02 julho 2020

SEMENTE
























para Renato Ishigami



sou a inescapável casa
que habito
a fonte que busco
iluminada
o paraíso e inferno
que me agitam
o impalpável eco
após o grito.

sou o lugar
que tanto almejo
o instante que ressoa
no infinito
a ação que se conclui
neste momento
o bem e o mal
que no mundo entrevejo.

sou aquele que é
já se fazendo
partícula por quem
o todo se apaixona
vida que permeia
o ambiente
sombra que acompanha
o movimento.

sou semente
sou a mudança que germina
em minha mente.








01 julho 2020

CORAÇÃO














aqui
neste lugar onde
o ar rarefeito arde
refaço meu inventário
de sombras.

aqui
neste lugar como
a hecatombe em meu peito age
desenho garatujas
em matizes.

aqui
neste lugar quando
o quintal de minha casa jaz
encontra-se a matriz
do universo.

aqui
no coração deste lugar
com olhos úmidos a me encarar
aquele menino
que um dia já fui.







30 junho 2020

NANQUIM





palavra que não se faz ludo
em configurações sutis
na pele luminosa

que não prefigura
realidades transcendentes
espaços paralelos superpostos

palavra que não lavra
universos numerados até o fim
páginas que se desdobram infinitas

são rastros de tinta em si
restos de tinturaria de tipos
lixos disfarçados de nanquim.




[Obra do argentino León Ferrari, “Carta a un general”]








29 junho 2020

CREPÚSCULO

















    no princípio era
    o ovo
    o pássaro em
    voo

    agora a um passo
    precipício
    motores sangram
    o poente

    indiferente
    enjoo






[Registro do fotógrafo alemão Daniel Biber em Costa Brava/ES]













28 junho 2020

GEMA PRECIOSA




















memória, incêndio de enigmas
joia rara que me desfigura
negligência, canto que me desatina

pedra rala que me tortura
andança pelo mundo de criança
ingênua de si, de tudo em suma

ignorante da vida em sua dança
a iludir-se com mantos imprecisos
epiderme diáfana de bem-aventurança

que nada dizem, pois cego é a seus signos
de nada valem na noite fria do deserto
que tudo velam a quem segue indeciso

mas o encontro beija a face quase certo
com um abraço hospeda o andarilho
e seus quitutes embriagam o não desperto

a alegria envolve e brinda o maltrapilho
tal amizade imanta seu caminho
celebra o hospedeiro a volta de um filho

com a manhã e o encontro em desalinho
o futuro do amigo preocupa o hospedeiro
que então tece engenho em gema e linho

uma joia sob a roupa pensa será certeiro
quando acordar e não encontrar-se comigo
levará consigo algo nada costumeiro

aquilo que ilumina e lhe dará eterno abrigo
transforma em ouro vida tão miserável
riqueza que sempre esteve e estará em seu umbigo.




[a propósito de uma parábola budista]






27 junho 2020

SOPRO













assim como não há
eu vejo

assim como não dá
ensejo

assim e só assim
desejo








[Imagem do espetáculo ‘Não Sopro’. Foto by David Mariano]











26 junho 2020

BANZO





carrego em meu lombo
várias máculas onomásticas.

sou Zé, filho de Edward
um desterro sem quilombo
e sobre o nome
a Cruz.

sou nenhum
mulato negro índio
sou ninguém
tingido d’água salgada vindo.

mesmo depois de liberto
com os sapatos a luzir
um ilhéu
que o destino não quis
soteropolitano.

um grapiúna no sul-
maravilha
quase impecável
sem marcas
       cicatrizes
não ungido
sem excesso de melanina.

algo assim próximo à matéria
alva que se quer tingir o mundo
visão última, clarão
dos que erraram o alvo
não tiveram sorte
e encontraram súbito
a própria morte.







[Baobás, Ilustração digital, 20x15 – 2020, de Alexandre Ignácio Alves. Confira mais de seu trabalho, aqui.]







25 junho 2020

GRAÇAS



















o corpo consuma múltiplas
violências.
o corpo feminino sempre foi
alvo preferencial.
é um templo que já foi sagrado
e diariamente é ultrajado.
em torno dele, homens dançaram
e impérios foram destruídos.
o tempo crispou seus pelos
e pássaros voaram sussurrando
o nome de Helena.
os deuses nunca suportaram
tanta graça e, invejosos,
derramaram sobre o mundo
todas as desgraças
urdindo mãos de muitos homens
para consumá-las.






[Vênus #5, Acrílica sobre tela – 1995, de Alexandre Ignácio Alves. Confira mais de seu trabalho, aqui.]


24 junho 2020

CONSIDERAR





















olhar com maravilha
fenômenos que cintilam
passageiros.
pastores a fitar paralisados
a luz noturna dos astros.
crianças a mirar silenciosas
o reflexo celeste
de seus olhos.
fios luminosos a riscar
o veludo negro
do cosmos.





23 junho 2020

CARDÍACO






     








     valorar é uma instância
     de tangência cardíaca.
     o coração contamina tudo.
     valores humanos são sempre
     valores do coração.
     uma ética que se preze
     é bombeada por uma estética.
     a estética é uma instância
     do fazer, da poiésis.
     e o que dá dimensão ao fazer
     é o olho da alma,
     um nome mais pomposo
     para o coração.







22 junho 2020

NIKÉ











































entre o zênite e o nadir
posto-me aqui sem nada
apenas com um tênis Nike
vaidoso como um faquir.







Niké é a deusa grega da vitória e está vinculada ao triunfo e à glória. Todos os deuses, atletas e guerreiros desejavam ter Niké ao seu lado. O que nos mostra como as grandes corporações são usurpadoras, antes de mais nada, do nosso imaginário, do nosso inconsciente coletivo.











21 junho 2020

CENTELHAS





        

















para Amaral Vieira e Yara Ferraz


céu e Terra são pousadas
onde os seres
fazem breve parada.

o tempo são redes,
hóspedes sem morada
espalhadas pelo sempre.

um Steinway ecoa no espaço
notas sagradas
de um Franz Liszt.









19 junho 2020

JAZZ

















o grave que jaz em nós
é o oco profundo do mundo.
uma frequência que desarmoniza
qualquer possibilidade de felicidade.
mas somos negros e algo em nós
resiste e grita.
nossa alma baila em moonwalk
no submundo do Hades.
aqui, nos Estados Unidos, em África
as mesmas marcas foram cravadas
nas estruturas.
o Brasil nos deu tudo de solapa.
uma ginga que encanta
quem não é bamba.
no ver da gente o samba
é pedra-mor.
nossas pegadas foram pregadas
na pedra
e buscamos sofregamente
decifrá-las.






18 junho 2020

TESSITURA














            o presente é ambidestro
            e nem sempre nos apetece
            mas é nele que a vida tece
            se faz presto e acontece.