16 janeiro 2021

PATRIMÔNIO

 

















  o desastre parece não ter fim.

  o fatídico dos dias se espraia

  e não se consuma.

 

  vivemos no país do sol

  em calendário de contenda

  com a noite.

 

  a esperança se esfuma

  em seu perfil de âncora

  como um carvão a perfilar

  os seus cristais de bruma.

 

  uma oração ressoa

  entre a hora do boi e a do tigre.*

 

  garatujas 

  de futuros impossíveis. 

  esboços

  de tempos vindouros.

 

  a ação 

  como se o sonho 

  se impusesse 

  duradouro

  e a fé cintilasse 

  como um tesouro.

 

 



 

 

*Período entre 1 hora e 5 horas, considerado no budismo como um intervalo crucial em que, de acordo com uma antiga crença chinesa, a vida se move do ciclo negativo (yin) para o ciclo positivo (yang), do sono para o despertar, ou da morte para a vida.


















07 janeiro 2021

ALVEJAR

 












balas desviam

lábeis

perdidas

e adestradas

a eleger hábeis

certeiras

alvos

que sestram

em peles

que não são

alvas.






07 dezembro 2020

TROPEL

 












manipular os mitos deixando

que eles nos refaçam impermanentes

na conflagração de formas

e tramas.

lidar com o inconsciente informe

dos seres que se camuflam

nos sonhos.

enfrentar a surda batalha

com as palavras que copulam

com o silêncio.

recuperar aquele Egito

de uma imaginação em chamas

ou o mar da cor de vinho

ofertado por Homero.

videntes dentro da neblina.

aquele que faz chorar os cavalos

de Aquiles.

o poeta é um historiador

do tropel de sonhos incontidos.






03 dezembro 2020

ESPECULAR

 




 









voltar a ler o que parece

ser chuva e desejos

oblíquos.

traduzir o poema da vida

com a linguagem diáfana

do ser.

ações do espírito a refletir

semelhanças

de uma poética original.

com o reflexo e seu acentos

de luz e sombra

apreender o que nasce

do espelho.

escritura invertida do ser

na luz especular 

que volta a ser 

pelo ser

capturada.







[Pintura Chuva Oblíqua, de Gonçalo Ivo, 2001]






 


26 novembro 2020

TULIPAS










as palavras não deixam na mão

a casta dos que amam.

assim como parece ser em vão

dar um basta ao sofrimento

que nos imanta.

o aprendizado do amor

aperfeiçoa a razão

e começamos a inventar

saídas para a desordem

dos dias.

a recriar tulipas

nos jardins abandonados

da imaginação.










19 novembro 2020

INSIGHT

 











a luz toca os sentidos 

antes que possamos 

percebê-la.


antes da escrita do poema

a poesia nos apalpa 

com seus dedos de aurora.


um arco-íris se ergue

luminoso

na atmosfera do espírito.


um poema se oferece

teimoso

como um anjo decaído.






[Ilustração de Milton Mastabi]









17 novembro 2020

PINTURA RUPESTRE

 












o discurso da vida deve ser inscrito

como um poema.

o povo é sempre o grande artífice

de uma grande arte.

poeta é quem restaura a consciência

do povo pela linguagem.

o poema gesta verdades que o coração

é capaz de tocar.

a imaginação nos acrescenta mais

do que a verdade nos impõe.

o real que vale a pena ser cantado

é aquele que foi absorvido pelo sonho.

escrever é sempre fugir do eu-lugar.

debaixo da pele do silêncio e das palavras

se instaura o abismo do poético.

criar é educar o ser para a linguagem.

na complexidade das coisas simples

pode-se ouvir o rumor de uma Lei

e o pensamento de um deus

absorto.













16 novembro 2020

AFIRMATIVO

 











sim, negritude é uma manifestação cultural

e política mobilizadora.

os argumentos que livram o negro das armadilhas

do discurso colonial tornam-se novas formas

de idealização do negro.

escritor negro, literatura negra, 

literatura afro-brasileira podem

aprisionar, mas o debate é salutar.

o critério para definir o que é negro deve ser cultural.

a perspectiva mais ampla sobre essas questões deveria 

ser a dos negros.

a cultura é uma teia de significados tecidos

ao redor de nós mesmos.

urge captar a densidade simbólica

das coisas.

miscigenação cultural pode provocar mudanças

em determinadas etnias.

o oponente não é o brasileiro branco

e sim o brasileiro racista.

identidade nacional coesa é papinho

de redação de vestibular.

afrodescendente é o resgate de uma descendência

diluída nas miscigenações.

o branqueamento produz escrituras esquecidas

das desigualdades.

além da mimese das formas europeias,

sob a melodia das flautas pan

subsiste os ritmos africanos sufocados.

somos um país de mestiços

e isso não quer dizer que antecipamos

um mundo sem raças.

temos que ser afirmativos.

os signos devem ser postos novamente

em movimento.

Machado, Castro Alves e Cruz e Souza

sempre foram negros.

somos todos exilados de nós mesmos.

somos todos negros cravados

de escravidão.

sim, homens e mulheres brancos já falaram

demais.









