25 maio 2020

NOSTALGIA















para Ricardo Rizek


de tudo restará o gosto
da amora.
os trevos azedinhos que recolhemos
no caminho da escola.
os piqueniques e os lambe-lambes
no Jardim da Luz.
os patinhos na lagoa.
nós dois, pombinhos
na gamboa.
aquela matemática inspirada,
a música das estrelas,
o desejo e suas faíscas
cadentes.
a soma dos catetos
do quadrado da Bruna Lombardi.
o pulsar de luzes na memória.
pontos luminosos
a nos lembrar
que a vida foi boa
que a vida tem sido boa
mas que deve haver mais.
        sim, tem que haver mais.




24 maio 2020

LÓTUS

















      Primavera já chegou
      com seu memento.
      Na sombra ainda faz frio.
      No sol aqueço o juramento.

      Agora tudo transparece
      como realmente é.
      Tudo já foi ínfimo.
      Tudo já foi vento.

      Muito passou por minhas mãos.

      Trevo de cinco pontas.
      Vida soprando generosa.
      Benefícios em profusão.

      Mas meu querido amigo
      não sobreviveu ao inverno
      rigoroso.
      Recito por ele e por mim
      caracteres da Lei Maravilhosa.
      Uma flor já brota na lama
      de outras terras.
      A certeza renovada
      de que mesmo lá
      ‘o inverno nunca falha
      em se tornar
      primavera’.





23 maio 2020

CRISÂNTEMO

















Como uma palavra pode
ser tão bela,
soar como a vida
e ao mesmo tempo
carregar o perfume
da morte?




[A dama crisântemos, de Edgar Degas]






22 maio 2020

21 maio 2020

AMÉRICA
















Enquanto isso a brasa do Brasil beija o brejal,
e seus estandartes se erguem aos céus em labaredas
a derreter estrelas, a enterrar anseios e projetos no areal.

Melhor seria morrer em guerras menos híbridas,
e não se entregar assim de mão beijada
nem ver Iracema com seu sexo e senso devassada.




[Iracema, de José Maria de Medeiros, 1881]





20 maio 2020

CIDADE IMAGINÁRIA


















a busca principia e se finda no coração
na longa jornada, dia a dia, se oficia
e ao final nos brinda com a claridão

no meio do caminho de minha vida
viajante que sou por sendas selváticas
ouço falar de cidade tão querida

com dadivosos tesouros e benefícios enfáticos
sua existência - nutriente da procura
leva-me adiante em ofício tão errático

encontrá-la, amacia o ferro-vida que perdura
habitá-la, ultrapassa o mundo-lida já tão lábil
desposá-la, é a felizcidade em tessitura

se até aqui nada me havia sido fácil
agora verei do que realmente o laço é feito
em nada me adiantou ter sido hábil

tal estrada abriga horrores em seu leito
terríveis desertos, terra inóspita e dardejante
falta-me ar, me dá sede, a derrota arde-me no peito

corpo em espírito antes tão flamejante
arrefece exausto e amedrontado foge
- chega de tempestades e sol escaldante!

queria eu estar nesta hora que consome
a reviver instantes da memória
lugares que vivi e o deleite que me some

porém, o sábio mestre da vitória
com hábeis meios de uma melodia
soa o canto que nos leva à possível glória

aquele que conhece o caminho - o guia
presença que em si é a ênfase do tesouro
disciplina o ser e as almas fugidias

em meio ao sofrimento vislumbro o ouro
a imensidão do desejo em seu oásis
a alegria reluzente, as dores em sumidouro

o cansaço esvanece - um desenho a lápis
os contornos da dor desaparecem na fumaça
tudo esqueço, retornar ou desistir – jamais!

sob meus pés a exuberância se enlaça
revela-se íntegra uma cidade tão fantástica
o paraíso em delícias nos perpassa

o mestre, com sua voz sonora e dramática
diz que não, estávamos no meio da jornada
a cidade é imaginária, pura névoa carmática





19 maio 2020

AWAKENING





















Te Chuan Su sonhou
ser uma mariposa listrada,
esvoaçante.
Ao acordar, não sabia mais
se era um homem que sonhara
ser mariposa,
se era o mar, uma meretriz,
ou uma mariposa que sonhava
ser um homem
esvoaçante.





18 maio 2020

ARCANOS





















escavar a memória cósmica
dos homens
e fazer a arqueologia
de uma possível eternidade.

recuperar aquela mística cintilação
que se apagou
e desbaratar a teia que enreda
todos os segredos.

despertar a alma que viaja
cega e inconsciente
e torná-la plena anfitriã
deste momento.






16 maio 2020

SAGRADO


















   labareda e sua língua
   de ímpetos.
   claridade que nos toca
   compassiva.
   aquele ardor de tempos
   remotos.
   o rumor de épocas
   futuras.
   a luminescência de seres
   irmanados.
   o amor, o amor, o amor.




