10 novembro 2020

ARGILA, de Thiago de Mello

 















“Em 1942, Thiago de Mello embarcou num navio com destino ao Rio de Janeiro. Com apenas 16 anos, já no curso de Medicina, obtinha boas notas e, ao mesmo tempo, dedicava-se a sua vocação literária. Conheceu Carlos Drummond de Andrade, que o recebeu com estima e percebeu, em seus primeiros textos, uma força que só poderia ser conquistada por alguém de forte vocação literária. Mello, aconselhado por Drummond, apresentou seus textos a Álvaro Lins, na época diretor de redação do jornal. Seus poemas foram publicados no jornal Correio da Manhã.

Na década de 50, o suplemento literário do jornal Correio da Manhã era um dos principais meios de divulgação da produção literária nacional, tendo obra de autores consagrados e jovens estreantes como Thiago de Mello.

Em pouco tempo, conquistou a amizade de Manuel Bandeira, José Lins do Rego e de outros autores de renome. Na época, Thiago de Mello fundou com Geir Campos a editora Hipocampo. Através da atividade de editoração, paralela ao de jornalismo, Mello e o seu parceiro conseguiram, além da experiência no trato da obra literária, a produção de seus primeiros livros e o aprofundamento das relações no mercado editorial. Isso envolvia o contato com escritores contemporâneos, editores, artistas e críticos literários, algo fundamental para o capital literário de um escritor em início de carreira.”

 

[Trecho da Dissertação de Mestrado apresentada por Pollyanna Furtado Lima à Banca Examinadora do Mestrado em Letras - Estudos Literários do PPGL]

 


Poema publicado no jornal Correio da Manhã.

 

ARGILA
Thiago de Mello

 

Artesãos negligentes esqueceram
em nós leves resquícios de imatéria:
mas esta frágil parte, que se esquiva
da terrena prisão e tenta o voo
num arremedo de pássaro cego,
e que sem asas corta um outro espaço
tingido pelas cores dos enigmas,
logo retorna ao ver o seu impulso
anular-se ante a face do mistério.


Nestes regressos, triste se agasalha
entre os desvãos da argila e nos convence
de que estamos grotescamente fixos
no chão; berço, morada, e nosso além.





[Imagem: Thiago de Mello e Pablo Neruda no Chile]




06 novembro 2020

FILHOS DA TERRA

 











Meus irmãos estão mortos

sendo mortos

e eu continuo a chorá-los na solidão

de nosso isolamento.

Nossos amados foram mortos

continuam a ser mortos

com aquele toque fatal

de soberba e estupidez.


O desaparecimento de milhares

em tal agonia

mergulha nossa vida

no cotidiano da desgraça.

Nossos irmãos são mortos

e seu sangue mancha os campos

já devastados da Terra.

Ainda assim, continuamos aqui 

vivendo, curtindo, fazendo memes

como se vivia quando estavam

sentados no trono da vida

e nossos prados seguiam 

iluminados pelo Sol.

 

Morreram todos e continuam

com suas mãos estendidas

e os olhos a refletir

o desprezo, o ódio e a escuridão

iminente.

 

Morreram em silêncio,

pois os ouvidos de todos 

continuam fechados 

para os apelos

e tantos gritos desolados.

 

Morreram porque são pacíficos

e se acostumaram a morrer 

de fome, de soco ou de bala

na terra

onde sempre jorrou

o ouro, o melaço

e a água límpida 

e ácida da vida.





[Carcaça de um macaco-prego morto em área queimada no Pantanal. Foto by Lalo de Almeida]










04 novembro 2020

PLUMAS










o peso empluma as coisas

quando ungidas 

pelo sonho.

as palavras são levadas

pelo vento leve

dos devaneios.

em meus sonhos os cavalos

saltitam azuis

em nuvens de algodão-doce.

deixemos que a linguagem

averigue

o que o sonho adivinhou.

a linguagem evapora

e vai mais além

do que o sonho

deflagrou.









30 outubro 2020

CANTOS

 










minha cidade é meu sítio

de desterro

ela se funde com todos os locais

do passado e do presente

locus de um declínio

apocalíptico.

 

o que ainda floresce

em mim

não sou eu

são meus sonhos

a esperar que a noite

pegue no sono

e lampeje faíscas 

de fogo.

 

a visão de rostos na multidão

são como pétalas rubras

espalhadas pelo chão negro

uma épica sem enredo

definido

uma lógica poética

do assombro.


com esses fragmentos

refaço minhas ruínas.









29 outubro 2020

CACTOS

 















chove no coração chamuscado

da floresta.

no âmago despedaçado

da metrópole, nada mais resta.

só cactos atravessados

em nossa goela

a aspereza intratável

de seus gestos.





