EC.: O que é poesia para você?
Paulo César de CARVALHO: Já que você pergunta assim de bate-pronto, como um direto de direita, quase sem chance pra respirar, a primeira referência que me vem é Santo Agostinho, que não era poeta. Interrogando-se em suas "Confissões" sobre o que é o tempo, o santo – que não era santo – dizia: quando não me perguntam o que é o tempo, eu sei o que é, eu o sinto. Mas quando me pedem para defini-lo... O que a reflexão do “santo” sugere é que o sujeito aí se divide em dois: o que existe no espaço-tempo e o que racionaliza no discurso. Isso para dizer que sua pergunta me cinde, colocando-me na mesma situação: ao mesmo tempo sou o sujeito que escreve o texto poético e o que é convocado a refletir sobre a cria.
Tomando essas noções como ponto de partida pra tentar te responder, quando leio ou escrevo poesia, sei o que é: estou dentro dela. Mas quando me pedem para defini-la... Falar sobre a poesia, nessa perspectiva, é estar fora dela. Isto é, falar de fora, enunciar a partir de outro lugar que não o do discurso poético. Por isso é que falar sobre ela – sobretudo na condição também de criador – dá a sensação, de certa forma, de matá-la, aprisioná-la como borboleta de colecionador em taxionomias críticas (como Wali Salomão dizia, sou míssil, não fóssil!), por-lhe rótulo, colocá-la numa embalagem. Quando se fala da poesia, ela não é: se o beija-flor parar para pensar porque beija a flor, cai...
Por isso prefiro a poesia ao discurso sobre a poesia: o bom texto poético fala por si, na sua própria “língua”, com o seu próprio código. Isso, aliás, me lembra Mallarmé, quando dizia que apresentar um objeto estético em sua imediata evidência é matar três quartos do prazer que reside na descoberta gradual de sua verdadeira natureza - sugerir, eis o sonho! E, por falar em sonho, sonho o sonho de Rimbaud (como um sonho dentro do outro, num discreto charme à Buñuel) para tentar te responder: queria um verbo alquímico acessível a todos os sentidos, para fixar as vertigens, anotar o inexprimível, dizer o inominável. Se fosse possível definir a poesia com a cor das vogais! Mas como traduzir isto que Octávio Paz chama de a mais fascinante orgia dos sentidos?
O discurso sobre a poesia, ao racionalizar procedimentos, revelar os andaimes da construção, mata a sugestão de que fala Mallarmé, enfraquece a potência do sonho: a reflexão sobre o objeto é como um beliscão que desperta o sonhador, leitor ou poeta. É que o discurso sobre a poesia, de certa forma, muitas vezes parece querer revelar a mágica.
Por isso gostaria de aproximar o sujeito que escreve poesia do sujeito que reflete sobre a escrita poética, para tentar alcançar o que Barthes chama de “ciência dramática”, território em que o rigor da reflexão se soma ao calor da emoção, em que a abordagem teórica, crítica, não aborta as subjetividades, não apaga o “eu” (em nome da pretensa objetividade do discurso científico – pelo qual, aliás, nutro grande respeito: os pensadores são fundamentais! Meu bode é contra os acadêmicos de seminários sem sêmen, os colecionadores de coleópteros literários!). Quem me dera alcançar a graça da dicção ensaística barthesiana, que faz poesia falando sobre poesia, diluindo as fronteiras entre os gêneros (sonho leminskiano: vai haver um dia em que tudo o que eu diga seja poesia!)...
Voltando à sua pergunta (divago, como diz Rosa, mas não disperso!): as definições teóricas do fazer poético – O QUE É POESIA? – em geral, em movimento pendular, alternam-se entre as noções de poesia como inspiração e poesia como construção: num lado do campo, a emoção; no outro, a razão. Reivindicando o Nietzsche do "nascimento da tragédia no espírito da música", podemos traduzir assim a questão: de um lado, há a chamada tradição estética dionisíaca, romântica, que defende a criação como um sopro das musas; de outro, a apolínea, clássica, que concebe a obra como um objeto de ourivesaria.
