Sem dúvida nenhuma, uma das questões que o advento da internet veio problematizar e questionar, é a noção de autoria. Essa palavrinha/conceito só passou a existir de fato na literatura, se não estou enganado, a partir do século XIX. Antigamente, pelo menos na chamada Idade Média latina, tínhamos uma noção de “autoridade” que estava relacionada diretamente ao discurso, e não à figura de um indivíduo propriamente dito.
No romantismo é que se gera a idéia de um indivíduo artístico, a figura do “gênio” e a do “marginal”. Como propõe Foucault, em sua palestra para a Sociedade Francesa de Filosofia (em 1969), mereceria um estudo mais pormenorizado saber “como é que o autor se individualizou numa cultura como a nossa, que estatuto lhe foi atribuído, a partir de que momento, por exemplo, se iniciaram as pesquisas sobre a autenticidade e atribuição [de autoria], em que sistema de valorização foi o autor julgado, em que momento se começou a contar a vida dos autores de preferência à dos heróis, como é que se instaurou essa categoria fundamental da crítica que é ‘o-homem-e-a-obra’...”
Se não continuo enganado em meu raciocínio, creio que foi o próprio Foucault quem demonstrou que a noção de autoria interessava ao poder estabelecido, a igreja etc., pois com ela se podia melhor aferir as penas e culpas de determinados discursos transgressores.
E eu, nessa pequena reflexão, invisto-me da autoridade e do discurso de Foucault para valorizar a autoria de meu texto, recheado de citações, e quem sabe me livrar das penalidades cabíveis a minha inapetência intelectual, ou, o mais importante, seduzir o incauto leitor aos argumentos de “meu” discurso. Mas, mesmo assim, leitor cúmplice, assinarei meu nome no final, ou no começo como podes bem notar.
Em todo caso, anote bem o que dizia o grande Michel: “Assim que se instaurou um regime de propriedade para os textos, assim que se promulgaram regras estritas sobre os direitos de autor, sobre as relações autores-editores, sobre os direitos de reprodução, etc, – isto é, no final do século XVIII e no início do século XIX –, foi nesse momento que a possibilidade de transgressão própria do ato de escrever adquiriu progressivamente a aura de um imperativo típico da literatura. ...”
Você pode notar, prezado, que eu ainda me dou ao trabalho de colocar aspas (pois sou “intelectualmente honesto”) aos discursos que me aproprio, mesmo você, talvez, não sabendo se a ordem dos fatores, ou da fatura, apresentada poderia mudar drasticamente o produto.
Para finalizar o rosário de citações de Valery-Foucault, anote mais essa – mas me dê o crédito também, pois eu também penso assim, talvez, não com as mesmas palavras, claro – de nosso filósofo de última hora: “...os discursos ‘literários’ já não podem ser recebidos se não forem dotados da função autor: perguntar-se-á a qualquer texto de poesia ou de ficção de onde é que veio, quem o escreveu, em que data, em que circunstâncias ou a partir de que projeto. O sentido que lhe conferirmos, o estatuto ou o valor que lhe reconhecermos dependem da forma como respondermos a estas questões.”
Percebeu, mon chéri, o que isso significa? Se ainda não, então, leia rapidinho o texto de outro grande autor plagiado e diluído mundialmente, o Borges de Pierre Menard. Aquele texto fundamental onde Borges prova que o autor do Quixote não foi o fidalgo Cervantes.
Agora que já enchi bastante a lingüiça desta página em branco, devo dizer que esse palavrório todo é para sugerir a leitura do livro Caiu na rede acabou, de Cora Ronai. O livro já é antigo (aos padrões velozes dos novos tempos), mas o tema atualíssimo.
Ela tenta entender e analisar a inocência, ou a cara-de-pau de muitos que repassam textos, na internet, como se fossem seus, ou de autores consagrados, omitindo, ou rasurando, a autoria real do texto.
Dê uma conferida aqui.
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