[poema presente no livro “Pandemônio”, Kotter Editorial. Reserve já seu exemplar: https://kotter.com.br/loja/pandemonio-edson-cruz/. Capa de André Albuquerque (@kandros8)]








27 outubro 2020

come cummings

 




nessa

rede

me

esfar

inho

 

página

em

branco

meu

moinho

 

bem

no

meio

do

rede

moinho









26 outubro 2020

KÓLAPHOS

 













as palavras que interessam 
derivam do grego

embora muitas

já nada signifiquem.


Crátilo de Platão

precisa ser reescrito.


politeia é o papel dos cidadãos

no Estado.
economia já não significa 
‘administração da casa’.


o sentido original dos vocábulos 
foram estuprados.
são milhares de estupros

a cada segundo.
milhares de princípios
ignorados.

o cinismo impera
no império cínico.


o sofrimento prolifera
para quem já sofre 

e tanto.

o ódio triunfa

com ou sem 

Trump.


todos são ignorados.
o corpo é ignorado.
o ser é ignorado.
o futuro é ignorado.
a ignorância é nossa

ninguém nos tira.

kólaphos é o princípio

e o fim.
há muitas acepções

para esse estado de coisa 

choque. 
pancada. 
incisão. 
lesão. 
murro. 
ardil. 
trama. 
rombo. 
abalo. 
rasgo. 
desgraça.

golpe.


somos sobreviventes

feito baratas

nos acostumamos

aos escombros

seguimos na sombra

dando de ombros.

nada, nem as palavras

nos resgatarão.

os campos semânticos

foram dizimados.











 










23 outubro 2020

ODES

 











              para o querido Leme Xuxuzão



não me importo

com o passado.

a mim, interessa

o presente

que nos foi dado.

a vida e o carpe diem

doado pelo bardo.

matriz de tudo

que um dia será

revelado. 









22 outubro 2020

SOUVENIRS

 





 







ano que vem não irei ao Japão

nem visitarei Jerusalém

estarei por aí recolhendo

os pedaços de meu coração americano

mas enviarei cartões-postais

para os amigos

e para mim mesmo

decalcarei neles selos comemorativos

comprados em algum mercado de Istambul

o envelope exalará um odor de milho

e em letras miúdas grafarei meu nome

o sobrenome e também o local

de alguma visitação histórica ou religiosa

no cartão se lerá: queridos, saudades, fico por aqui

não visitei templos budistas nem sinagogas

vi de relance a Mona Lisa

mas não era a original

as catedrais daqui são inigualáveis

mas só as vi de fora

as entradas estão proibidas

os monitores dos museus foram desligados

há muita “gente” na rua buscando bares

os branquelos passeiam com suas bermudas

e os que ali éramos morenos

fingem que são mouros

pois há gringos da Califórnia e eles parecem

que são louros

fico do lado de fora a observar a encenação

de um mundo que já não é o mesmo

quero crer que minha visão é privilegiada

uma serenata sem metáforas

me azucrina as noites

não há palavras para o som metálico

das castanholas que vibram

sob a tensão que se instaurou

no velho e bizarro mundo.











21 outubro 2020

HAICAIS

 














bebê tropeçando

nas formigas do caminho:

risinho divino.

 

***

 

o sino interrompe

a conclusão do poema:

silêncio na noite.

 

***

sabiá trinando.

parece que a vida toda

carmim se aveluda.

 

***

o longe parece

tão perto depois da prece.

ou eu que desperto?








20 outubro 2020

SEM TÍTULO

 










Mais uma criança tomba

feito árvore na floresta.

Não existe mais.

Nunca existiu,

aliás.






19 outubro 2020

ESFINGE

 















um incansável pintor

a capturar a mãe

de todas as formas. 

a fêmea ancestral

a imiscuir-se nas curvas

da história.

o ondular de eras

inglórias

o sussurrar cósmico

do tempo.

 

o ardiloso mito

inaugural

o nascedouro de todos

os enigmas.





Trabalho de Judy Scotchford, pintora australiana contemporânea.







15 outubro 2020

HERMES

 











o diabo é a greve

dos Correios.

ainda bem que deus

pai das formas breves

trafega

em meus e-meios.






14 outubro 2020

ARTEFATOS

 












Há poemas que são verdadeiros

bonsais.

Há poetas que desvelam segredos

e que tais.

Há poesia que engana com poemas

tão naturais.

 

Este aqui até que começou bem

mas só quer passar a boiada.

 

O som se insinuou de mansinho

como quem não quer nada.

 

O sentido veio junto de enfiada

e você nem sentiu a estocada.