10 novembro 2020

ARGILA, de Thiago de Mello

 















“Em 1942, Thiago de Mello embarcou num navio com destino ao Rio de Janeiro. Com apenas 16 anos, já no curso de Medicina, obtinha boas notas e, ao mesmo tempo, dedicava-se a sua vocação literária. Conheceu Carlos Drummond de Andrade, que o recebeu com estima e percebeu, em seus primeiros textos, uma força que só poderia ser conquistada por alguém de forte vocação literária. Mello, aconselhado por Drummond, apresentou seus textos a Álvaro Lins, na época diretor de redação do jornal. Seus poemas foram publicados no jornal Correio da Manhã.

Na década de 50, o suplemento literário do jornal Correio da Manhã era um dos principais meios de divulgação da produção literária nacional, tendo obra de autores consagrados e jovens estreantes como Thiago de Mello.

Em pouco tempo, conquistou a amizade de Manuel Bandeira, José Lins do Rego e de outros autores de renome. Na época, Thiago de Mello fundou com Geir Campos a editora Hipocampo. Através da atividade de editoração, paralela ao de jornalismo, Mello e o seu parceiro conseguiram, além da experiência no trato da obra literária, a produção de seus primeiros livros e o aprofundamento das relações no mercado editorial. Isso envolvia o contato com escritores contemporâneos, editores, artistas e críticos literários, algo fundamental para o capital literário de um escritor em início de carreira.”

 

[Trecho da Dissertação de Mestrado apresentada por Pollyanna Furtado Lima à Banca Examinadora do Mestrado em Letras - Estudos Literários do PPGL]

 


Poema publicado no jornal Correio da Manhã.

 

ARGILA
Thiago de Mello

 

Artesãos negligentes esqueceram
em nós leves resquícios de imatéria:
mas esta frágil parte, que se esquiva
da terrena prisão e tenta o voo
num arremedo de pássaro cego,
e que sem asas corta um outro espaço
tingido pelas cores dos enigmas,
logo retorna ao ver o seu impulso
anular-se ante a face do mistério.


Nestes regressos, triste se agasalha
entre os desvãos da argila e nos convence
de que estamos grotescamente fixos
no chão; berço, morada, e nosso além.





[Imagem: Thiago de Mello e Pablo Neruda no Chile]




06 novembro 2020

FILHOS DA TERRA

 











Meus irmãos estão mortos

sendo mortos

e eu continuo a chorá-los na solidão

de nosso isolamento.

Nossos amados foram mortos

continuam a ser mortos

com aquele toque fatal

de soberba e estupidez.


O desaparecimento de milhares

em tal agonia

mergulha nossa vida

no cotidiano da desgraça.

Nossos irmãos são mortos

e seu sangue mancha os campos

já devastados da Terra.

Ainda assim, continuamos aqui 

vivendo, curtindo, fazendo memes

como se vivia quando estavam

sentados no trono da vida

e nossos prados seguiam 

iluminados pelo Sol.

 

Morreram todos e continuam

com suas mãos estendidas

e os olhos a refletir

o desprezo, o ódio e a escuridão

iminente.

 

Morreram em silêncio,

pois os ouvidos de todos 

continuam fechados 

para os apelos

e tantos gritos desolados.

 

Morreram porque são pacíficos

e se acostumaram a morrer 

de fome, de soco ou de bala

na terra

onde sempre jorrou

o ouro, o melaço

e a água límpida 

e ácida da vida.





[Carcaça de um macaco-prego morto em área queimada no Pantanal. Foto by Lalo de Almeida]










04 novembro 2020

PLUMAS










o peso empluma as coisas

quando ungidas 

pelo sonho.

as palavras são levadas

pelo vento leve

dos devaneios.

em meus sonhos os cavalos

saltitam azuis

em nuvens de algodão-doce.

deixemos que a linguagem

averigue

o que o sonho adivinhou.

a linguagem evapora

e vai mais além

do que o sonho

deflagrou.









30 outubro 2020

CANTOS

 










minha cidade é meu sítio

de desterro

ela se funde com todos os locais

do passado e do presente

locus de um declínio

apocalíptico.

 

o que ainda floresce

em mim

não sou eu

são meus sonhos

a esperar que a noite

pegue no sono

e lampeje faíscas 

de fogo.

 

a visão de rostos na multidão

são como pétalas rubras

espalhadas pelo chão negro

uma épica sem enredo

definido

uma lógica poética

do assombro.


com esses fragmentos

refaço minhas ruínas.









29 outubro 2020

CACTOS

 















chove no coração chamuscado

da floresta.

no âmago despedaçado

da metrópole, nada mais resta.

só cactos atravessados

em nossa goela

a aspereza intratável

de seus gestos.





[poema presente no livro “Pandemônio”, Kotter Editorial. Reserve já seu exemplar: https://kotter.com.br/loja/pandemonio-edson-cruz/. Capa de André Albuquerque (@kandros8)]








27 outubro 2020

come cummings

 




nessa

rede

me

esfar

inho

 

página

em

branco

meu

moinho

 

bem

no

meio

do

rede

moinho