Os poetas, falando de seu ofício, parecem procurar um lugar em um ou outro nicho, aninhando-se deste ou daquele lado da fronteira: há os racionalistas de carteirinha, defensores de uma poesia cerebral, equilibrada, contida, sem emoção, e os subjetivistas descabelados, defensores de uma poética passional, exaltada, comportamental, cotidiana. De um lado, a poesia como construção; de outro, como inspiração. E os poetas se digladiando como numa espécie de guerra santa estética! Eu, de minha parte, prefiro abolir as fronteiras, transitar sem pedágio, devorar e digerir (como bom antropófago aluno de poesia de Oswald de Andrade) o que cada lado tem de interessante para oferecer – afinal, “só me interessa o que não é meu”.
Para ajudar a pensar o problema, lembro-me agora de outro Andrade, companheiro de viagem modernista: Mário de Andrade, em seu ensaio "A escrava que não é Isaura" (que ele apresentou na Semana de 22) tenta equacionar a questão, conjugando os contrários em nome da boa síntese dialética. Em outros termos, reflete tentando encontrar uma espécie de “caminho do meio” entre Apolo e Dionísio, entre a construção e a inspiração. Segundo o bardo modernista, a poesia é um telegrama cifrado que vem da atividade inconsciente para a atividade consciente traduzir. Ela não é só emoção; ela não é só razão. No processo complexo do fazer poético, a inspiração passa por um processo de construção, de elaboração crítico-criativa. Eu vou nessa mesma linha – eu acredito na poesia como inspiração e como construção: creio que esta vem lapidar aquela, matéria bruta; vem dar-lhe acabamento. Como Leminski, advogo a "pororoca", o encontro das águas, o tao do “caminho do meio”: o rigor & o vigor, os caprichos & os relaxos, a construção & a descontração.
Explicando de outra maneira, quero dizer que no meu Panteão cabem vários deuses (mas defender a diversidade não é levantar a bandeira do relativismo - atenção!): não só amo a lição dos concretos, que me deram régua e compasso, ensinando-me que as palavras não são meros vasos para os conteúdos (como fala Augusto de Campos), chamando-me a atenção para a materialidade do signo linguístico, mas também amo a "várzea subdesenvolvida", a poesia marginal, as inscrições nas tabuletas, a poesia-grafite nos muros, as frases de camisetas, os slogans publicitários, as máximas de caminhão, os trocadilhos de mesa de bar, os recados de porta de banheiro...
Gosto mais da conjunção aditiva "e" do que da alternativa "ou": uma soma; a outra exclui. Isso significa que curto mais a adição do que a subtração. Sou da "ética da mistura" (na feliz expressão de Luiz Tatit), contra os valores assépticos da pureza: barroco pós-moderno, sou tropicália, não bossa nova! Acredito no Maiakóvski que fornece a divisa fundamental do concretismo: sem arte revolucionária não há arte revolucionária. Mas acredito também em Roberto Piva, que não acredita em artista experimental sem vida experimental. Não só não acredito na arte pela arte, como também não acredito no Ulisses Tavares que diz que poesia é questão de vida, não de linguagem. Acredito que poesia é questão de vida e de linguagem! Em matéria de poesia, a vida é uma questão de linguagem, e a linguagem é uma questão de vida! Ah, valha-me Torquato: a poesia é a mãe das manhas e das artimanhas! Não gosto de fronteiras, de guetos, de muros, de etiquetas, de fórmulas fixas, de escolas: com a bênção de Leminski (meu orixá, santo de cabeça fundamental, meu santo graal!), minha mente psicodélica salta dos trilhos; lógica aristotélica não legarei a meus filhos. Ah, valha-me também Novalis: não te sei o nome, flor azul, só sei que te amo! Enfim, só acredito em poesia de qualidade, qualquer que seja seu nome (com o perdão do pleonasmo: pois, se te chamo poesia, flor azul, é porque tem qualidade - é porque é flor!).
Lembro agora de uma síntese lapidar de Augusto de Campos, talvez a melhor e mais rápida resposta à sua pergunta: poesia/ a fazer/ afasia (com toda a carga de ambiguidade que faz a boa poesia: ela está entre o que o poeta fazia e o que está a fazer, entre a mudez afásica e o que vai dizer). A poesia está no intervalo. Aliás, como diz René Char (o poeta preferido de Picasso): nós não podemos viver a não ser no entreaberto, sobre a linha que separa a luz e a sombra. Poesia como luz & sombra...
