Edson Cruz - Começo por uma genealogia que nos aproxima: o poeta Manoel de Barros. Teu livro Biografia de uma Árvore, de 2002, a começar pelo título, parece-me que foi todo autorizado pelo Manoel, além dos pássaros, raízes e frutos. Esta relação amorosa vem desde quando?
Fabrício Carpinejar - Eu tenho paixão pela poesia anônima. Uma poesia que seja somente pouso de rio. Acredito que o rio sabe pousar melhor do que a ave. Biografia de uma árvore tem algumas peculiaridades que o diferenciam da poética do chão de Manoel de Barros: poesia extremamente tensa, que pergunta e não responde, quebra a bússola e não dá um rumo. Não faço poesia para consolar, mas inquietar. O melhor riso acontece quando não o esperamos. Meu desespero é apenas uma forma de rir. Não sou discípulo nem de mim mesmo. Mudo de endereço antes de me repetir. Eu sempre acreditei que o melhor esconderijo que havia em casa era o violino que ninguém tocava. Escondi minha poesia dentro das cordas. Sou um perfeccionista pelas imperfeições. Aprendi a me espreguiçar com um único suspiro. O fogo é um suspiro da água.
EC - Soube de tua tese sobre ele. Você gostaria de colocá-la sob nossos olhos e corações? Qual a nervura que, nela, você amplia?
FC - Meu estudo afirma que Manoel de Barros é um grande teólogo. Ele busca professar sabedoria em sua teologia dos trastes, enumerando o que um homem precisa fazer para ser uma paisagem. O autor procura repassar a pedagogia do ínfimo, ensinar como o leitor deve se comportar para enxergar o poema. Não questiona, não duvida, propõe uma poética do alumbramento, exclamativa. Realiza uma catequese: converter o selvagem em uma voz dócil e culta. Sua poesia tem o formato de conto, com pontuação epistolar. Usei como antítese em meu estudo a poesia de João Cabral. É curioso notar que Cabral dizia ser cerebral e é altamente espontâneo. Manoel diz ser espontâneo e é altamente cerebral. Ainda estamos presos nas falsas aparências.
EC - Em teu livro de 2000, Um Terno de Pássaros ao Sul, nota-se a importância de suas raízes afetivas, principalmente a figura paterna, para sua poesia. Fale-nos um pouco da sua relação com a poesia de Carlos Nejar. Quais seus poemas preferidos?
FC - O pampa é meu pai. O pampa é também pai de meu pai e pai de meu avô. Eu tenho uma ligação fortíssima com a terra e sua exuberância. Sempre prefiro sair pela porta do pátio do que pela porta da frente em minha casa. Passava pelos cheiros da cozinha e absorvia a atmosfera da horta. Misturei essa carga ancestral com minha vida urbana, com a urgência do cotidiano. Minha poesia faz romance em versos. Invento para libertar a mentira do hábito. Uma verdade já decorada não me agrada. Eu organizei uma antologia da poesia de Nejar, chamada Breve História do Mundo, que saiu pela Ediouro. Disponho a obra nejariana por arquétipos e espaços como assoalho, porão, calabouço.
EC - Qual a matéria da poesia?
FC - Tudo é matéria de poesia, principalmente o que não existe. O pó pisado de um pão é matéria de poesia. Uma ave manca é matéria de poesia. Um homem que se esqueceu em um casaco é matéria de poesia. Uma mulher que pisca a boca quando mente é matéria de poesia. É se encontrar onde não estamos. É se perder onde estamos. É conciliar contrários, reunir o imponderável, fazer um esforço de solidariedade para que palavras amuadas possam enfim se cumprimentar. O poema é uma mão tremendo. Seguro no poema, não para aliviar o tremor, mas para ser contagiado por ele. A façanha do verso é desabituar os olhos, mostrar a naturalidade da luz, do erro, sua extinção e vacilo. Uma luz perto de queimar tem a mesma força da escrita.
EC - O que significa hoje o conceito de invenção na poesia e como você se relaciona com ele - se é que isto te interessa?
FC - A grande poesia deve ser invenção para o autor, mas chegar ao leitor apenas como descoberta. Aquilo que se inventa na insônia precisa ter o frescor da descoberta, inclusive para quem escreveu. Requer portanto disciplina e uma dose cavalar de desconfiança. A tradição existe – não para ser reverenciada – como provocação, para ser questionada. Sou uma criança que não tem medo da pergunta banal. É na banalidade que a comoção aparece. O grande problema da poesia: ela é um dom natural e a complicam para parecer difícil. Só o simples permanece. Sobre minha relação com a invenção, não aceito me repetir. Costumo dizer: os poemas desconfiam de quem necessita repeti-los. Eu procuro na invenção um modo de me trair. Ao trair minha memória, estou sendo realmente fiel.
EC - O número quântico de estranheza proposto pela física quântica se aproxima da linguagem poética?
FC - Poderia se chamar até de número ôntico. Acho que se aproxima. Assim como a música é matemática, como a matemática é música, como a poesia é a matemática da música. Guardo um tanto de estranheza para ler depois. Com a escrita, não pretendo esgotar segredos, mas prolongar o mistério. A poesia é a reserva ecológica da linguagem, tudo se junta como ciscos para se elevar em ninho. Entendo um pouco de tudo, o resto deixo para intuição tomar conta. Não sofro por me perder, sinto até prazer em não reconhecer as ruas. Todo o caminho errado passa a ser uma saída.
EC - Como acolher o ser essencial cujo coração não está contaminado pelas demandas do mundo?
