um oráculo.
48
Ele pôs fim à própria vida por uma questão de princípios. Se, na hora da morte de um homem, toda a compaixão dos outros homens se juntasse para impedi-lo de partir, esse homem não morreria.
86
Eu vivo às cegas. Minha sombra olha por mim.
121
Ontem visitei a cidade em que nasci; ninguém me reconheceu. Deus não se revela ‘no’ mundo.
2041
Não dê ouvidos aos adivinhos. (...) não há um mundo a descobrir.
Como deixei de ser Deus, Ed. Topbooks será lançado em São Paulo, no dia 20 de outubro, terça-feira, Livraria da Vila, Jardins. Al. Lorena, 1731, Jardins – 3062.1063. Nos vemos por lá.