Tentando, por minha vez, responder a poesia com poesia - para falar de dentro, não de fora (ou, melhor, no intervalo!)-, escrevi um poema sintomaticamente intitulado "Plural" (publicado em meu livro toque de letra – editora nhambiquara), espécie de declaração de princípios, epitáfio, testamento poético, que reverbera minha noção de “pororoca”, minha conjugação de vida & linguagem, minha enunciação marcada pela diversidade:
"meu lar/ em mil falares/ meu luar/ em mil lugares/ tenho um ar/ de muitos ares/ sou mar de muitos mares/ sou muitos/ - não repares!/ sou tantos/ - não compares!/ sou vários/ - não separes!/ sou par/ de muitos pares/ sem apesar/ nem pesares/ meus encantos/ em tantos cantares/ meus prantos/ em vários bares/ sou tantos/ quantos sonhares/ os contrários/ que encontrares/ todos os santos/ em meus altares/ em todos os cantos/ meus calcanhares/ - acredite!/ sou afrodite/ sou ares".
EC.: O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?
Paulo César de CARVALHO: Roger Laporte, num ensaio sobre “intertextualidade”, diz que antes da relação EU-ESCREVER-TEXTO há uma outra que a precede necessariamente: a relação EU-LER-TEXTO. Não acredito em abiogênese: as obras não nascem do nada. Como diz a Análise de Discurso de Pêcheux – conjugando Bakhtin, Freud e Marx –, todo dito se ancora num já-dito. Não tenho a ilusão adâmica da linguagem, a crença num grau zero da escritura. Todo texto brota da costela de outros textos. Creio, com Barthes, na espiral de vozes constitutiva do discurso: quando escrevo, outras vozes se cruzam com a minha, outras enunciações alimentam minha enunciação. A informação poética é fundamental para o fazer poético.
O conselho (como diz Mário, na conferência de 42 sobre a Semana de 22, se não sirvo de conselho, que sirva de lição!) que dou aos jovens poetas, assim, é ler muito: antes da escrita, durante a escrita, depois da escrita. Glosando Haroldo de Campos, o livro me alaga o livro me alarga o livro me alegra... O livro é um mosaico de rendas de ouro e ocelos de pavão... Ler milumapáginas em milumanoites... Ler para acabar com a escritura para começar com a escritura para acabarcomeçar com a escritura... Ler sobre o ler, ler sobre o escrever, escrever sobre o escrever, sobrescrever, escrever... Ler diferentes autores, diferentes escolas, diferentes estéticas. Ler entendendo as soluções procuradas pelas diferentes vozes poéticas. Ler entendendo cada proposta, sem exigir do poeta aquilo a que ele não se propôs. Ler sem preconceito, com os olhos livres. Ler como um antropófago, digerindo e excretando. Ler para encontrar sua própria dicção. Rilke, aliás, aconselhando seu jovem pupilo na travessia do fazer poético, fala da importância da autenticidade do enunciador, do encontro de uma dicção própria: o poeta deve escrever o que é ditado pela necessidade íntima, não pela exigência exterior. Escrever sem preocupação com modismos, com filiações a escolas, sem professar dogmas. Escrever com rigor & com vigor. Escrever conjugando vida & linguagem. Escrever construindo & descontraindo. Escrever nunca se traindo. Escrever porque não é possível não escrever... Não escrever quando é possível não escrever...
Nesta minha espécie de “carta a um jovem poeta”, lembro que o poeta-samurai Bashô também falava da importância dos mestres (ou seja, das leituras que nutrem a escrita) e da necessidade de sua superação, para a aquisição de uma voz poética própria. Duas máximas lapidares de sua pena-zen para a “cartilha” dos iniciantes: “não siga os mestres, procure o que eles procuraram”; “conheça as regras; depois, jogue-as para cima”. Em outros termos, é necessário descolar-se da foz para encontrar sua voz. Para nascer o escritor, enfim, é preciso sofrer a angústia da influência e libertar-se dela no gesto criador: reconhecer o pai e matá-lo. O poeta, ladrão do fogo, nasce quando devora a esfinge.
EC.: Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que estas escolhas?
Paulo César de CARVALHO: A primeira coisa que me chama a atenção em sua pergunta é o número 3: ancestral, mítico, arquetípico, cabalístico... O 3 da Santíssima Trindade; o 3 do céu, da terra e do inferno; o 3 de Hermes Tri Megisto e sua Tábua de Esmeralda; o 3 do ménage a trois; o 3 dos três triângulos; o 3 dos três reis magos; o 3 dos triunviratos; o 3 dos três patetas; o 3 dos três mosqueteiros; o 3 das três graças; o 3 das três parcas; o 3 das três fúrias; o três do power trio; o 3 do Trio Parada Dura; o 3 do Trio Mocotó; o 3 dos Tribalistas; o 3 dos três pedidos do gênio da lâmpada; o 3 do “tri-legal”; o 3 do trivial; o 3 dos “três tristes tigres” e seus “três pratos de trigo”...