FC - Eu quero me contaminar pelas demandas do mundo, pelos ruídos, pela escala cardíaca de uma ave, de um trem, sem exceção. Minha essencialidade é esquecer de mim. Não escrevo para me isolar, mas para me doar. Ficamos muito tempo fechados pensando que estamos a nos proteger. A gente só se protege se repartindo. O melhor escritor é invisível, somente seu texto fica visível. Procuro ser anônimo para desafiar o que não pode ser dito. Minha vantagem é a autocrítica, a corrosão, a ironia, minha maneira de brincar com o desespero para fazê-lo rir, ao invés de ajudá-lo a chorar. A poesia é pura porque não tem medo de se misturar. Ela não classifica, não exclui, não escolhe, não cria preconceitos. Ela é adesão instantânea, a vontade de compreender e não julgar. Desejo entender a minha rua e já estarei entendendo o meu tempo. Critico o idealismo da poesia como erudição, vaidade e dom. Não é a inspiração que nos faz apaixonar, mas a fé de se superar sendo dois. Poesia é adoecer o mundo e curá-lo.
EC - Quais seus escritores de preferência e como se dá a magia da literatura para o Carpinejar leitor?
FC - Eu escrevo meus livros apenas depois de memorizá-los inteiros. Eu fico assobiando versos durante meses, sem cair na chantagem de um papel. Nada de anotar em pedaços, cadernetas, folhas. O livro precisa primeiro sobreviver à memória para depois ser escrito. Esse processo pode demorar anos e muitos poemas se perdem no caminho e não conseguem andar até o final. O que é essencial, permanece. Arrumo os versos em passeios pelas ruas de São Leopoldo, acentuando seu fôlego musical. Quando sento no computador, o livro já desce pronto. Esse método intuitivo colabora para meu projeto de ler minha obra como um único romance versificado. Cada título é um capítulo. Só a memória é capaz de dar distanciamento íntimo. A imaginação é a minha primeira leitora. Dos meus autores prediletos, são tantos que não os reduzo a uma lista. Tudo me influencia, até o que não foi escrito. Aprecio enormemente o chileno Nicanor Parra e sua antipoesia.
(a poesia de Nicanor Parra: http://www.poesia-inter.net/indexnp.htm)
EC - Você, que me parece amante da escola cabralina das facas, lê a poesia feita hoje? Hoje, onde o engenho não tem praça?
FC - Eu não sou amante da escola cabralina. Talvez seja amante das facas (risos). Eu admiro João Cabral e sua poesia sem arestas. Admirar não significa servir, mas respeitar e ter noção de que ele já cumpriu o que sua voz prometia. Ele não precisa de discípulos. Cabral não é uma escola, mas uma prisão. Ninguém consegue imitá-lo sem empobrecer o original. Não recomendo a ninguém, é prisão perpétua. A poesia brasileira contemporânea vive um grande momento. Concordo com Ivan Junqueira e a considero uma das melhores feitas no mundo, sem exagero. Veja apenas Minas Gerais: Ricardo Aleixo, Fabrício Marques, Wilmar Silva, Fernando Fábio, Iacyr Anderson, Edmilson, Prisca, Ângela Leite de Souza, Ana Elisa Ribeiro, etc. Eu citei aleatoriamente um estado, imagina todo o país. Sofremos um complexo de inferioridade diante dos mortos (Drummond, Cabral, Bandeira, Jorge de Lima) e de outros gêneros. O poeta brasileiro anda de cabeça baixa como um cavalo, sem a consciência de sua velocidade. Basta olharmos com mais compreensão e menos ranço. Nossa poética retomou o gosto de colocar as cadeiras na rua, de se comunicar e aprender com as diferenças, de ser febril e presente, de não renunciar a sua época em nome de uma imortalidade duvidosa.
Carpinejar, Fabrício Carpi Nejar, poeta e jornalista, mestre em Literatura Brasileira pela UFRGS. Nasceu em Caxias do Sul (RS) aos 23 de outubro de 1972. É autor dos livros: As Solas do Sol (Bertrand Brasil, 1998), Um Terno de Pássaros ao Sul (Escrituras Editora, 2000, esgotado) (Bertrand Brasil, 3ª edição, 2008), objeto de referência nos The Book of the Year 2001 da Enciclopédia Britânica, Terceira Sede (Escrituras, 2001), Biografia de uma árvore (Escrituras, 2002), Caixa de Sapatos (Companhia das Letras, 2003), Porto Alegre e o dia em que a cidade fugiu de casa (Alaúde, 2004), Cinco Marias (Bertrand Brasil, 2004), Como no Céu e Livro de Visitas (Bertrand Brasil, 2005), O Amor Esquece de Começar (Bertrand Brasil, 2006), Filhote De Cruz Credo (A GIRAFA EDITORA, 2006), Meu filho, minha filha (Bertrand Brasil, 2007, Canalha! (Bertrand Brasil, 2008) e Diário de um Apaixonado: sintomas de um bem incurável (Mercuryo Jovem, 2008). Blogue: http://carpinejar.blogspot.com/ E-mail: carpinejar@terra.com.br
bela entrevista. ha muito que o sigo.
ResponderExcluirValeu, Sylvia.
ResponderExcluiro Carpinejar é craque em responder...
Venho divulgar meu primeiro livro de poesias - VITRAL COLORIDO – EDITORA PROTEXTO-Melissa Morgana.
ResponderExcluirE“Poesias ternas, filosóficas, bem humoradas e com um toque de sensualidade”
Compra pelo site da editora: www.protexto.com.br
Envio por meio de comentário, porque não encontrei e mail.
Obrigada