15 maio 2020

DHARANI















palavras são instiladas com a energia
da vida.
jvale mahajvale
uma lei maravilhosa permeia o cosmos
e rege tudo o que pulsa.
uke muke ate atavati
som e sentidos se apossam da conversação
do mundo em eterna hesitação.
nrite nritavati
a vontade de potência se manifesta
na palavra emancipada.
itini vitini chitini
um bom poema é uma catedral de dharanis.
nritini nrityavati
um waka ideograma todo o Japão.
novas palavras criam novas realidades.
a palavralada como flecha lançada
não retorna mais.
myoho renge kyo
o cerne do ser é atingido
no alvo.




dharani, do sânscrito, frase ou fórmula mística que tem o poder de proteger e beneficiar quem a recita. “Dharani” é interpretado nas escrituras budistas chinesas como “sustentar”, “manter” ou “reter”. Dizem que a pessoa que mantém e recita um dharani é considerada hábil em se lembrar de todos os ensinamentos do Buda e em rechaçar influências maléficas. Nome do capítulo 26 do Sutra do Lótus.




14 maio 2020

O PUM DOS PALHAÇOS












os caras vão morrer
nas ruas
igual baratas.
as caras, sentadas
no sofá da sala.

é só mirar sem dó
na cabecinha.
eliminar as mamadeiras
de piroca.

(deixar entre parênteses
os generais)

colocar um pastor
em todas as paróquias.
destruir de vez
o marxismo cultural.

convidar a Porcina
pra dar um tapa na biboca.
e instituir a goiaba
como fruta nacional.




13 maio 2020

O MENDIGO













o mendigo morreu.
calado.
calejado da luta pela vida.
herói anônimo de tantos
milagres econômicos.

não teve homenagens póstumas.
nem epitáfios espirituosos.

foi enterrado
sem pompas em cova rasa
o indigente.

apenas
um sabiá trinava
ao ouvido do morto
um canto melancólico
e pungente.





[do livro Sambaqui, Crisálida Editora, 2011]


12 maio 2020

OROBORO






























apesar de já conhecer
o final da jornada
volto-me sobre mim mesmo
como quem não quer nada
e perfaço quase distraído
todos os momentos
da viagem.





11 maio 2020

SANTOS






















navios continuam a entrar e a sair de seu porto.
na cidade, alguns prédios se portam como bêbados
a pisar em areia movediça.
os fantasmas do centro exalam um aroma denso de café.
a música de Gilberto Mendes ecoa
no megafone do tempo.
a livraria Realejo continua lotada aos sábados
e a poesia de Marcelo Ariel eternizou
a memória fumegante de Vila Socó.
o técnico do time da cidade fala hoje
um português castiço
e o mar continua a envolver a tudo por igual.
o quebrar das ondas à noite
ainda nos revela o estrondo original 
do Big Bang.
quantos já prestaram atenção ao rumor 
que reverbera a caixa acústica da alma?
aquela longínqua esperança que sobrevém
de um horizonte em total escuridão.
o desaguar da pororoca branca na areia.
o grito de gol 
em uma nostálgica e iluminada Vila Belmiro.



09 maio 2020




































chove no coração destroçado
da floresta.
mas ela ainda está lá,
com seus pássaros e animais
quase intactos.
por aqui, nada mais resta.
só cactos atravessados
em nossa goela
e a aspereza intratável
de seus gestos.


[Uma das propostas de capa do brilhante fotógrafo Ninil para meu próximo livro. Confira seu trabalho aqui]





08 maio 2020

QUARENTENA EM DUAS ESTROFES




por Leopoldo Ponce e Edson Cruz

A voz do Serafim fala conosco nestes dias
Pesa sobre tudo, como um lenço retumbante
Planícies se abrem nas têmporas
O tempo não existe, só a experiência
E a imanência constante do fim de algo que não se identifica
Que era até então chamado realidade.

De nada nos adiantou a visão privilegiada do possível
O instante pesaroso do que era o real nos consome
Como se fôssemos meras ondas e/ou partículas
Devoradas pelos buracos negros espalhados
Por uma pele cósmica, eterna e insone.



[imagem: obra “Meteoro”, de Leopoldo Ponce]


Leopoldo Ponce, nasceu em 1976 em Quito, Equador. Vive em São Paulo desde 1991. Desde 1998 desenvolve práticas e investigações artísticas que partem de um interesse nas mútuas influências entre ser humano e habitat, numa tentativa de articular narrativas e rastrear indícios de uma mneme mítica, no acúmulo de derrelitos da vida cotidiana. Outras obras, aqui: http://retornodeutopia.tumblr.com