O 3 também está na literatura: por exemplo, no ABC de Pound (já no título, sintomaticamente, 3 letras!). O 3 dos três tipos de poeta: o diluidor, o mestre e o inventor. O 3 das três poéticas: a fanopéia, a logopéia e a melopéia.
Você também faz 3 perguntas nesta enquete poética: e na terceira, como num efeito-bumerangue (que tem 3 lados!), volta ao três, pedindo 3 poetas e 3 textos... Ufa! (3 letras!).
Tanto 3, e três é tão pouco! Queria poder escolher 3 inventores (de quebra, 3 bons mestres; e chutar a bunda de 3 diluidores!). Queria poder escolher 3 poetas da melopéia, 3 poetas da fanopéia, 3 poetas da logopéia. 3 craques da poética do som; 3 artífices da poética da imagem; 3 arquitetos da poética do raciocínio. 3 franceses; 3 espanhóis, 3 americanos; 3 ingleses; 3 chilenos, 3 brasileiros. 3 em cascata; 3 em dízima periódica. 3+3+3+3... (as reticências têm três pontos!).
Mas ia ser muita gente, extrapolando muito o que você pede. Então, para chegar a um meio termo, vou escolher 3 brasileiros e 3 estrangeiros. Não os 3 que necessariamente considero os mais importantes, pensando na história da literatura. Não os 3 de que necessariamente gosto mais. Mas os 3 que funcionam como espécies de “santos de cabeça” da minha poética (que fica no intervalo entre a poesia e a letra de música, surfando na pororoca!). Se não são o Tejo, são o rio de minha aldeia... De cá, Oswald de Andrade, Augusto de Campos e Paulo Leminski. De lá (melhor, flexionando rosianamente o advérbio, de lás), Artur Rimbaud, Federico Garcia Lorca e Allen Ginsberg.
Começando pelos de cá, escolhi Oswald pelo “amor/humor”: depois do rio caudaloso do parnasianismo, da afetação neoclássica, do preciosismo vocabular, da restrição temática, uma poética da síntese, uma lição de economia de meios, a incorporação das variantes linguísticas populares (a “contribuição milionária de todos os erros”), a presença do bom humor, a ampliação do eixo temático (a poesia no amor, na dor, na flor, no elevador), a devoração antropofágica da tradição, a reinvenção do Brasil. Na música, Oswald volta, por exemplo, na trip tropicalista (além de influência literária, a capa do disco Tropicália – Panis et Circenses, por exemplo, faz alusão à celebre foto dos modernistas de 22 no Teatro Municipal). Cazuza, no disco Só se for a dois, grava uma adaptação do poema Balada do Esplanada. João Bosco, no disco Dá licença, meu senhor, compõe Pagodespell com trechos dos poemas Relicário e Escapulário. & etc.
Augusto porque “poesia é risco”: a ousadia de dinamitar o ciclo histórico do verso; de implodir a palavra; de propor (como queria Rimbaud) um verbo acessível a todos os sentidos (o “verbivocovisual” do Plano Piloto da Poesia Concreta); de mostrar a dimensão acústica, gráfica e semântica da palavra (Mallarmé, Apollinaire, Cummings...); de ensinar que em poesia o menos é mais (se Le Corbisier fosse poeta...); enfim, de experimentar o experimental (como diria Hélio Oiticica). A poesia de Augusto é um antídoto contra a vazia dicção grandiloquente da poesia bacharelesca (a “discurseira de arrastão” de que reclamava Mário de Andrade), é um dique para conter o blá retórico, um remédio contra o tédio declamatório... Augusto me dá régua e compasso (como aliás já disse a poeta Alice Ruiz, mais um de meus santos de cabeça para escrever/compor): ensina-me maiakovskmente que sem forma revolucionária não há arte revolucionária. Na música, está presente em Pulsar, na bela interpretação de Caetano (um dos textos referenciais para o meu trabalho, que traduz a cor das vogais em mil alturas e durações...), em Cademar, parceria com Tom Zé. & etc & tao. Curiosamente (mas não gratuitamente!), o “amor/humor” de Oswald é poema fundamental para Augusto (e os concretistas). Curiosamente (mas não gratuitamente!), Augusto é influência fundamental para as letras tropicalistas...
