Desconcertante este Almodóvar. Ao terminar de ler o livro não sabemos por onde começar a falar sobre ele. Se começamos pelas entranhas, pelo que recobre as entranhas, ou mesmo, pelo que penetrou nas entranhas. Em todo caso, há um calor que emana pelo texto e vai crescendo até se tornar puro fogo. Um fogo que queima as bacurinhas das mulheres madrileñas retratadas, e que se espalha, acabando por consumir a todos como lenhas numa Madri em chamas.
O bacana do livro é a forma direta, sem firulas, e irônica como são narrados os acontecimentos. Acontecimentos às vezes inusitados, que poderiam ser inverossímeis, mas narrados como são, nos parecem histórias mais do que reais. Enredos de um filme de Almodóvar. Um estilo sem pretensão de profundidades, mensagens, ou outras moralidades, e que por isso mesmo encanta e nos dá prazer.
O romance, pelo que nos consta, foi a estreia de Almodóvar no gênero, lá pelos idos de 81, longe ainda da produção cinematográfica pela qual viria a se tornar uma referência do cinema espanhol moderno. O livro esgotou-se rapidamente e, por estas bandas, já está na quinta reimpressão desta coleção que recupera, com bom gosto e estilo, livros raros da literatura underground e folhetinesca: a coleção Babel.
As teorias e postulações críticas que visam compreender o gênero chamado de romance sempre deixaram a desejar, em todos os tempos. Há sempre aquela produção que surge para desbancar as formulações mais elaboradas e fechadas. Produções que exigem dos críticos reformulações de escopo e postulados. Não que Fogo nas Entranhas tenha sido gerado com esta intenção, nem que seja um exemplo acabado de romance esteticamente revolucionário, mas a simplicidade de suas formulações atinge por vezes uma poesia estranha, que muitas vezes obras de maior fôlego, e rebuscamento, ficam longe de atingir.
Parece-me que alguns romances são impermeáveis a um olhar mais tradicional da crítica literária. Toma-se o romance, quase sempre, a sério demais, como se ele se tratasse de um documento de época, uma confissão, ou uma história autêntica, pessoal. Quando a seriedade do olhar não encontra ressonância na obra, descartam-na como sendo irrelevante para a arte literária de uma época.
Acontece, por vezes, que a literatura nas mãos de um ‘artista’ tem sempre um objetivo estético e que - mesmo não compreensível nos parâmetros que estamos acostumados - possui uma coerência interna que se afina e se afirma com o diapasão de quem a produz.
É o que acontece com este pequeno romance de Almodóvar. Um recorte da vida que obedece a propósitos específicos. Revestido de uma linguagem paródica, intensifica nossa relação com a vida e nos faz aceitá-la com toda a carga de magia e absurdo que possa nos acarretar.
A graça deste romance está na forma como ele desenvolveu a estória de Chu Ming Ho. Um chinês que chegou à Espanha nos anos 50 e prosperou, pois era hábil, astuto e artesão. Ou será que prosperou por que era chinês?
Tudo é contado de maneira não linear, como uma história em quadrinhos entremeada de várias tramas paralelas, até chegar ao nó central que as unifica e dá sentido: o testamento do chinês.
Abandonado pelas cinco amantes, que nos são apresentadas com vagar, este próspero industrial de absorventes femininos prepara uma vingança flamejante às suas ex, e por extensão, a todas as mulheres e mesmo a toda a cidade.
O Testamento
“...trabalhei minha vida inteira com e para as mulheres, e nunca cheguei a conhecê-las. Só descobri uma coisa: louras, morenas, ruivas, altas ou baixas, todas são iguais. Umas vadias. Ainda assim, reconheço que devo meus melhores momentos a elas - e os piores também. Mas não me arrependo de nada. Dediquei todos os dias da minha existência a esse milagre que elas guardam no meio das pernas, uma coisa tão delicada que justifica todos os meus esforços. Por isso não quis ir embora sem render-lhes um pequeno tributo: meu último modelo de absorvente, diminuto, transparente, que estimula, tonifica, desinfeta, com vitaminas E e U, cloruto potássico, etc. Utilizável todos os dias do mês, e não apenas no período da menstruação. Como prova de agradecimentos, determinei que durante uma semana todas as clientes possam ter de graça um pacote de absorventes. Depois, o artigo começará a ser vendido normalmente.
Deixo minha indústria para aquelas que foram minhas principais amantes, ou seja: Diana, a orgulhosa; Mara, a cínica; Katy, a abelhuda; Lupe, a hippie; e Raimunda, a freira. Podem vender tudo, ou fazer o que quiserem. Só imponho uma condição: que durante meu enterro, e na presença de um tabelião, as quatro usem um dos meus absorventes último modelo. Acho que tenho direito a esta homenagem póstuma. E fico satisfeito em saber que sejam elas as primeiras a desfrutar de todas as suas vantagens. A que por algum motivo se negar, ficará automaticamente excluída da herança.
Não sinto rancor por nenhuma. Adeus”.
O que se segue a partir daí me lembrou o romance Ensaio sobre a Cegueira de Saramago. Só que Saramago é grave e Almodóvar hilário. Em Almodóvar as mulheres ficam cegas é de vontade de dar depois de usarem este bendito absorvente. As caras ficam crispadas e os olhos selvagens a cata de um macho que possa aplacar o furor uterino que lhes consome. Claro que os homens não dão conta do recado. Alguns até tentam. Outros alegram-se pela oportunidade de tirar a barriga da miséria, ou melhor, o peru. Mas o prazer é fatal, pede seu quinhão de vida em troca.
Instaura-se a peste pós-moderna. O êxtase, o céu e o inferno têm moradas em Madri. O esplendor do caos deita-se e copula com todos. Como apagar esta fogueira que se consome? Como é Almodóvar, a cura não existe, o efeito não se desvanece de uma hora pra outra e tudo volta ao ‘normal’. A chama continua com suas labaredas. Você pode fugir delas, se refugiar, se embebedar, até dormir em paz, mas elas continuam a arder.
Ardem tanto que há relatos e relatos de mulheres e homens que depois de lerem Fogo nas Entranhas saíram por aí com uma vontade danada de dar. Claro que levaram quilos de camisinha na bolsa, pois já não estamos mais em 81, né?
Bibliografia de Almodóvar
Fuego en las entrañas,
Madrid, ed La Cúpula, 1981. El Víbora, colección Onliyu
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