05 julho 2020

TARTARUGA CAOLHA E O TRONCO FLUTUANTE






















[a propósito de uma parábola budista]


para se traçar um simples gesto
não basta armar-se de vontade
a luz mente e na direita está o sestro

é preciso saber esquecer a própria idade
pois nas profundezas de um mar escuro
até o sândalo não conduz à claridade

pode-se viver por muito tempo obscuro
tateando diante de si o tal anseio
feito criança na noite inseguro

a almejar o tão amado enleio
sem nenhum ontem em círculo vazio
ou amanhã que traga algum esteio

pode-se esperar milanos o tronco arredio
e súbito vê-lo passar com enganosa visão
ou tentar alcançá-lo feito gato no cio

como um quelônio sôfrego a exaustão
a deparar-se com mais um logro desvario
o sândalo na onda indo noutra direção.












04 julho 2020

O QUARTO LIVRO DO PENTATEUCO






















[para os que ainda dão importância ao Livro]




O recenseamento

a terra prometida
precisa ser conquistada
a cada dia.
os números são mais
do que a representação gráfica
de uma quantidade.
a rota que traçamos no deserto
são marcas que esvanecem
ao nascer do sol.



Oferendas

o total dos seres oferecidos em holocausto
é inumerável.
e só faz crescer.



A partida

nem tudo foi celebrado
o tempo se mostrou indeterminado.
no dia da partida, uma nuvem
encobriu a todos e a tudo.
durante toda a noite
notava-se o seu aspecto de fogo.
trombetas soaram
como agulhas no ouvido.
o momento da partida chegara.



Novos arranjos

a cada segundo
são vendidas sete unidades
de leite Moça no mundo.

a cada vinte e três minutos
um jovem negro é morto
no Brasil.

a cada vinte e quatro horas
seis por cento da população consome
sessenta por cento dos recursos do mundo.

a todo instante
milhares de princípios são solenemente
ignorados.

agora mesmo
enquanto você se espanta com os números
uma criança acaba de tombar de fome.








03 julho 2020

FEITIÇO
















algo assim tão
inatural
que chega a ser
outra natureza

algo sim não
mais factício
por demais
tal coisa feita

que de tão artifício
vira arte
vira livro
vira ofício.






02 julho 2020

SEMENTE
























para Renato Ishigami



sou a inescapável casa
que habito
a fonte que busco
iluminada
o paraíso e inferno
que me agitam
o impalpável eco
após o grito.

sou o lugar
que tanto almejo
o instante que ressoa
no infinito
a ação que se conclui
neste momento
o bem e o mal
que no mundo entrevejo.

sou aquele que é
já se fazendo
partícula por quem
o todo se apaixona
vida que permeia
o ambiente
sombra que acompanha
o movimento.

sou semente
sou a mudança que germina
em minha mente.








01 julho 2020

CORAÇÃO














aqui
neste lugar onde
o ar rarefeito arde
refaço meu inventário
de sombras.

aqui
neste lugar como
a hecatombe em meu peito age
desenho garatujas
em matizes.

aqui
neste lugar quando
o quintal de minha casa jaz
encontra-se a matriz
do universo.

aqui
no coração deste lugar
com olhos úmidos a me encarar
aquele menino
que um dia já fui.







30 junho 2020

NANQUIM





palavra que não se faz ludo
em configurações sutis
na pele luminosa

que não prefigura
realidades transcendentes
espaços paralelos superpostos

palavra que não lavra
universos numerados até o fim
páginas que se desdobram infinitas

são rastros de tinta em si
restos de tinturaria de tipos
lixos disfarçados de nanquim.




[Obra do argentino León Ferrari, “Carta a un general”]








29 junho 2020

CREPÚSCULO

















    no princípio era
    o ovo
    o pássaro em
    voo

    agora a um passo
    precipício
    motores sangram
    o poente

    indiferente
    enjoo






[Registro do fotógrafo alemão Daniel Biber em Costa Brava/ES]













28 junho 2020

GEMA PRECIOSA




















memória, incêndio de enigmas
joia rara que me desfigura
negligência, canto que me desatina

pedra rala que me tortura
andança pelo mundo de criança
ingênua de si, de tudo em suma

ignorante da vida em sua dança
a iludir-se com mantos imprecisos
epiderme diáfana de bem-aventurança

que nada dizem, pois cego é a seus signos
de nada valem na noite fria do deserto
que tudo velam a quem segue indeciso

mas o encontro beija a face quase certo
com um abraço hospeda o andarilho
e seus quitutes embriagam o não desperto

a alegria envolve e brinda o maltrapilho
tal amizade imanta seu caminho
celebra o hospedeiro a volta de um filho

com a manhã e o encontro em desalinho
o futuro do amigo preocupa o hospedeiro
que então tece engenho em gema e linho

uma joia sob a roupa pensa será certeiro
quando acordar e não encontrar-se comigo
levará consigo algo nada costumeiro

aquilo que ilumina e lhe dará eterno abrigo
transforma em ouro vida tão miserável
riqueza que sempre esteve e estará em seu umbigo.




[a propósito de uma parábola budista]






27 junho 2020

SOPRO













assim como não há
eu vejo

assim como não dá
ensejo

assim e só assim
desejo








[Imagem do espetáculo ‘Não Sopro’. Foto by David Mariano]











26 junho 2020

BANZO





carrego em meu lombo
várias máculas onomásticas.

sou Zé, filho de Edward
um desterro sem quilombo
e sobre o nome
a Cruz.

sou nenhum
mulato negro índio
sou ninguém
tingido d’água salgada vindo.

mesmo depois de liberto
com os sapatos a luzir
um ilhéu
que o destino não quis
soteropolitano.

um grapiúna no sul-
maravilha
quase impecável
sem marcas
       cicatrizes
não ungido
sem excesso de melanina.

algo assim próximo à matéria
alva que se quer tingir o mundo
visão última, clarão
dos que erraram o alvo
não tiveram sorte
e encontraram súbito
a própria morte.







[Baobás, Ilustração digital, 20x15 – 2020, de Alexandre Ignácio Alves. Confira mais de seu trabalho, aqui.]