Leminski porque “é preciso colocar a poesia numa aventura de massa” (aliás, Oswald, nesta barthesiana “espiral de vozes”, dizia: “a massa ainda vai comer o biscoito fino que fabrico”): o “kamiquase” fez seu primeiro caderno de poesia (para lembrar de novo de Oswald) a partir das lições dos concretos (ele, aliás, se dizia mais concreto do que os concretos, já que havia nascido concreto, e eles se tornaram depois). Mas, além do experimentalismo na poesia, foi poeta experimental na vida, trazendo em seu couro poético as marcas da existência: sua poesia falava da vida, do comportamento, do sexo, das drogas, do rock’n’roll (“tudo o que li me irrita/ quando ouço rita lee”). Isso o aproxima também da dita “poesia marginal” da dita “geração mimeógrafo” (vide seu livro artesanal “não fosse isso era menos / não fosse tanto era quase”). Leminski realiza como ninguém a síntese forma (herança concreta)/ conteúdo (pulsão marginal), numa pororoca entre caprichos & relaxos (título de uma obra que é uma espécie de divisa de seu fazer poético). A sacada que me interessa bem de perto é colocar a poesia numa aventura de massa: para o poeta-samurai, isso se daria por meio das letras de música. E Leminski (que tocava violão) foi gravado por Caetano Veloso (Verdura), por Paulinho Boca de Cantor (Valeu e Se houver céu), pela Cor do Som (Razão)... Foi parceiro de Itamar Assumpção (Custa nada sonhar, Dor elegante, etc), de Arnaldo Antunes (Além alma e UTI), de Carlos Careqa (Alles Plastik), de José Miguel Wisnik, de Edvaldo Santana, de Moraes Moreira. & etc.
Ah, a ditadura do espaço, as inevitáveis coerções da edição, o imperativo moderno da brevidade: só três! Mas meu trabalho também sofre influência de Torquato Neto, de Caetano Veloso, de Alice Ruiz, de Walter Franco, de Arnaldo Antunes...
Bom, vamos agora aos 3 de lá. Rimbaud eu escolhi porque falta “música sábia aos vossos sentidos”: o anjo no exílio (como lhe chamava Verlaine, que, aliás, faz um elogio à música, torcendo o pescoço da eloquência, em seu “Arte Poética” – a propósito, um dos textos referenciais para meu trabalho: “música, acima de tudo música”) transitava da poesia clássica à poesia das tabuletas, dos livros infantis, dos diários... Foi o grande mago visionário da “Alquimia do Verbo” (outro texto referencial para o meu trabalho), que ambicionava um verbo poético para anotar o inexprimível, para fixar as vertigens, traduzindo a cor das vogais (outro texto seu que gostaria de que fosse meu...). Nosso poeta-letrista Vinícius de Moraes o considerava o maior da lírica moderna. Não à toa, na canção Carta ao tom 74, diz “é preciso inventar de novo o amor”, citando o “l’amour est pour reinventé” do “vagabundo genial” (como Mário de Andrade se refere a Rimbaud em A escrava que não é Isaura).
Lorca porque “há um cão no coração” que não pode deixar de ganir: um de seus trabalhos de que mais gosto é o Poeta em Nova Iorque, que para alguns críticos chega a superar os surrealistas. Mas, para minha poesia-letra, para minha poesia-canção, estão mais presentes textos como Bodas de Sangue – escrito para o teatro, adaptado por Carlos Saura para o cinema, entremeado por trechos de canções populares (“a noiva, a branca noiva, hoje donzela, amanhã senhora...”), Romanceiro Gitano (dá quase para ouvir o violão “flamenco” de Paco de Lucia...)... Tocam-me particularmente (“tocar”, verbo musical...) os poemas do Diván del Tamarit: “diván” é uma palavra de origem persa que significa “conjunto de poesias líricas”, em geral de amor (um de meus temas preferidos, apesar de um dos mais batidos, talvez por isso dos mais desafiadores, já que fica mais difícil fugir do lugar-comum. Como diz Caio Fernando Abreu – que, aliás, na chácara de Hilda Hilst, acreditou em trip espírita ter incorporado Lorca –, “o bicho homem não faz outra coisa a não ser pensar no amor”). Neste trabalho, o poeta-cigano experimenta formas poéticas bem musicais, como a casida, um tipo de poesia árabe com uma só rima e métrica (a tradição árabe chegou ao nosso nordeste com os portugueses, influenciando a poesia popular das feiras...), e o gazel, poema curto usado na poesia persa, que tem entre quatro e quinze dísticos, com retorno frequente a um refrão e exigência de rima dos versos do primeiro dístico entre si, e, depois, com o segundo verso dos outros dísticos, numa estrutura também marcada pela musicalidade.
Por fim, Ginsberg porque “esteja eu louco ou frio/ obcecado por anjos/ ou por máquinas/ o último desejo é o amor”: estes fragmentos constam do poema intitulado sintomaticamente de Canção – caro para mim, que persigo justamente o poema-canção. O bardo beat, herdeiro de Walt Whitman, é o poeta dos “pulmões épicos”, que escrevia ao sabor do jazz uma poesia fortemente marcada pela oralidade (a musicalidade da fala, a descoberta do rap): seu torrencial Uivo, título que remete à musicalidade do grito, foi declamado no famoso recital da Galeria Six, em 1955 (aliás, no “eterno retorno” da “espiral de vozes” desta nossa entrevista, no poema Um supermercado na Califórnia há uma referência a Lorca: “e você, Garcia Lorca, o que fazia lá, no meio das melancias?”). O poema Kaddish também traz a marca da música: dedicado à mãe, é um lamento fúnebre, um canto aos mortos na tradição judaica. Mas a música esteve presente não só na poesia, como também na vida de Ginsberg: no seu aniversário de 50 anos, uma homenagem do The Clash; os 60 comemorou com as dissonâncias do Sonic Youth... Isso sem falar da influência sobre dois dos maiores nomes do poema-canção norte-americano: Lou Reed e seu gutural canto “uivado” (a figura, a propósito, sempre se vestiu de preto – como a Janis Joplin antes de chegar a São Francisco –, reverberando à moda americana o tédio existencialista francês, bem traduzido pelos escritores da trupe de Ginsberg) é autor de canções “beats” como Walk on the Wild Side, crônica sobre a América anti-sonho americano, sobre o fracasso do american way of life, sobre traficantes, drogados, travestis e outros personagens naufragados. Bob Dylan também carrega em suas composições a herança beatnik, como na letra de Desolation Row, por exemplo (Ginsberg e ele deixaram um texto para Kerouac no enterro do autor de On the Road; Ginsberg era louco para transar com Dylan...). Isso sem falar da influência também sobre Jim Morrison, do The Doors, que era pirado também em Rimbaud, como Ginsberg... Só pra terminar a “quadrilha” – pra não dizer que não falamos de Drummond... Só pra não falar também que eu não queria falar também de Joan Brossa, de Boris Vian, de Fernando & outras pessoas...
Paulo César de Carvalho é mais conhecido como Carvalho. Vocalista e letrista da banda Os Babilaques. Bacharel em Direito e mestre em Linguística pela USP, professor de Gramática, Interpretação de Texto e Redação do curso Anglo Vestibulares e do CPC-Marcato, co-autor do material de Língua Portuguesa do Sistema Anglo de Ensino, autor dos livros Tópicos de Gramática e Tópicos de Interpretação de Texto e Redação (Editora CPC – www.cpc.adv.br ou livraria@cpc.adv.br). Foi editor do boletim Texto & Cultura, com o ex-correspondente da Folha de S.Paulo e editor de Política Internacional José Arbex Júnior. Colaborador das revistas Discutindo Língua Portuguesa, Discutindo Literatura, Arte & Informação, Livro Aberto e Libertárias e consultor da TV FUTURA no programa Tá Ligado?. Curador da exposição Linguaviagem: em Português nos entendemos, organizada pelo Museu da Língua Portuguesa para o Itamaraty, a propósito do Congresso dos Países Lusófonos, realizado em Brasília em março de 2010. Tem poemas publicados no livro Na virada do século – poesia de invenção no Brasil (Landy Editora) e na antologia portuguesa Poezz (Almedina). Em 2009, publicouo Toque de Letra (poesia, Editora Nhambiquara). E-mail: carvalho70@gmail.com